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Graceja que há “muita gente” parecida com ele no mundo – “nem é tanto pelo nariz, que é bem estranho, mas por causa dos olhos que são assim, descaídos”. Talvez haja. Mas em Portugal, não. Salvador Martinha é, por exemplo, o primeiro humorista português (e o único) a ter um espetáculo de stand-up na Netflix.
Estreou-se na TV antes mesmo de se estrear nos palcos – “não fazia a mínima ideia de como é que aquilo se fazia!” –, participou em séries, apresentou “talk shows”, e hoje ouvimo-lo na rádio. Deixou a RFM, está na TSF, e lidera os podcasts em Portugal com o programa de entrevistas “Um para Um”. Mas Salvador é sobretudo um stand-up comedian, de palco, de se fazer à estrada semanas a fio, de atuar ao vivo, “mas que também faz outras coisas”. E tem um espetáculo novo, mais “profundo e pessoal”: “Tipo Anti-Herói”, assim se chama. Porquê mais profundo e mais pessoal? “Começam a faltar-me os temas corriqueiros e tenho que me virar para mim. E é quanto tu te voltas para ti que a tua comédia é mais profunda.”
A família de Salvador pelo lado materno, da mãe Rita Ferro aos bisavós António Ferro e Fernanda de Castro, tem uma longa e “extraordinária” tradição na cultura, sobretudo na literatura. E o filho e bisneto conviveu desde sempre com gente das artes em casa. Algo que que o formaria: “A minha mãe habituou-me a falar de igual para igual com escritores, escultores, pintores…” Uma mãe que (pelo menos no começo) Salvador Martinha nem sempre assumiu que o era. “Quando tu és filho de uma figura pública, as pessoas fazem sempre uma associação entre os dois. É quase como se tu herdasses todos os valores e todas as características daquela pessoa. Torna-se muito complicado lidar com isso”, explica.
Na escola era o “aéreo”, que seguiria Publicidade e Marketing por ser “chico-esperto” — e querer estudar pouco sem, com isso, deixar de estudar de vez. Um “mitra das estações de serviço” é que não poderia ser. Quis ser futebolista, depois jornalista, acabou por não ser nem uma coisa nem outra, e deixaria a faculdade a meio. Cedo percebeu (ainda em criança) que conseguia “premeditar o humor” e um acaso levou-o, aos 19 anos, a ser humorista até hoje. Só não lhe perguntem na rua “Então, já tens telemóvel? Então, já tens telemóvel?!”, ou vai-se-lhe o humor todo: “Epá, isso foi chato!”
A criança que cedo premeditou o humor, o jornalista que se perdeu porque “dá trabalho” e o tímido que “desembarcou” na TV como na Normandia
Quando é que percebeste que tinhas graça? Há muitos humoristas que o percebem ainda em criança, na escola. Mas também há muitos que dizem que na escola não tinham graça nenhuma, que eram a criança tímida a levar calduços das outras. Eras o tímido ou o engraçadinho?
Era uma mistura do engraçadinho e do tímido. Eu acho que se é engraçado para não se ser tímido. É como fugir para a frente. Mas eu lembro-me perfeitamente de quando comecei a perceber o poder que o humor tinha. Quando és criança, as pessoas não acreditam que uma criança tenha capacidade para fazer rir voluntariamente. Nós rimos das crianças quase por condescendência. Rimos dos disparates. Mas lembro-me de em criança premeditar o humor “involuntário”. Lembro-me perfeitamente de perceber que, assim, premeditando, as pessoas me achariam graça. Vou-te dar um exemplo: eu sabia que se dizia cavalheiro. Mas certo dia virei-me para a minha mãe e disse-lhe: “Oh, mãe… O pai é muito educado com as mulheres, é cavaleiro.” E a minha mãe riu-se. E contou às amigas. Eu nunca lhe relevei — e estava-me a sentir superior por isso — que foi propositado. E pensei: “Pobre mãe!” [Risos] Sabia que ela só se iria rir de um erro meu se fosse “involuntário”. Essa foi a primeira vez em que me apercebi que seria interessante premeditar o humor para fazer os outros rir.
Mas estavas longe de imaginar que o humor poderia vir a ser a tua profissão.
Completamente longe. Mas esse era um pequeno segredo que eu tinha: eu sabia “fazer rir”.
O que é que em criança sonhavas vir a ser profissionalmente? Tanto quanto sei, futebolista.
