Quando, no dia 28 de novembro, a campainha soou no quartel dos Sapadores Bombeiros na Praça da Alegria, em Lisboa, Nuno, Rogério e Rui preparavam-se para almoçar. Era cerca do meio-dia e um prédio em obras tinha caído, na rua Alexandre Herculano, ali perto. Suspeitava-se de que dois trabalhadores da obra teriam morrido soterrados — o que se veio a confirmar ao fim da noite. Os três bombeiros estavam de serviço desde as 8h00 da manhã, mas o almoço teria de esperar. Equiparam-se, meteram-se no carro e dirigiram-se ao local. Foram os primeiros a chegar.
28 de novembro: dois mortos em derrocada em Lisboa
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No dia 28 de novembro, um prédio em obras na rua Alexandre Herculano ruiu, matando dois trabalhadores que se encontravam no local. O alerta foi dado pelos responsáveis da obra por volta das 12h00 e os bombeiros sapadores foram os primeiros a chegar ao local, poucos minutos depois do alerta.
O primeiro carro saiu do quartel da Praça da Alegria, e levava Nuno, Rui e Rogério lá dentro. Logo a seguir, chegou António Domingues, o chefe de serviço. Ao chegarem ao local, foram responsáveis pelo reconhecimento do local. “Ouvíamos ruídos, estalidos, havia o perigo de haver uma segunda derrocada”, recorda.
A primeira tarefa foi perceber se havia vítimas com vida, através das equipas cinotécnicas (cães de resgate). Quando se aperceberam de que não havia sobreviventes, os bombeiros preocuparam-se primeiro em criar condições de segurança. “O trabalho é feito de forma mais criteriosa, para não colocar em risco as pessoas que estão no socorro”, sublinha António Domingues.
É noutra hora de almoço, uma semana depois, que encontramos a mesma equipa no quartel da Praça da Alegria, um dos dez quartéis que o RSB tem em Lisboa. Desta vez deixamo-los terminar a refeição, numa pequena sala forrada a cachecóis do Benfica, anexa à garagem onde um carro de bombeiros e uma ambulância estão, aparentemente, prontos a sair — afinal, e segundo os últimos dados disponíveis, de 2013, as autoridades em Lisboa registam perto de 20 mil ocorrências por ano, o equivalente a 50 situações por dia. Muitas, a maioria, são respondidas pelos bombeiros sapadores. Nessa garagem, dois cadeirões antigos e um banco de jardim compõem uma sala de estar improvisada com direito a cinzeiro, jornais desportivos, uma máquina de Coca-Colas e uma pequena árvore de Natal. O quartel é um prédio de habitação adaptado para funcionar como instalações provisórias para os sapadores, que são o corpo de bombeiros mais antigo de Portugal. “Isto não tem nada a ver com bombeiros, estamos aqui à espera do quartel do Martim Moniz”, sublinha Rui Fernandes, enquanto subimos as escadas que levam ao escritório onde podemos conversar com mais calma.
Os três bombeiros, juntamente com Vítor Gil, comandante do batalhão, e António Domingues, o chefe de serviço que coordenou os trabalhos no dia da derrocada, ajudam-nos a reconstituir aquela manhã. Contam como foi necessário remover “pedra a pedra, balde de areia a balde de areia”, como os cães não detetaram sinais de vida no meio dos escombros e como as suas famílias, muitas vezes, só sabem deles pelos noticiários. Pelo meio, lamentam que a cidade não reconheça o valor dos bombeiros sapadores. “Os lisboetas não têm noção da valência que têm na cidade”, queixa-se Nuno Marta.
“A minha mulher sabe que eu venho, mas não sabe se eu volto”
O estado de espírito que se vive dentro de um carro de bombeiros em alta velocidade a caminho de um prédio em ruínas com vítimas soterradas não é fácil de descrever. Especialmente se forem os primeiros a chegar ao local, ainda instável. Rui Fernandes, de 48 anos, era o mais graduado dentro do carro. Por esse motivo, coube-lhe a ele coordenar as operações até que chegasse o comandante. Bombeiro profissional desde os 25 anos, Rui admite que deixa a família preocupada sempre que vai trabalhar. “A minha mulher sabe que eu venho, mas não sabe se eu volto”, sublinha. “Mas o meu sogro já era bombeiro, por isso ela já sabia com o que ia contar”, acrescenta, a rir-se.
Pelo caminho, Rui pensava nas vítimas. “Com os anos de profissão que já temos, vamos tendo um certo calo e estamos preparados. Mas neste caso, como sabíamos que havia possíveis vítimas, a adrenalina era outra. Há a expectativa de conseguir encontrar alguém com vida e de a conseguir retirar rapidamente”, recorda, com um olho no telefone do escritório, que, a qualquer momento pode chamar para uma emergência.
No carro seguia também Nuno Marta, de 39 anos, e bombeiro desde os 22. “Nunca sabemos as condições do sítio para onde vamos, se nós também vamos ficar em risco ou não”, destaca, repetindo orgulhosamente: “Fomos os primeiros a entrar no local”. Rogério não esconde, de facto, o orgulho que tem em fazer parte do Regimento de Sapadores Bombeiros. “Nós vivemos a nossa profissão intensamente, e em certas situações pomos a nossa vida em risco”, sublinha.
