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Aviação, moda, agricultura intensiva. São alguns dos setores habitualmente apontados como os mais poluentes em todo o mundo. No entanto, há um outro que, embora seja conhecido por ajudar a salvar vidas, pode estar a prejudicar o ambiente e, com isso, a afetar, indiretamente, a qualidade de vida de milhões de pessoas. Responsável por 4,4% das emissões de gases com efeito de estufa a nível global — ainda mais em Portugal —, o setor da Saúde tem ainda um longo caminho a percorrer para se tornar sustentável. Desde logo, junto dos próprios profissionais de saúde, mas também responsáveis políticos e população. “Há um grande desconhecimento” sobre o impacto do setor, considera o presidente do Conselho Português de Saúde e Ambiente.
Em entrevista ao Observador, Luís Campos, presidente de uma aliança criada em outubro de 2022, e que já conta com mais de 90 organizações associadas ao objetivo comum de promover boas práticas de sustentabilidade ambiental no sector da saúde, fala sobre o impacto da poluição — e de todas as alterações no planeta causadas pelas alterações climáticas — na saúde humana: aumento de doenças cardio e cérebro vasculares, respiratórias, oncológicas, infecciosas e até mentais, que conduzem a muitas mortes prematuras e evitáveis.
O médico especialista em Medicina Interna, que exerce atualmente nos hospitais da rede CUF, explica o impacto enorme do setor da saúde na pegada ambiental do planeta e particularmente em Portugal, onde, diz, é necessário que as unidades de saúde adotem práticas mais sustentáveis, que sejam revistas algumas leis “obsoletas” que impedem os avanços nesta área e que se estimule a sensibilização dos profissionais de saúde e dos decisores políticos para a dimensão do problema. E aponta exemplos do caminho que pode ser seguido: reutilizar cateteres, reduzir o números de exames de imagem atualmente realizados (um campo em que Portugal está muito acima da média europeia), substituir inaladores e gases.
“O ano de 2023 foi o ano mais quente alguma vez registado e pode ter sido o ano mais fresco do resto das nossas vidas”
Os ambientes poluídos retiram milhares de anos de vida e de vida com qualidade à população. Devemos temer, no futuro, uma diminuição da longevidade?
Seguramente. Mas o problema não é a apenas a poluição, é também a degradação dos ecossistemas, o esgotamento dos recursos naturais, a perda de biodiversidade, a sobrepopulação. Todas estas determinantes serão um desafio para a saúde das populações nas próximas décadas e também agora. Já estamos a falar no presente. O ano de 2023 foi o ano mais quente alguma vez registado e pode ter sido o ano mais fresco do resto das nossas vidas. Já há pontos de não retorno identificados, dos quais o mais perigoso é a alteração das correntes do Atlântico. Globalmente, nove em cada dez pessoas respiram ar com altos níveis de poluentes, que excedem os limites da Organização Mundial de Saúde. Mas não falamos só do ar, falamos também da poluição por contaminantes químicos, o plástico tem efeitos sistémicos no corpo humano, e a produção tem crescido. Calcula-se que já tenha sido produzido mais de uma tonelada de plástico por cada habitante do planeta.
Em relação à poluição do ar, há dados sobre o que se passa em Portugal?
Estamos um pouco melhor do que outros países neste indicador, mas é muito desigual. Há áreas muito poluídas e outras pouco poluídas em Portugal. Mas o problema é que o ar do planeta é comum, não o podemos separar por países.
Que impacto pode ter a poluição (mas também as outras alterações a que assistimos no planeta, e que já referiu) na saúde humana? O aumento das doenças cardiovasculares, respiratórias e alérgicas, por exemplo, é uma consequência direta das mudanças do planeta?
Todas estas alterações vão fazer crescer as doenças cardio e cérebro vasculares, as doenças respiratórias crónicas, o cancro, as alergias, as doenças transmitidas por vetores (como a malária, a dengue, o zika), as zoonoses — que causam 100% das pandemias —, as doenças relacionadas com a qualidade da água e dos alimentos e as doenças mentais. Todas estas patologias vão ser impactadas pelas alterações ambientais e vão ter um efeito na longevidade a médio/longo prazo.