Sim, sim. Eu queria ser jogador de futebol. Mas também pensei ser jornalista. Sempre gostei muito de conversar com as pessoas. Aliás: eu massacrava as pessoas com entrevistas em criança. Tinha um gravador pequenino de cassete. E entrevistava a minha mãe, o meu pai, os meus amigos. Durante horas! Lá está: queria alguma coisa que me desse visibilidade. E imaginava-me num telejornal a fazer grandes entrevistas. Mas depois percebi que era muito chato ser jornalista, que era preciso estudar muito. E desisti.
E o que é que estudaste depois de terminado o secundário?
Estudar, nunca estudei realmente nada. [Risos] Estudar para mim sempre foi um álibi. O que eu não podia era estar na rua, não podia ser um “mitra” das estações de serviço, a comprar mini-croissants e litrosas. Então, tinha que fingir que estava na escola a estudar. Sempre fui “aéreo” nas aulas. A minha capacidade de concentração é muito reduzida. Mas deixava-me inspirar pelo que os professores diziam — o que por um lado é bom e por outro é mau. Se havia um professor que dizia uma coisa interessante — eu gostava muito de História, por exemplo –, se estávamos a falar dos Descobrimentos, havia ali uma centelha que me fazia sentido e eu já estava nos Descobrimentos, a navegar no mar alto e a chegar ao Brasil. [Risos] Na faculdade, mais tarde, fui estudar Marketing e Publicidade, porque é exactamente o curso — na minha opinião — para quem não tem vocação nenhuma, o curso do “chico-esperto”. Não queres estudar muito, mas também não queres deixar de estudar? Então vai para Marketing e Publicidade, que “dá para tudo”.
Mas nunca foi uma coisa imposta pelos pais, teres que acabar um curso superior?
Não, não. Até porque não acabei… [Risos] Optei pelo de Marketing e Publicidade por achar que, às tantas, podia ser criativo de publicidade, um copy. E até poderia ter sido. Mas era chato estar a obedecer aos briefings todos. E nem sempre os produtos são interessantes de trabalhar. Por exemplo: ser criativo da Sonasol, para mim, seria deprimente. Mas o meu pai queria que eu acabasse o curso. Ainda hoje acredita que vou acabar o curso.
O humor começa a tornar-se mais sério nessa altura, a da faculdade. É então que apareces pela primeira vez no “Levanta-te e Ri”, certo?
Foi exactamente nessa altura, sim. Tinha 19 anos. Pouco antes, veio a Portugal o Steven Rawsonville, que era o diretor do Instituto de Comédia em Nova Iorque. Ele organizou cá um workshop, onde tive a sorte de participar. Fiz o workshop, adorei stand-up comedy, e passado um mês estava no “Levanta-te e Ri”.
Como é que surgiu o convite para participares no programa? Eras um amador.
O mercado de stand-up em Portugal não tinha nada. Não existia. Não havia quem fizesse stand-up. Então, tudo o que havia, era absorvido pelo programa.
Foi assustador para ti, presumo? Que nunca tinhas feito um espectáculo ao vivo, só o workshop.
Assustador? Não. Estava completamente aterrorizado! Estreei-me no workshop do Steven Rawsonville e a minha segunda atuação foi no Levanta-te e Ri. Honestamente, não fazia a mínima ideia de como é que aquilo se fazia. Mas sabia que alguma coisa não iria correr bem. O que é que fiz? Escrevi um guião, mas não mostrei nada a ninguém. Até porque o meu círculo de amigos não estava para aí virado. Nunca tive amigos ligados “às artes” — e muito menos ao humor. Logo, também não tinha a quem pedir conselhos. Em Portugal nem se sabia muito bem o que era aquilo da stand-up. O convite surgiu porque a produtora do “Levanta-te e Ri” foi assistir ao final desse workshop. E gostou de mim. Mas eu não tinha técnica, não sabia o que estava a fazer.
Hoje, quando revês — se é que revês — as primeiras aparições no programa, o que é que achas desse Salvador, de 19 anos?
Felizmente não está na Internet. E ainda bem. Na minha opinião, um humorista — e digo sempre isto à malta mais nova — só deve ir à TV depois de trabalhar muito. É muito importante trabalhar na sombra, trabalhar nos bares, nos comedy clubs, ter uma coisa bem conseguida, bem oleada, e depois, sim, mostrá-la na TV. Por exemplo: quando vês o programa do Conan O’Brien ou do Jay Leno, quando alguém lá vai fazer cinco minutos de stand-up, esse “alguém” deve ter algumas duzentas atuações em cima. E esse é o primeiro registo na TV deles. Não pode ser à segunda atuação que vais estar a falar para um milhão de pessoas, como aconteceu comigo. Não pode ser esse o percurso na stand-up. Nós estávamos na linha da frente e tínhamos que nos safar. É o que é. Senti-me a desembarcar na Normandia — e levei logo um tiro! Mas teve que ser. Tinha que ser alguém.
