Foi em julho do ano passado que Salman Rushdie fez as últimas correções ao seu novo romance. Um mês depois, foi alvo de um “ataque colossal” durante um evento em Nova Iorque, que o deixou cego de um olho e com uma mão temporariamente paralisada. Meio ano depois, “as grandes lesões estão saradas” e o novo romance chegou às livrarias no Reino Unido e Estados Unidos da América. Apesar das sequelas que a agressão lhe deixou (o escritor ainda está a fazer fisioterapia e psicoterapia), Rushdie recusa-se, como sempre se recusou, a “adotar o papel de vítima”. “Quero que eles [os leitores] se sintam cativados pelo conto, que sejam transportados”, afirmou à The New Yorker, na primeira entrevista concedida depois do incidente, em fevereiro passado, sugerindo que não quer que o que aconteceu em agosto de 2022 desvie a atenção do que é realmente importante: a publicação de Victory City.
Victory City (“Cidade da Vitória”) narra a história de Pampa Kampana, que se encontra ligada aos destinos de uma cidade. Aos nove anos, após assistir ao suicídio da mãe junto às margens do Rio Pampa, na sequência da derrota do exército do líder local, Pampa adquire poderes sobrenaturais e é inspirada por uma deusa a criar, através das artes mágicas, uma nova e poderosa cidade, Bisnaga, onde as mulheres têm os mesmos direitos e deveres que os homens. A narrativa é baseada num poema fictício, “Victory and Defeat”, escrito em sânscrito (uma antiga língua utilizada na zona da Índia e Nepal) num pedaço de argila. O texto foi encontrado quase dois séculos depois dos eventos que relata, restaurando o conhecimento perdido sobre Bisnaga. Várias publicações internacionais, como a The New Yorker, notaram a influência da fábula no novo romance de Rushdie, autor de obras onde a fantasia e a realidade se cruzam. Mas este não é o único género literário cuja presença que se manifesta. O épico indiano e a narrativa de viagens medieval parecem ter também inspirado o escritor, que se baseou nas leituras que fez da mitologia hindu e de história do sul da Ásia.
O romance aborda questões que são centrais na obra de Rushdie, como a intolerância, o fanatismo religioso e a misoginia. Victory City abre com a descrição de um sati, uma prática hindu em que uma viúva se sacrifica na pira funerária do marido. As origens do sati são obscuras, mas sabe-se que a prática, originalmente associada às castas mais altas, se popularizou no período medieval entre as diferentes camadas da sociedade indiana. É após assistir à morte da mãe, que se mata durante uma espécie de suicídio em massa envolvendo todas as viúvas dos soldados caídos, que Pampa Kampana se transforma e começa a ser um vínculo de transmissão da vontade divina. Mas para que o seu destino se cumpra, Pampa tem de aguardar a chegada dos dois irmãos que governarão os destinos de Bisnaga. Durante quase uma década vive escondida numa cave habitada por um sábio monge. Vidyasagar pregava a castidade, mas tirou a virgindade a Pampa e violou-a consecutivamente durante nove anos. Pampa aguentou tudo em silêncio, aceitando até o nome que Vidyasagar lhe pôs, Gangadevi, e esquecendo o seu.
O livro explora as contradições do hinduísmo relativamente à posição da mulher. A religião que celebra a sexualidade feminina através de relevos em templos que mostram mulheres e homens em atos sexuais e da existência de prostitutas sagradas (o grande tempo de Rajarajeshvara, na cidade de Tangore, albergaria cerca de 400), é a mesma que alimenta diferentes tipos de preconceitos, sobretudo em relação às viúvas, que tradicionalmente não podiam voltar a casar e deviam manter uma existência frugal, dormindo no chão e tomando uma única refeição diária. Assombrada pelo suicídio da mãe, causado pela misoginia das crenças hindus, Pampa, uma feminista à frente do tempo, aspira a criar uma cidade onde as mulheres possam ter os mesmos direitos que os homens e que os homens possam olhar para as mulheres de outras maneiras. E é isso que acontece durante as primeiras décadas da existência de Bisnaga. Apesar do fanatismo crescente do primeiro rei e marido de Pampa, Hukka Raya I, que se deixa influenciar pelas ideias religiosas de Vidyasagar, as mulheres conseguem manter uma posição de destaque na sociedade. É sobretudo a prática religiosa que é afetada, com Hukka a querer impor novos costumes que não fazem parte da tradição religiosa da cidade. Com a subida ao trono de Bukka Raya I, após a morte de Hukka, a liberdade de culto é restabelecida.