Rogério Malta, de 36 anos, levava o peso da responsabilidade consigo. “As pessoas pensam que nós levamos sempre a solução”, diz o bombeiro, que se juntou ao regimento com apenas 18 anos. “A solução, nós levamos”, admite, “mas às vezes estamos condicionados pelo cenário com que nos deparamos”. Pelo caminho (“estamos lá em cinco ou seis minutos, depende do trânsito”, faz questão de sublinhar o comandante Vítor Gil), Rogério vai imaginando o que encontrará ao chegar. “Quando toca a campainha e dizem para onde vamos, começo logo a pensar no cenário que vou encontrar, a tentar pensar no que é que vou conseguir fazer ou não”. Queria tentar salvar as vítimas, mas não foi possível.
“Pedra a pedra, balde de areia a balde de areia”
A primeira coisa a fazer quando se chega ao sítio onde um prédio acabou de cair é tentar ficar em segurança. “Vamos para socorrer, não para ser socorridos. Temos de ser a solução, não podemos ser o problema”, esclarece Rogério. Mas nem sempre é fácil. Neste caso não foi. “Não havia condições de segurança”, sublinha António Domingues. “Era uma situação mesmo muito complicada, que, felizmente, é rara. Tanto que tiveram de vir para o local engenheiros, proteção civil, câmara… É um mecanismo que nos ultrapassa a nós, que estamos no terreno”, reconhece.
De bigode bem aparado, farda impecavelmente engomada e mãos atrás das costas, Vítor Gil não perde a pose de chefe nem o léxico operacional típico das autoridades. “Foram acionados os nossos binómios cinotécnicos [equipa de dois: um agente e um cão] para detetar eventuais sinais de vida. Isto porque havia uma primeira vítima que se verificou que estava um quarto visível. A lógica era que se os cães sinalizassem outra vítima, o trabalho seria mais apressado, porque podia haver uma pessoa com vida”, relata. Não sinalizaram.
Durante os períodos iniciais, em que estes bombeiros estiveram sozinhos no interior do prédio em ruínas, os riscos ainda eram iminentes. “Nos primeiros minutos, ainda caíram algumas pedras”, lembra António Domingues. “Pedras, ombreiras de janelas, havia também um tanque dos antigos, de lavar a roupa, daqueles de cimento, que estava numa pequena laje, prestes a cair”, acrescenta. Além disso, ouviam-se “ruídos, estalidos” em todo o edifício. Para controlar estas possíveis derrocadas, dois bombeiros montaram um posto de vigia no terceiro piso de um edifício próximo.
Por isso, e como as vítimas não estavam imediatamente visíveis, o primeiro passo foi colocarem-se em segurança. O método encontrado pode não deixar muita gente descansada: utilizou-se a grua que servia a obra, e que tinha um bailéu (estrutura suspensa em que os trabalhadores podem ser içados) com uma área de quatro metros quadrados, para proteger os bombeiros. “O caso foi demorado, houve necessidade de tirar pedra a pedra, balde de areia a balde de areia, e os bombeiros estiveram a fazer isso sempre debaixo desse bailéu”, recorda Vítor Gil. Sempre, acrescenta, “de forma cirúrgica”.
São as medidas de segurança possíveis. Talvez seja por isso que Rogério Malta prefere nem dizer à família para onde vai, quando sai numa emergência. “Mas podem às vezes ver pelas notícias”, responde-lhe Nuno Marta — como aconteceu neste dia 28 de novembro, em que todas as estações de televisão estiveram em direto a partir do local durante várias horas. “Pois, e são capazes de ligar para saber se estamos lá ou não. Se não atendemos ficam preocupadas, se demoramos muito tempo ficam muito preocupadas”, reconhece Rogério.
Mas é na família que estes homens confiam quando chegam a casa depois de um dia como este. “Acabamos por desabafar algumas coisas do que fazemos com a família e por isso eles respeitam muito a profissão”, explica Rogério. Nuno, por outro lado, prefere não impressionar os familiares com os relatos do seu dia-a-dia: “Às vezes são situações que envolvem coisas muito tristes, não são conversas para ter junto aos meus filhos e à minha mulher”. Rui concorda: “Temos uma parte no nosso sistema que faz clique e desligamos um bocado. Nem entramos em detalhe. Dizemos ‘olha, caiu ali um prédio, morreram duas pessoas, e tal’, mas o melhor é mesmo tentar banalizar”.
“A maioria dos lisboetas não nos conhece”
Na rua Alexandre Herculano, os bombeiros depararam-se “com um cenário em que já não havia sobreviventes. Já não havia nada a fazer, era uma questão de retirarmos as pessoas condignamente”, recorda Rogério. “Mas já tivemos situações piores, em que chegámos e as pessoas estavam vivas, mas num estado pior do que estavam estas”, explica. Rogério lembra o atropelamento no Campo das Cebolas, em Lisboa, em 2007. Duas pessoas foram colhidas por uma condutora que seguia em excesso de velocidade depois de ignorar um semáforo vermelho. O bombeiro também estava na primeira equipa a chegar ao local nesse dia. “Nunca estive no Iraque, mas imagino que seja parecido, tendo em conta o que vejo na televisão. Era um cenário de guerra”.