No programa, os humoristas mais experientes — Bruno Nogueira, Ricardo Araújo Pereira, o próprio Marco Horácio — davam-te conselhos sobre o que devias fazer ou não fazer?
Não. Até porque, nessa altura, era tímido. Chegava ao “Levanta-te e Ri”, ficava num cantinho sentado, fazia o que tinha a fazer e ia-me embora. Não falava com ninguém. Não consegui absorver nada deles. Nessa altura não aprendi nada com ninguém. Mas tentava fingir que sabia o que estava a fazer. Mas não sabia.
Mas certamente que alguma coisa correu bem na tua primeira aparição. Voltariam a convidar-te mais vezes. Quais é que foram as primeiras reações? E quando é que percebeste que fazias aquilo bem, que podia ser algo sério no futuro?
Os meus amigos estranharam ao ver-me. Quando fui ao “Levanta-te e Ri” disseram-me: “Epá, isto não és tu!” Porquê? Porque habituaram-se a ver-me muito descontraído e, no programa, viam-me nervoso. Sentiram a diferença. Acho que foi o desnorte dessas primeiras aparições na TV que, ao deitar-me abaixo, me fez também perceber que tinha que trabalhar a sério. Quando o programa acabou, comecei a pensar porque é que o meu humor “não batia”. E comecei a estudar mais. E estudando, a apaixonar-me mais pelo stand-up. Precisava de saber como é aquilo se fazia: o texto, o “acting”, os tempos.
Mas chegaste lá por tentativa e erro, certo? Não se aprende tudo num workshop.
Sim, tentativa e erro. Até hoje é assim.
Um “Alcómico” que entregava flyers de bigode, o talkshow “à Conan” e a censura por causa dos iPads do Ronaldo
É depois do “Levanta-te e Ri” acabar que vais parar a um grupo de stand-up: os Alcómicos Anónimos. Vocês eram todos — tu, Rui Sinel de Cordes, Zé Beirão e Alex Romão — muito novos e inexperientes. Mas queriam “furar” no humor em Portugal, que era fechadíssimo.
O grupo foi fundamental na minha vida. Todos eles se tornaram nos tais “amigos artísticos” que não tinha. Em 2004 acaba o “Levanta-te e Ri” e, passado um ano, conheço esse grupo. Conheci-os através do Miranda, que fez parte do grupo numa fase inicial — ele até tinha sido dos quatro o único que também chegou a ir ao “Levanta-te e Ri” –, e ele é que conhecia toda a gente. Foi ele que nos juntou.
Lembro-me de vos ver à porta das faculdades em Lisboa, a entregar flyers para os vossos primeiros espetáculos ao vivo. Ainda te recordas desse tempo, em que era preciso fazer tudo? Hoje tens uma “máquina” à tua volta que te trata de quase tudo.
Epá, lembras-te disso? Lindo!
E lembro-me que usavas bigode…
[Risos] É verdade. Porquê, perguntas tu? Porque nós tínhamos ido ao Fringe Festival, em Edimburgo, e repáramos que todos os humoristas tinham penteados diferente. E dissemos: “Epá, estamos muito iguais, malta. Vamos fazer assim: a partir de amanhã cada um vai aparecer com um ‘apontamento’ diferente!” Ninguém apareceu diferente no dia seguinte. Fui o único a aparecer com bigode. Tramaram-me.
Mas voltando aos dias em que faziam tudo sozinhos.
Ah, sim. Nós especializamo-nos em sketch comedy e aquilo tinha realmente graça — um humorista tem que saber quando tem graça e quando não tem; os três espetáculos que nós fizemos tinham graça. E aquilo foi numa altura em que não existia Facebook, por exemplo. Como não tínhamos dinheiro para nos promover, como não existia uma plataforma como hoje há para o conseguir — nem éramos entrevistados pelo Observador da altura –, íamos para a rua entregar os flyers que nós próprios imprimíamos do nosso bolso. Nós éramos tudo: humoristas, guionistas, aderecistas, produtores.
Fizeram alguns espetáculos ao vivo — na Sociedade Guilherme Cossoul, no Teatro Mundial, também no São Luiz. Mas certamente que levaram muitas “negas” na altura, não?
