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AFP/Getty Images

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Salazar, o prosador desconhecido

Carlos Maria Bobone foi à procura do que há de literário nos "Discursos" recentemente reeditados. Encontrou referências que vão do Padre António Vieira a Alexandre Herculano.

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Seria o único a resistir a tão encomiástico apodo da parte de António José Saraiva. “a mais perfeita e cativante prosa doutrinária que existe em língua portuguesa”, qualifica o Historiador. Salazar acima do estilo cuidado de Jerónimo Osório? Lido com maior prazer do que a sanha ideológica de José Agostinho de Macedo ou de Frei Fortunato de S. Boaventura? Estávamos em 1982, já Saraiva tinha deposto a casaca vermelha e adoptado a defesa do Salazarismo, pelo que o elogio poderia ser apenas o excesso de um entusiasmo político.

Só isso explica que, mesmo com a canonização do, já não sacerdote, mas autêntico Cardeal da crítica literária, a prosa de Salazar continue sem ser tida nem achada nos altares das letras. Estudos literários há poucos: um de Manuel Anselmo, outro de António Barahona e talvez mais um ou dois prefácios que tentem encabar uma leitura sistemática no ofício laudatório. E dado que, nos casos citados (não excluído António José Saraiva), junta-se à admiração literária um apreço pessoal e político, talvez o público tenha tomado as loas por juízos inquinados.

Das barricadas opostas, nem tugido nem mugido: nunca a obra de Salazar vem referida, seja para um louvor, seja para uma condenação, na sua perspectiva literária. É compreensível: para os Historiadores há tanto rincão fértil para estudar o Salazarismo que pegar nos seus aspectos literários pode parecer tão ridículo quanto, diante de um banquete, comer apenas o pão seco. Para os literatos, a tomada do monopólio literário pela poesia e pela ficção afasta a prosa doutrinária dos seus interesses. E para o resto dos nossos contemporâneos o hábito dos discursos políticos dessorados, tantas vezes lavrados por encomenda, sempre à procura do mais inofensivo lugar-comum, sempre apostados na formulação vaga que não ofenda eleitor nenhum, para quem está habituado a estes discursos quase burocráticos, a leitura de um discurso político é tão prazenteira quanto a leitura do diário da República.

A capa da reedição de “Discursos e Notas Políticas; 1928 a 1966; Oliveira Salazar” (Coimbra Editores)

Enquanto em França sempre foi ponto de honra um certo cuidado estilístico na forma de um governante se dirigir ao País, enquanto Léon Blum, De Gaulle ou Mitterrand engolfavam o papel dos discursos nas suas pretensões literárias, em Portugal o discurso saiu do âmbito da literatura para entrar no da publicidade. Daí que, se não quisermos aderir a teses conspiratórias contra o Estado Novo, possamos considerar normal que a obra de Salazar não tenha a atenção literária que merece.

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Ora, a verdade é que houve, de facto, o cuidado literário nos Discursos, que justifica a atenção. Nem as suas são as palavras de um repentista que quadrasse melhor em anedotários do que em Histórias da Literatura, à Churchill, nem são as frases lacónicas de um burocrata em que por acaso se acharão certas feitiçarias involuntárias de bom estilo. É o próprio Salazar que lhes chama, no prefácio ao primeiro volume dos Discursos, “pedaços de prosa que foram ditos”, como que a mostrar que as suas intervenções são, antes de mais, para ser lidas – “pedaços de prosa”. Se a isto juntarmos o misterioso Ais, livro de poemas que terá publicado na sua mocidade, teremos confirmada, mesmo que exangue, uma veia literária em Salazar.