Nada a que esta corporação não estivesse habituada, já que a história dos sapadores remonta ao ano de 1395, altura em que o rei D. João I aprovou pela primeira vez medidas para proteger a cidade de Lisboa contra incêndios. O primeiro registo de uma equipa de bombeiros ao serviço da Câmara de Lisboa aparecia, contudo, apenas três séculos depois, em 1646, quando a autarquia contratou os primeiros trinta homens. Segundo a história da corporação, eram trinta assalariados, “entre carpinteiros, pedreiros e trabalhadores”. Foram os primeiros trinta de um corpo que ao longo de trezentos anos foi ganhando outras dimensões. Atualmente, o RSB tem ao seu serviço 755 elementos, distribuídos em dez companhias que se agrupam em três batalhões, que cobrem a totalidade da cidade de Lisboa.
A história dos bombeiros sapadores de Lisboa em imagens
Nas grandes catástrofes que atingiram Lisboa nos últimos séculos, foram os bombeiros sapadores os primeiros a garantir o socorro. Desde o terramoto de 1755, que destruiu toda a baixa de Lisboa, ao incêndio nos Grandes Armazéns do Chiado, em 1988, não há lisboeta que não tenha visto estes profissionais em ação. Apesar desse historial, e de serem sempre os primeiros a responder às crises na cidade de Lisboa, os bombeiros sapadores lamentam a falta de reconhecimento por parte dos cidadãos.
“A maioria dos lisboetas não nos conhece. Não têm noção da valência que têm na cidade”, assegura Nuno Marta, deixando notar alguma indignação. E acrescenta: “As pessoas não têm noção do que é o Regimento de Sapadores Bombeiros, e só teriam noção se vivessem fora de Lisboa, onde se calhar muitos dos serviços que nós prestamos aqui aos cidadãos têm de ser pagos, têm de ser efetuados de outra maneira”. Rui esclarece: “Há muita confusão entre nós e os bombeiros voluntários. Nós somos profissionais, e eles não”. “Mas sem pôr em causa o profissionalismo deles”, interrompe logo Rogério.
A explicação é dada pelo chefe do batalhão, Vítor Gil: “O Regimento de Sapadores Bombeiros tem três batalhões, divididos por companhias, que têm áreas atribuídas. Os bombeiros voluntários também têm zonas, e são acionados quando nós precisamos de auxílio. Mas os sapadores é que vão sempre, e são os primeiros”. “A perspetiva aqui é outra, nós aqui somos profissionais. Quando intervimos, intervimos mesmo”, sublinha Nuno. A verdade é que, como os próprios sapadores reconhecem, “quando se pensa em bombeiros, pensa-se nos voluntários”. Aliás, Rui Fernandes recorda precisamente como se juntou ao RSB “por ser um emprego estável na função pública”. “Para mim, os bombeiros eram os voluntários”, acrescenta.
Apesar de tudo, os bombeiros sentem a exigência, a necessidade de respostas. “As pessoas querem resultados. Por fora, pode parecer simplista, ‘ok, eles andam ali a socorrer’, mas as pessoas querem resultados”, explica António. Só que “toda a gente sente medo, os bombeiros também”, mesmo que, como faz questão de sublinhar Nuno, “os sapadores ponham a vida em risco muitas vezes, em situações em que fazem mais do que deviam”. Porque, insistem, as pessoas têm sempre expectativas muito elevadas, sobretudo em situações ao ar livre, acrescenta Rui: “Nos locais em que as pessoas veem, há sempre aquele peso, porque estão à espera que nós atuemos o mais rápido possível, e estão lá as televisões e os jornais. É um peso muito grande e muitas vezes nem temos os meios para dar resposta”.
“Desculpe lá. Sabe como é, temos de estar sempre prontos”
Toca a campainha. “Isto é sinal de que temos de sair para um socorro”, diz Rui, já de pé. Mas não se ouve nada no altifalante que devia anunciar o motivo da chamada. Rui, o mais graduado no quartel, pega num telefone branco na pequena secretária do escritório e liga para alguém. “É para sair?” Era.
A entrevista, tal como o almoço de dia 28 de novembro, ficava por aqui. Em menos de um minuto estamos na garagem novamente, junto a Rogério, que já está a vestir o chamado EPI (Equipamento de Proteção Individual, calças e casaco que suportam temperaturas que podem chegar aos 1000ºC, botas que não se furam nem que se pise um prego e uma máscara facial que permite respirar em locais onde seria impossível). Em poucos segundos está no carro — o mesmo que foi para a rua Alexandre Herculano na semana passada — e despede-se a partir da janela. Desta vez é perto. Um pequeno desabamento na Avenida da Liberdade, que, a julgar pela reação dos bombeiros, não é invulgar. “Desculpe lá. Sabe como é, temos de estar sempre prontos”.