Muitas. E não só das salas de espetáculo e dos teatros. Por exemplo: nós queríamos publicar em jornais. Na altura, as Produções Fictícias faziam-no e nós queríamos fazer também. Então, enviámos maquetas para tudo o que era publicação, desde revistas de turismo, de carros. E a única que conseguimos vender foi ao Record, uma página por semana. Mal sabe o Record que durante cinco anos foi o nosso sustento. [Risos]
Na altura, ganhava-se menos do que hoje no humor, o “bolo” tinha que ser a dividir por quatro, o trabalho escasseava na área: como é que pagavas as contas?
Quando comecei a ganhar aquele dinheiro, pouco dinheiro, saí de casa dos pais e fui morar com amigos. Éramos quatro naquela casa. E estava sempre no “vermelho”. Mas havia uma coisa fixe: a minha conta bancária podia ter um saldo negativo de 250 euros todos os meses — e tinha. [Risos]
O que é que veio a seguir aos Alcómicos Anónimos?
A minha grande paixão sempre foi o stand-up. Nos Alcómicos nós fazíamos sketch comedy. Mas também tínhamos cinco minutos de stand-up cada. E eu e o Rui [Sinel de Cordes] éramos os que mais gostávamos disso. Passado pouco tempo do fim dos Alcómicos, continuei a fazer espetáculos, primeiro em bares, depois em salas maiores e com mais público. Não fui logo fazer um espetáculo a solo. Antes, precisava de amadurecer um bocadinho. Aproveitei esse período para fazer um curso de formação de atores. Não queria ser ator, mas foi-me muito útil: para aprender técnicas de movimento de corpo, de postura, voz, para descobrir as minhas limitações, as inseguranças. E isso foi importante na minha descoberta enquanto humorista e enquanto homem. O que é que curioso é que quando os meus amigos foram ver o primeiro espetáculo, e comparando-o com as primeiras aparições no Levanta-te e Ri, disseram: “Epá, isto sim: já és tu!” E isso significava que eu estava no bom caminho.
Pouco tempo depois do Canal Q começar, tens lá um programa em que fazias de tudo: stand-up, sketch comedy, entrevistas. Era uma ambição tua voltar à TV, agora neste formato de talk show “à americana”?
Era uma coisa que queria fazer, sim. Mas a ideia do programa não foi minha, foi das Produções Fictícias. Sempre gostei muito do Conan O’Brien. Era uma das minhas referências no humor. Aquele formato que ele faz, para mim, é um formato de sonho. Este programa [“Especial”] foi das melhores coisas que eu fiz. Numa primeira fase havia um monólogo e depois havia a entrevista. O programa tinha audiências dentro do Canal Q. O que eu gostava mais era dos monólogos, mas o que tinha as audiências eram as entrevistas. Mas na TV é assim: tens que fazer “concessões”. É como o Conan: se calhar o que ele gosta mais nem é de entrevistar. Nem eu. Mas acho tenho facilidade em entrevistar, porque sou curioso. Gosto de aprender com os entrevistados. E é um formato que gostaria de voltar a fazer — e acho que isso vai acontecer um dia. E também acho que, quando acontecer, será diferente. É importante que para quem vai ao teu talk show aquilo faça sentido. E na altura do Canal Q, no começo, não fazia. Os entrevistados quase que me faziam “um favor” ao ir. E pensava: os entrevistados estão a fazer um favor ao vir, não posso “meter-me” com eles. Acho que hoje as coisas são diferentes. Talvez pudesse ser fixe para as pessoas irem ao meu programa. Eu próprio estou muito mais à vontade. Agora já é para entrar “a partir”. [Risos] O que eu tenho que ser é incrivelmente livre. E no Canal Q era. Na altura houve alguém que me disse: “Aproveita bem, que isto pode nunca mais acontecer!” E essa pessoa tinha alguma razão. Eu podia fazer de tudo. Nunca ninguém me censurou.
Mas alguma vez foste censurado em algum lado?
A censura não vem com uma carta que diz “VOCÊ FOI CENSURADO”. Às vezes são “sugestões” que te fazem: “Não lhe quero dizer como fazer o seu trabalho, mas atenção a isso, Salvador…” Mas também não quero diabolizar essas sugestões. Acho que as pessoas estão a fazer o trabalho delas.
Dá-me um exemplo.
Às vezes, a censura — ou a sugestão — tem muito que ver com os patrocinadores. Faz parte. No jornal Record, por exemplo, aconteceu-me isso. Foi uma situação chata. Escrevi um artigo que fazia referências à Nike e ao Ronaldo — e até gosto do Ronaldo. Na altura, ele fez um vídeo qualquer em que testava os iPads todos. Isto numa altura em que se falava muito de crise. E aquele vídeo, na minha opinião, relevou alguma ingenuidade da Nike; o que se via no vídeo era esbanjamento, só isso. O problema é que a Nike era patrocinadora do jornal Record. E o Record fez o que lhe competia. A mim, enquanto humorista, cabe-me não aceitar isso e continuar a ser livre.