“Eram versos, mas não eram poesia”

Uma das mais cuidadas críticas literárias à sua obra parte, aliás, da sua curta vida de poeta. Na biografia de Salazar que escreveu, Franco Nogueira ressuscita por momentos o crítico literário que fora na mocidade e avalia os poemas que o jovem António, ainda seminarista, ia ensaiando. O veredicto é implacável: “candura literária, pobreza poética, monotonia de temas, indigência de imaginação, ingenuidade, romantismo imaturo”… Franco Nogueira assesta mesmo – “eram versos: mas não eram poesia”. Mesmo fora da poesia a sentença não é mais complacente: “estilo pessoal incaracterístico, que se procura sem se encontrar”, diz o Embaixador sobre uma palestra proferida num liceu. Ora, mesmo em tão larga gama de fraquezas é já possível encontrar certas características mais pertinazes que acompanharão (polidas, é claro) a vida do autor dos Discursos.

Tem, é certo, um gosto heroico e a mesma admiração dos Integralistas pela forma como os Românticos reanimaram os tesouros pré-modernos. Mas herda também a estrutura frásica de Herculano, as frases longas de complexos contornos gramaticais que já não eram e não mais voltaram a ser moda.

Do Romantismo não aproveita apenas os temas, o elogio da organicidade medieval, os episódios que Herculano fixou fundamentais da nossa História, os heróis e a exaltação de nobres sentimentos empenhados na construção da pátria. Tem, é certo, um gosto heroico e a mesma admiração dos Integralistas pela forma como os Românticos reanimaram os tesouros pré-modernos. Mas herda também a estrutura frásica de Herculano, as frases longas de complexos contornos gramaticais que já não eram e não mais voltaram a ser moda. “A desproporção das forças em presença – 7.000 portugueses para mais de 30.000 inimigos — , o fulminante da vitória, as pesadíssimas perdas infligidas aos Castelhanos, a fuga do rei de Castela, a maneira como foi conduzida a batalha sob o aspecto puramente militar por esse extraordinário generalíssimo, assombroso de misticismo religioso e de génio guerreiro, que se chamou D. Nun’Álvares Pereira, fazem de Aljubarrota o ponto central da longa guerra havida com Castela e a vitória mais representativa do esforço dos nossos avós pela independência de Portugal.”, diz no discurso “Aljubarrota festa da mocidade”.

Numa frase, longa, claro, descreve a dificuldade da batalha, explica que consequências exacerbaram o seu simbolismo, troca o sujeito para um Nun’Álvares rapidamente biografado e volta ao primeiro para explicar a importância da batalha. A oração verbal (“fazem de Aljubarrota…”) surge no fim para, mesmo com a quantidade de apostos ao sujeito, conseguir manter o suspense. Se já soubéssemos que o elo de ligação entre a ladainha bélica estava na importância que dão a Aljubarrota, podíamos dedicar-nos independentes a elencar tudo o que julgamos essencial para fazer desta a verdadeira batalha da independência.

É o estilo narrativo dos românticos, que Salazar mescla com asserções curtas mais habituais nos discursos: “Compenetrados do valor, da necessidade na vida de uma espiritualidade superior, sem agravo das convicções pessoais, da indiferença ou da incredulidade sinceras, temos respeitado a consciência dos crentes e consolidado a paz religiosa. Não discutimos Deus”. É o próprio Franco Nogueira que atesta a influência. Em Coimbra, “Continuava fiel aos clássicos portugueses, ao Padre Manuel Bernardes, a Alexandre Herculano”. E é nestas leituras, recolhidas por Franco Nogueira, que podemos encontrar mais uma pista para o seu estilo.

Salazar a discursar em 1938

O biógrafo chamou “candura literária” àquilo que no Estado Novo se tornou uma espécie de vanguarda. Depois da moda do romance científico, das ilusões positivas em que Eça ou Teixeira de Queirós traduziram o romance de Zola, a literatura como que ressacou das suas ingénuas pretensões objectivas. Deixou de ser cozinhada em godés, descreu do futuro mirífico das Histórias Naturais e, farta das maravilhas da Civilização, agarrou-se aos restos de um mundo perdido. Não é preciso lembrar A Cidade e as Serras, o encanto de José Régio com a religiosidade popular ou Pessoa com o “Menino de sua Mãe”.