O sonho cai por terra quando, mais à frente no livro, o conselho real se reúne para decidir o futuro da dinastia imperial. Pampa propõe que as três filhas, fruto do casamento com Hukka, possam ascender ao trono após a morte do então rei, o irmão de Hukka. Discursando perante Bukka Raya I e os conselheiros, a rainha defende a posição das mulheres na sociedade de Bisnaga, destacando que, ao contrário de outros reinos, as mulheres da sua cidade não usam véus ou andam escondidas, têm acesso a educação e cultura, desempenham as mesmas funções que os homens e têm um papel determinante na proteção do império (o exército é composto quase na totalidade por mulheres). “Acreditamos nas nossas mulheres”, declara Pampa Kampana, que educou as filhas para serem “melhores do que homens”. “Então porque é que não devemos deixar que uma mulher nos governe? Negar esta possibilidade é uma posição insuportável. Deve ser repensado.”
Indignados com a proposta, os três filhos de Pampa e Bukka invadem a sala do conselho e exigem o direito a governar sobre as irmãs. Pampa decide, “com um coração pesado”, expulsá-los de Bisnaga e mantê-los sob vigilância numa zona remota do império. “São monstros. Não são meus filhos”, afirma perante o espanto dos conselheiros e do rei, que, temendo uma revolta, decide adiar a tomada de uma posição. Mas “nenhuma decisão é a pior decisão”, comenta o narrador, que descreve o caos que se abate sobre a cidade. “No dia seguinte, houve muitos ataques violentos contra mulheres por aqueles que se opunham à posição da rainha”, relata. “Ao quinto dia, toda a cidade estava enraivecida, aquela fação contra a outra, e ao sexto dia cada fação estava a acusar a outra de pensamentos heréticos, e ao sétimo dia a violência estava descontrolada.”
O império de Bisnaga perdurou por mais 100 anos. Pampa Kampana, que tinha recebido o dom de viver mais do que os comuns mortais, continuou a lutar contra a intolerância na sua cidade, procurando ser reconhecida por todo o seu trabalho, uma posição difícil de alcançar, mesmo tratando-se de uma mulher com poderes mágicos que tinha sido abençoada pelos deuses. Mas foram poucos os momentos em que o brilho das primeiras décadas foi restituído. A última época dourada de Bisnaga, durante o reinado de Krishnadevaraya, acabou com um acesso de loucura do rei que, consumido pelas intrigas palacianas e as lutas pelo poder, ordenou que Pampa, a quem tinha dado um lugar de destaque no seu conselho, e o seu principal ministro, Timmarasu, fossem cegados. Pampa, a outrora poderosa criadora e rainha de Bisnaga, entrou num processo de declínio, passando a depender da caridade alheia.
Bisnaga, a cidade quase perfeita que foi batizada por um vendedor de cavalos português
A cidade estava ainda a nascer quando apareceu na região um comerciante de cavalos e explorador português chamado Domingo Nunes. Era “bonito como a luz do dia”, tinha olhos verdes “como a erva ao amanhecer” e o cabelo vermelho “como o sol do poente”. Gaguejava ligeiramente, mas isso só o tornava “mais charmoso”. Pampa Kampana apaixonou-se por ele, tornou-o seu amante e permitiu-lhe renomear o império: Vijayanagar, a “Cidade da Vitória”, tornou-se Bisnaga, uma versão mais simples do nome original que Nunes não conseguia pronunciar.
Bisnaga teve uma existência real. Foi fundada na primeira metade do século XIV por dois irmãos no planalto do Decão, no sul da atual Índia, e perdurou até meados do século XVI, quando foi conquistada por uma confederação muçulmana, pilhada e finalmente abandonada. As suas ruínas, junto à cidade moderna de Hampi, foram classificadas como Património Mundial pela UNESCO em 1986. Foram consideradas em risco pelo mesmo organismo entre 1999 e 2006. Os principais relatos sobre Bisnaga, o nome dado pelos portugueses a Vijayanagar, foram escritos pelos exploradores Domingo Paes e Fernão Nunes na primeira metade do século XVI. Estes terão inspirado a personagem de Domingo Nunes, cujo nome parece ter sido criado a partir da junção dos nomes dos dois portugueses, e também a de Fernão Paes, o segundo amante de Pampa. Rushdie faz referência a um terceiro português, Hector Barbosa, que tem o mesmo apelido de Duarte Barbosa, que visitou Bisnaga no início do século XVI.
Pampa não fez de Barbosa seu amante (apesar de este ser ruivo e de olhos verdes como os outros dois portugueses), mas viveu, durante um período, com Niccolò de’ Vieri, um viajante veneziano, na casa dos estrangeiros. Vijayanagar foi visitada por vários italianos desde a sua fundação no século XV até à sua queda, no século seguinte, mas o mais famoso explorador veneziano do período medieval é Marco Polo, autor de um famoso livro conhecido em português como Viagens (as obras medievais não tinham títulos e, por isso, estes variam consoante as traduções), que descreve as suas aventuras no oriente. Polo viveu antes da fundação de Bisnaga (século XVIII), e não tinha por isso como conhecer a cidade, mas é impossível não pensar nele ao ler Victory City, sobretudo quando a China, para onde uma das filhas de Pampa se mudou, é referida — Polo terá sido o primeiro europeu a visitar a visitar o país.