“Quando um dia a minha mãe partir, posso continuar a vivê-la através dos livros que ainda não li”
Mas voltando ao Canal Q. Certo dia, a tua mãe [a escritora Rita Ferro] foi convidada do programa “Especial”. Mas durante muito tempo não assumias que a Rita Ferro era a tua mãe. Porquê? Para que o público não fizesse uma “colagem” entre o teu trabalho e o dela? Para que não te tratassem como “O filho da Rita Ferro”?
Eu achei que isso [não assumir] seria muito importante para a construção da minha identidade. Quando tu és filho de uma figura pública, as pessoas fazem sempre uma associação entre os dois. Torna-se muito complicado lidar com isso. É quase como se tu herdasses todos os valores e todas as características daquela pessoa. E nunca disse que a minha mãe era a Rita Ferro por causa disso. Ao dizer que sou filho de quem sou, as pessoas criam logo um “chip” em relação a mim. Gostava que as pessoas descobrissem — embora tenha muito orgulho na minha mãe, atenção — quem é que eu sou, por mim e pelo trabalho que faço. Quando ela vai ao programa, estava mais à vontade com tudo isso. Era um programa sobre o Dia da Mãe. E fazia sentido ir.
Mas não é apenas a tua mãe que tem um percurso ligado à cultura. O teu bisavô António Ferro foi director do Secretariado de Propaganda Nacional, editor da revista Orpheu, jornalista. A tua bisavó Fernanda de Castro foi escritora. Isso foi uma pressão para ti?
A minha mãe sempre foi muito exigente com os filhos. Lá está: por causa desse passado ligado à cultura e das pessoas extraordinárias que a minha família teve. Ela lembrava-me constantemente disso. Não me podia esquecer de onde vinha, tinha de ser muito bom naquilo que fazia. Lembro-me de ela me fazer pirâmides e dizer: “Salvador, os poetas estão cá em cima, depois filósofos, depois escritores…” [Risos] Habituei-me desde muito cedo a respeitar as pessoas da cultura. É verdade que sempre fui um aluno distraído, mas “bebia” um bocadinho do universo cultural que estava à minha volta. Tinha 12 anos, chegava a casa para jantar, e estavam lá escritores, escultores, pintores. E desde muito cedo, a minha mãe habituou-me a falar de igual para igual com as pessoas. Que é uma coisa que ainda hoje em dia faço. Habituei-me desde muito cedo a pensar pela minha cabeça.
Tu lês os livros da tua mãe? E ela: vai aos teus espetáculos? São críticos — no melhor dos sentidos — do trabalho um do outro?
A minha mãe é “terrível”, porque quer estar sempre na primeira fila. Durante algum tempo, tinha que ser eu a “obrigá-la” a mudar-se uma fila para trás. Hoje em dia é capaz de se sentar na quarta ou na quinta fila. [Risos] É incomodativo estar a fazer um espetáculo à frente dos teus pais. Quando estão os teus pais na primeira fila, sentes-te sempre uma criança. Quando aos livros dela — e a lê-los –, sou um péssimo filho. Confesso: não li todos os livros da minha mãe. Mas ela também tem alguns vinte livros! Acho que tenho uma ideia romântica sobre isto: quando um dia a minha mãe partir, ainda posso continuar a vivê-la através dos livros que não li. É a minha desculpa e é isso que lhe digo. Mas há um livro em particular que me influenciou muito enquanto humorista, que foi “Os Cromos de Rita Ferro”. Um livro que é completamente humorístico, sobre os vários tipos de personagens: o poeta, o falhado, o não-sei-quê. E é um livro muito engraçado. Mãe: faz uma reedição desse livro. Ela hoje preocupa-se menos comigo. Sabe que as coisas estão a correr bem e preocupa-se menos.
Por falar em coisas a “correr bem”. O Canal Q correu bem — e deu-te visibilidade. E é aí que começam a surgir contactos para fazeres publicidade. Não se paga mal na publicidade em Portugal. Fazer publicidade serviu-te para financiares outros projectos? Espetáculos maiores, melhores?