Estilo de época

A ruralidade, o povo e a infância, coisas exóticas num mundo cada vez mais urbano e aburguesado (e, demasiado óbvio mas para precaver de espertinhos, interpretado por adultos). Esta franja literária, porém, complexifica aquilo que eram já os temas base do romantismo. É que se o Romantismo também toma o povo como pretexto, não o toma como forma. A volúpia erudita de um Garrett ou de um Camilo contrastam com a forma de vida popular. Aquilo que Pessoa ou Régio já não têm e querem – a simplicidade do povo ou da infância – manifesta-se também na forma. Daí as Quadras ao gosto popular, daí, em parte, o “lirismo simples de António Correia de Oliveira” que Salazar admirava. O paternalismo brando dos discursos, o tom baixo, o elogio das virtudes quotidianas, tudo isto é já não “candura literária” mas um estilo de época.

Claro que Salazar também quer fugir à loquela tribunícia da Primeira República, adaptar o tom dos discursos à serenidade que quer ver no país, contrastar a sua com a prosa histriónica dos jornais da época; mas a forma ultrapassa a política e tem algumas das preocupações fundamentais da literatura.

A singeleza quadra com a personalidade, a estrutura dos discursos quadra com o próprio veículo, para obedecer à tese de Truman Capote de que a literatura é encontrar o tom adequado àquilo que se quer dizer. Salazar, nitidamente, encontrou-o: embora doutrinários, os discursos não têm um único conector lógico (logo, então, por conseguinte…) nem um raciocínio completo. É obviamente mais difícil seguir um raciocínio ouvido do que lido, pelo que a simplicidade – que melhor se diria clareza, já que a gramática é erudita e o vocabulário bastante rico – também se manifesta aqui. Manifesta-se nos temas, nas descrições e na estrutura, para se manifestarem também na personalidade. A “candura literária” já não é, nem inteiramente cândida, nem inteiramente falsa. A simplicidade, mais do que um engano, é um objectivo. Tanto em Salazar, como nos escritores considerados do seu tempo.

Mesmo nos tempos de maior euforia revolucionária, mesmo na crispação dos tempos de guerra, Salazar é bastante lacónico nos seus termos. Nunca faz comparações, não usa metáforas, tem um estilo absolutamente descritivo: empenha-se em caracterizar com precisão o estado das finanças, com as palavras mais certas e mais sóbrias, sem tomar de uns assuntos imagens que se pudessem aproveitar noutros.

Ora, os escritores do seu tempo, diz-nos Franco Nogueira, também eram lidos por Salazar na sua juventude. Não apenas ou já referido Correia de Oliveira ou Malheiro Dias – a literatura francesa, de Comte, Le Play ou Maurras (os primeiros mais antigos mas muito em voga na época) também terá corrigido a “indigência de imaginação” do Presidente do Conselho. Não que Salazar tenha alargado o seu campo de referências a misturas surrealizantes ou alegorias rebuscadas; mas aquilo que poderia de facto ser uma insuficiência literária – a falta de colorido – tornou-se um ex-libris da sua pena.

Mesmo nos tempos de maior euforia revolucionária, mesmo na crispação dos tempos de guerra, Salazar é bastante lacónico nos seus termos. Nunca faz comparações, não usa metáforas, tem um estilo absolutamente descritivo: empenha-se em caracterizar com precisão o estado das finanças, com as palavras mais certas e mais sóbrias, sem tomar de uns assuntos imagens que se pudessem aproveitar noutros. Esta “indigência”, porém, marca com o mesmo opróbrio o estilo de outros grandes prosadores. A falta de comparações é já uma reacção da Arcádia ao Barroco; mas o que José Agostinho e Bocage compensavam com a escolha de vocabulário erudito, grande elasticidade de temas e uma verve apaixonada está vedado a Salazar.