A importância das antigas crónicas e narrativas de viagem para o conhecimento do oriente (e não só) durante o período medieval, e para a construção do próprio romance, é salientado pelo facto de o narrador apontar como fonte da sua história o poema perdido de Pampa, que é por vezes alvo de comentários explicativos, que foram colocados entre parêntesis e em itálico. Essa influência pode ser usada para explicar a ‘secura’ do texto, supostamente inspirado no antigo texto, e também a falta de profundidade das personagens. Estas não passam de fantasmas que gravitam em torno de Pampa Kampana, a quem falta a magia de outras personagens femininas sobrenaturais de Rushdie, como a jinnia Dunia, de Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites (2015; publicado em Portugal em 2016). A própria cidade de Bisnaga é uma espécie de miragem da qual é apenas possível distinguir alguns contornos difusos, como as altas muralhas ou os templos ricamente decorados com frisos eróticos. Alguns críticos consideraram a superficialidade das personagens uma ‘falha’ do romance de Rushdie, mas esta explica-se facilmente se se tiver em conta que o texto pretende ser o relato do nascimento e queda de uma importante cidade, contada com base num texto que é seu contemporâneo e que tem, por isso, traços do período em que foi escrito.
A ideia de uma história dentro de uma outra história foi explorada por Rushdie no seu romance anterior, Quichotte (2019; publicado em Portugal em 2020), que narra a carreira falhada do escritor indiano Sam DuChamp e a vida da sua personagem, Quichotte, inspirada na obra homónima de Miguel de Cervantes. Em Victory City, criador e criação fundem-se. Pampa, a autora do épico em sânscrito encontrado num pedaço de argila, é a mãe da nação cuja história ela relata. O barro em que a rainha de Bisnaga escreveu a sua história é o seu derradeiro testemunho — o seu pai, oleiro de profissão, ensinou a sua mãe a fabricar peças em barro porque acreditava que as mulheres deviam poder fazer o mesmo trabalho que os homens. Pampa, que aprendeu olaria com a mãe antes desta morrer, cresceu sabendo que ser mulher não era ser menos do que um homem. Na mitologia judaico-cristã, e também na grega, que a antecedeu e influenciou, o homem é criado a partir do barro pelos deuses. A mulher nasce depois, para lhe fazer companhia. O mesmo acontece na mitologia hindu — depois do homem, apareceu a mulher. Em Victory City, é Pampa Kampana, a deusa, que é a modeladora de barro e a criadora da humanidade, uma inversão inteligente da narrativa usual que chama a atenção para o papel necessariamente fundamental da mulher na sociedade e na criação de vida.
Ainda que Victory City não traga nada de novo em relação às obras anteriores de Rushdie, o romance, uma teia complexa de referências tecida com grande mestria, não deixa de ser uma importante defesa das liberdades individuais num tempo em que estão sob ameaça. Prova de que a passagem do tempo nada fez mudar é o ataque de que o autor foi alvo em agosto do ano passado. Rushdie, que aprendeu a viver com uma sentença de morte a pesar sobre a cabeça, correu risco de vida quando menos achava que seria possível. O fanatismo religioso do período moderno que levou ao lançamento de uma fatwa contra o escritor no final dos anos 80 não desapareceu; apenas se passou a materializar de outra forma. Este é abordado de forma subtil em Victory City. No período final do império de Bisnaga, a luta pela verdade religiosa não se manifesta apenas na defesa de certas e determinadas práticas, mas também no ataque a outras religiões, sobretudo o islamismo, uma situação que antevê os confrontos da Índia atual, em que a maioria hindu tenta subjugar a minoria muçulmana. A ideia de que o tempo nada muda é personificada pela própria Pampa, que assiste durante os seus mais de 200 anos de vida à repetição da história.
O novo romance de Rushdie revela uma visão muito negativa do mundo. Bisnaga é um espelho da história da humanidade, com os seus avanços e recuos em relação aos direitos das minorias e liberdades individuais. A questão do aborto nos Estados Unidos é um dos episódios mais recentes que mostra que nenhum direito é garantido e que uma luta de muitos anos pode ser facilmente dissolvida numa questão de dias. Depende de quem está no poder. Pampa, que julga ter transmitido os valores corretos aos seus filhos, conclui que estes são “pequenos bárbaros barulhentos” que não respeitam as mulheres e que não acreditam na igualdade de género. Também em relação à população de Bisnaga a criadora da cidade conclui, perto do final do romance, que não há nada que possa fazer — deixou de ter poder de inspirar nos outros aquilo que ambicionava para eles. Bisnaga, a cidade que nasceu perfeita, deixou de o ser a partir do momento em que o seu destino deixou de estar nas mãos dos deuses e passou a depender dos homens, imperfeitos por natureza.