Fazer publicidade foi muito importante. O dinheiro influencia muito a vida de um humorista. Acredito que gerir uma carreira é saber gerir dinheiro. O anúncio que eu fiz para a Optimus na altura do Canal Q foi fundamental para eu poupar dinheiro e passar a ser mais seletivo naquilo que fiz dali em diante. É muito importante saberes dizer que não a coisas — e que sim a outras. Mas sempre fui muito poupadinho. O meu objetivo nunca foi ter uma grande casa e um Porsche. O meu objetivo é ter sempre dinheiro para conseguir fazer só as coisas de que gosto. Isto é ao mesmo tempo egoísta e generoso: é egoísta porque eu só vou fazer o que gosto; mas, ao mesmo tempo, se eu só fizer o que gosto, vai ser muito melhor e mais interessante para o público.
Esse primeiro anúncio fez com que as pessoas te reconhecessem mais do que antes. Sobretudo na rua.
Epá, isso foi muito chato. Foi um “boom” de popularidade gigantesco para mim. Ainda por cima, era um anúncio com o meu nome: Salvador. Quando a Optimus me foi buscar, queriam que eu tivesse outro nome. Imagina: Luis. Era “Luís, o último homem sem telemóvel”. E eu é que disse que só faria o anúncio se fosse com o meu nome. Se não, de repente, era o “Luís” — já foi o que foi chamarem o meu nome todos os dias na rua, agora imagina se me chamassem Luís durante ano e meio. Mas foi terrível. Em todo o lado brincavam comigo: “Então, já tens telemóvel? Então, já tens telemóvel?!” Mas é engraçado que a publicidade tem um período. Ao fim de um ano, acabou-se a brincadeira. Mas foi chato lidar com isso. Era muito intenso, até massacrante. Antes, eu era “indie”. Era para um nicho. E passei a ser “mainstream”. [Risos] Curiosamente, fiz um anúncio para a Sagres depois e foi tranquilo — para o público, deixou de ser uma surpresa ver-me. Antes, foi um bocadinho claustrofóbico, confesso.
Depois do Canal Q e da publicidade, “mudaste-te” para um canal maior: a SIC Radical. Foste fazer um programa com o João Manzarra, o “Pokerzada”.
Esse meu interesse pelo póquer foi um “interesse Snapchat”: apareceu e desapareceu, muito rapidamente. Mas na altura em que conheci o Manzarra falava-se muito de póquer, era uma moda. E pensámos: vamos fazer aqui um tutorial engraçado sobre póquer. Foi assim. O Manzarra sempre gostou muito de póquer — e até era bom –; eu entrei no “mundo” do póquer durante seis meses, enquanto fiz o programa. E cheguei a fazer parte da equipa da BWin — o que é ofensivo para quem sabe realmente jogar póquer, ao contrário de mim. [Risos] Nunca mais joguei depois disso. Não é a minha cena.
Mas continuaste a colaborar com o Manzarra.
Nós conhecemo-nos em casa de uma amiga comum e houve uma grande química entre nós. Isto soa um bocadinho “pussy”, mas somos realmente muito parecidos. É muito fácil trabalhar com ele. Ligam uma câmara e nós fazemos um conteúdo. E foi desde aí, do “Pokerzada”, que começámos a fazer programas. Fizemos o “Rés do Show Esquerdo” — que era um programa que ele tinha no Facebook e “bateu” –, depois o “Two Hot Guys” e agora, qualquer, há-de vir outro. Volta e meia, de três em três anos, fazemos um.
E fizeram o “Sal”, na SIC…
Ahhh, esqueci-me do maior! [Risos] Isso foi uma ideia dele. E foi o maior salto que eu dei em termos de popularidade. E também de profissionalismo. Até pelas pessoas que trabalhavam no projeto comigo: César Mourão, Rui Unas, o próprio Manzarra. Ensinaram-me muita coisa. E tive ali muitas “horas de voo”, como se diz em TV. Foram muitas, muitas horas a filmar a série, a aprender com técnicos, com os realizadores, com pessoas que percebem muito disto. Gostei muito de fazer a série, sobretudo pelo ambiente que se vivia nos bastidores. Claro que teve coisas boas e coisa más. Faz parte. Mas tendo em conta que há tão poucas séries de humor em Portugal, tem que se apoiar mais. A série devia ter sido mais apoiada do que foi. Quiseram comparar logo com séries norte-americanas, em vez de a apoiar mais e ver os pontos positivos do resultado final. Isso chateou-me.
“Já fiz piadas sobre pitas. Já fiz piadas sobre aeroportos. Até sobre estacionamentos já fiz piadas. Qualquer dia começam a faltar-me os temas corriqueiros e tenho que me virar para mim”
Falando da rádio. Há cada vez mais ouvintes dos programas da manhã. E humoristas. Tu estiveste muito tempo na RFM — o Nilton ainda lá está –; o Bruno Nogueira saiu da TSF para a Antena 3; o César Mourão e o Ricardo Araújo Pereira estão na Comercial. Tu agora estás na TSF. Pergunto-te: há alguma rivalidade entre vocês, humoristas, nesta luta por audiências?