Por feitio não é apaixonado, por ofício trata de temas circunscritos e já estabelecidos. Salazar, tanto nas ideias como no estilo, aproxima-se assim de Maurras; esburgada a agressividade do Mestre da Action Française, tem a sua clareza e a sua aposta em fórmulas vigorosas e a dinâmica da prosa dada pela variedade verbal. É, de facto, nas palavras de acção que o vocabulário de Salazar mais foge do comum, na dinâmica verbal que há mais frescura. A riqueza verbal, aliás, característica do estilo clássico que Maurras tanto exalçava, traz à prosa a limpidez que não a torna imediatamente identificável como literária.

Salazar com António Ferro

Como se fossem sermões

É por não abundarem as repetições consentidas, os jogos de palavras e as referências discretas a passagens anteriores que a prosa é limpa. Não tem aliterações, tem apenas uma variedade discreta que lhe dá grande parte da elegância. Não será fácil extrair exemplos de uma característica que é própria de conjunto, mas as frases “A fraqueza dos regimes liberais está essencialmente em que, por imposição da sua própria doutrina – porque também eles a têm – se vêem forçados em muitas circunstâncias a parecer que não a possuem. Sempre para se sustentar têm de se contradizer” são um eco daquilo que ensejávamos demonstrar. Para um só tema – a existência de doutrinas liberais – sete verbos diferentes em duas frases. A mostrar que Maurras não é mestre apenas nas ideias de Autoridade e Hierarquia e que só não o é na violência do humor.

Ora, a serenidade tão característica de Salazar poderia fazer desconfiar de uma tese apresentada por António José Saraiva no texto de que tirámos a primeira destas linhas. Diz Saraiva que Salazar, educado na escola do século de Pascal, na prosa seiscentista, era grande leitor e seguidor do Padre António Vieira. Pela sua formação eclesiástica, pelo tom brando tão ao género do Pão partido aos pequenitos, pelo uso constante do superlativo absoluto sintético de inspiração latina, seria normal associar Salazar a Manuel Bernardes, Frei Luís de Sousa e toda essa gama de frades prosadores – Manuel Anselmo fá-lo e Barahona também. Agora, ao Padre António Vieira? Ao grande exibicionista das possibilidades da língua, ao verdadeiro barroco estilístico, ajoujado de jogos de palavras e malabarismos gramaticais? É certo que Salazar não usa os atavios do Jesuíta, mas o olho arguto de António José Saraiva não se engana: o ditador deve-lhe alguma coisa na estrutura da prosa.

A coabitação de contrários – “Tão frágil que a brisa ameaçava tombá-lo, tão forte que uma revolução o não podia subverte” (a propósito de Carmona) – o manejar simultâneo de duas ideias diferentes, tantas vezes em confronto, é tão característico dos sermões de Vieira como dos Discursos de Salazar. Vieira terá, é certo, a imaginação e a fabulosa capacidade de, a partir de uma doutrina conhecida, encontrar formas originais e divertidas de a transmitir. Salazar não terá a mesma destreza, mas também não a procura. É tão sóbrio quanto o outro é alegre, tão contido quanto o outro é exuberante.

Não podemos, porém, dizer que à sua elegância modesta falta originalidade. Entre a abstracção labiríntica dos tratadistas morais e a chã narrativa dos Historiadores, entre o Leal Conselheiro e a História de Herculano, Salazar conseguiu ter um discurso que fala das virtudes com o exemplo do país e em que eleva o país à aspiração da virtude. E isso poucos, mesmo entre os grandes doutrinadores, poucos conseguiram, menos ainda com tamanho donaire. Se, como diz Saraiva, será “o melhor”, não sabemos. Mas é com certeza um grande prosador. Estranhamente, talvez entre todos, e nesta matéria, o mais ilustre desconhecido.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.

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