Antes de mais, digo-te que é desgastante ter que criar algo para sair diariamente. Foi duro na RFM. E agora na TSF volta a ser duro. Mas dá-te muita capacidade de trabalho. É muito importante a regularidade no trabalho para te “construíres” enquanto humorista. Mas há que elogiar a rádio. Porque é que há tantos humoristas na rádio? Porque a rádio chega-se à frente. As rádios vão-nos buscar e as TV’s não. Rivalidade? Não. Querer ser rival, por exemplo, do Ricardo Araújo Pereira seria uma ingenuidade. Portanto, à partida, estou descansado. Ele é o melhor. Nem me passa pela cabeça rivalizar com ele.
A RFM deu-te a “bagagem” dos programas em direto. Mas agora o que estás a fazer na TSF é algo diferente: um programa de entrevistas.
É o “Um para Um”. Mas ainda estou a construí-lo, digamos assim. A grande vantagem da TSF em relação à RFM é que eu gravo por mim e não tenho que ir à rádio. Gravo tudo no meu telemóvel, numa aplicação. Meto o microfone, aquilo fica com boa qualidade e gravo onde quer que esteja. Se estiver em Amesterdão e me apetecer entrevistar alguém, posso fazê-lo. Se encontrar uma senhora simpática em Guimarães e me apetecer entrevistá-la, posso fazê-lo. É gratificante essa “portabilidade”.
A ideia foi tua?
Foi minha. Queria fazer algo um bocadinho diferente. Na RFM já tinha feito stand-up/crónica gravado. Gostei. Depois fiz stand-up nas manhãs com a equipa, em direto. Gostei. O que é que ia fazer agora? Sketch? Não. E lembrei-me deste registo de entrevista. Talvez lembrando os tempos do Canal Q em que entrevistava pessoas. Acho que o formato está bem conseguido. Mas quero libertar-me dessa cena de ser melhor que os outros. Isso é uma pressão que pode “envenenar” o teu humor. Eu tenho é que fazer um humor livre, honesto e original. É isso que eu quero. Estou em primeiro no top dos podcasts da TSF? Estou, mas só estou em primeiro porque isto é novidade e está nos destaques. É preciso desmistificar. Não me interessa nada o “pódio”. Quero é que as pessoas gostem.
Falaste do podcast. Vivemos na Era da informação. E há muitos humoristas que hoje utilizam as redes sociais para experimentar piadas. Tu estás no Facebook, também no Twitter. Isso é útil para ti? Ou só estás “por estar”?
Eu experimento muito no Twitter. É a minha rede social de eleição. Mas o meu humor tem muito a ver com a performance. Mesmo que eu experimente no Twitter, se fores ver essa piada ao vivo, no espetáculo, é diferente. Há humoristas que são mais do online. Eu preciso muito da performance para aquilo funcionar. E as pessoas às vezes nem percebem que estou a experimentar piadas. [Risos]
Os teus espetáculos ao vivo estão cada vez mais bem produzidos. E andas pelo país, de norte a sul. Isso é algo que ainda te dá gozo? Mesmo sabendo que podias só estar a fazer rádio, TV ou publicidade?
Eu sou um stand-up comedian ao vivo que também faz outras coisas. E não o contrário. Gosto muito de estar na estrada. Eu quero fazer cem espetáculos por ano. Porquê? Porque no stand-up tu só consegues um nível de excelência fazendo muitas vezes. Não dá para fazeres vinte espetáculos por ano e seres excelente. Isso não existe no stand-up. É melhor aquele que faz mais vezes. Esta frase pode soar polémica. Isto tem que ser uma rotina. Tem que ser quase diário. Só isso vai aumentar o ritmo do espetáculo. E aumentando o ritmo, vai ser muito melhor para o espectador.
Mas também te desgasta mais, não?
Não. Não acho. Ou melhor: sim. Fisicamente. Mas quanto mais eu faço, mais fácil é de fazer. E a dificuldade em fazer isto são os nervos que tu tens. Se eu fizer stand-up de 15 em 15 dias, vou estar mais nervoso. Se fizer todos os dias, daqui a 15 dias estou muito bem. Os períodos em que sou mais feliz é quando faço mais vezes stand-up.
Tens memória de algum espectáculo memorável para ti? E de algum que correu particularmente mal?
O melhor é quase sempre o último. Pelo menos no stand-up. Então, diria que foi este último que fiz no Tivoli. Foi a estreia do espetáculo “Tipo Anti-Herói”. E foi a maior sala onde actuei: eram mil espectadores. A reacção deles foi incrível. Não estava à espera.
Este espetáculo é mais “pessoal” que os anteriores, não sentes? Em todos eles abordas muito as tuas vivências. Mas neste até histórias familiares sobem a palco.
Sim, é mais pessoal. Acho que isso tem a ver com uma coisa que o George Carlin dizia. Ele tinha muito a lógica de fazer um espetáculo por ano, fechar, largar esse material e começar tudo de novo no ano a seguir. E ele dizia uma coisa interessante: “Quanto mais material escreves e deitas para trás, mais profunda se torna a tua comédia.” Epá, já fiz piadas sobre pitas. Já fiz piadas sobre aeroportos. Até sobre estacionamentos já fiz piadas. Qualquer dia começam a faltar-me os temas “corriqueiros” e tenho que me virar para mim. E é quanto tu te voltas para ti que a tua comédia é mais profunda. É isso que está a acontecer agora. Ou seja, não tenho a pretensão de dizer que está mais “profunda” ou “pessoal”, mas há aqui coisas que antes não havia. E isso torna a comédia mais interessante, menos superficial.
OK, o do Tivoli correu bem. Mas voltando atrás: diz-me um espetáculo que correu mal e porquê.
Foi logo quando comecei. Na altura dos workshops de humor. Foi talvez o meu terceiro ou quarto espetáculo ao vivo. E ninguém se riu do principio ao fim! Foi num festival de humor e ninguém riu. Em nenhuma piada. A atuação era para ter dez minutos e teve dois. [Risos] Mas hoje conto-te esta história e fico feliz. Só tendo esses insucessos é que as coisas podem correr bem depois. Mas para isso tens que identificar o porquê de ter corrido mal. A partir desse momento, a vida começa a correr bem.
E a vida corre-te bem. És o primeiro humorista português a ter um espetáculo na Netflix. E o único. Como é que surgiu o convite?
Não diria que foi um convite da Netflix. Foi precisamente o contrário. O que nós fizemos — eu, a produtora que trabalha comigo, H2N, e a Valentim de Carvalho – foi atirar uma “bola para o pinhal”. Foi isso. E acertámos na baliza. A Netflix recebeu o espetáculo, viu-o e gostou. Eu poderia tentar vender o espetáculo a um canal, por exemplo. Mas aquela pareceu-me a plataforma mais indicada para ver stand-up comedy – até porque tem tradição nesse capítulo.
E o espetáculo, o “Na Ponta da Língua”, gravado ao vivo, não está apenas disponível em Portugal.
Sabes, vi espetáculos no mundo inteiro. E posso dizer-te que não existe uma diferença assim tão grande entre um espetáculo em Portugal, nos Estados Unidos ou no Brasil. Acho que há muitos humoristas em Portugal ao nível dos melhores do mundo. Mas respondendo à tua pergunta: o espetáculo não está só em Portugal, não. Está disponível, por exemplo, em Cuba, na Nigéria ou na Índia. Estes são talvez os mais improváveis, digo eu. Neste momento pode estar um menino em Cuba, um bocado em baixo com o falecimento do Fidel, a afogar as mágoas com o espetáculo do Salvador. Quem é o menino? Não sei. Nem sei se ele vai entender tudo. Mas a maior parte eu sei que ele vai entender. Acho que o meu humor tem uma certa universalidade e que é intemporal. Quer dizer, nem tudo é. Eu tenho lá uma piada sobre a Covilhã. E Covilhã não foi traduzido nas legendas. Neste momento há alguém no mundo a perguntar: “O que raio é um Covilhã?!”
Última pergunta. Tu começaste a fazer stand-up e resolveste ser humorista com 19 anos. Se a tua filha — que ainda é bebé — daqui por 19 anos te disser que quer ser humorista, o que é que lhe vais responder?
Não sei, não sei. Ainda não pensei nisso. O meu desejo para ela é que faça aquilo que acha que deve fazer. E que tenha brio no que faça. Desde que não seja daqueles “mitras” que estão a fazer malabares à porta do Minipreço e depois pedem uma moeda, ‘ta tudo bem! [Risos]
Salvador Martinha actua dia 21 de dezembro no Theatro Circo, em Braga, e dia 22 no Teatro Ribeiro Conceição, em Lamego. O espetáculo “Tipo Anti-Herói” começa às 21h30.