Há algum grupo de doenças com que esteja mais preocupado e cujo aumento seja mais expectável devido às alterações climáticas?
Aquelas que são mais impactadas são as doenças cardio e cérebro vasculares, como os enfartes do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais, e também as doenças infecciosas.
Se considerarmos toda a poluição de que falava, há estudos que indiquem quantas mortes prematuras ocorrem anualmente por estas causas em Portugal? Na Europa, os últimos dados conhecidos apontam para 240 mil mortes prematuras anuais só devido à poluição atmosférica.
Em Portugal, os dados não estão bem caracterizados. A nível global, estima-se que a poluição do ar cause nove milhões de mortes por ano. Estima-se também que as doenças transmitidas pela água sejam a causa de morte de 3,4 milhões de pessoas e que os alimentos contaminados causem 420 mil mortos por ano. Está também estudado o impacto direto das ondas de calor na população, e Portugal e Espanha são os países da Europa mais vulneráveis. Depois, temos também as doenças mentais: um inquérito feito recentemente a jovens entre os 16 e os 25 anos em 10 países mostra que 80% encaram o futuro como aterrador. Existe uma nova doença mental, chamada ecoansiedade, que se trata da angústia decorrente das alterações climáticas.
Os efeitos das alterações climáticas atingem particularmente as populações mais vulneráveis: os doentes idosos, as crianças, as pessoas pobres. Por exemplo, nos idosos, a mortalidade relacionada com o calor duplicou entre 2000 e 2018, e isto é particularmente preocupante no caso de Portugal, que tem uma população muito envelhecida.
Plásticos, cateteres, exames, inaladores, gases. O caminho da saúde para ajudar o ambiente
O setor da saúde salva vidas, mas também é um dos maiores poluentes. Que parte da poluição tem origem neste setor?
O setor da saúde é fundamental para dar resposta às consequências das alterações climáticas. No entanto, contribui muito para a emissão de gases com efeito de estufa. Produz 4,4% das emissões globais destes gases. Em Portugal, estima-se que essa percentagem seja um pouco maior: 4,8%. Para ter uma ideia, seria necessário plantar mais de 160 milhões de árvores só em Portugal para captar o dióxido de carbono que o setor da saúde lança para a atmosfera num ano. Cerca de 70% destas emissões vêm da cadeia de abastecimento, da produção, transporte e distribuição de fármacos, equipamentos, alimentos. Outros 13% vêm da energia, outros 13% dos transportes e o restante vem dos inaladores e gases anestésicos.
A área cirúrgica é frequentemente apontada como uma das mais poluentes nos hospitais.
O bloco operatório contribui para a emissão de gases com efeito de estufa, a começar pelos gases anestésicos, que representam 5% das emissões no setor da saúde. Mas há outros problemas nos blocos operatórios, nomeadamente no que diz respeito à produção de plástico. O Conselho Português para a Saúde e Ambiente fez um estudo em blocos operatórios, que concluiu que todas as cirurgias feitas por ano nos setores público e privado sejam responsáveis por descartar 200 mil quilos de plástico de PVC, que são altamente poluentes e têm um efeito direto na saúde das populações.
E a poluição causada pelo setor da saúde, nomeadamente pela parte hospitalar, tem vindo a crescer, também com a multiplicação de hospitais privados?
O aumento do setor privado não significa que a pegada ambiental do setor da saúde esteja a aumentar. O que o setor privado faz é substituir-se às fragilidades que o setor público tem. Os grupos privados que conheço são os que têm estratégias mais sólidas de redução da pegada ambiental. O problema é que cada vez temos uma população mais idosa, com mais morbilidade e com mais necessidades de saúde.
No setor da saúde, em que áreas seria possível intervir para limitar a poluição?
Nos gases anestésicos. Temos alternativas à utilização destes gases, como as técnicas anestésicas loco-regionais ou raquidianas. Há hospitais que já conseguiram reduzir a utilização destes gases em 85%. Também nos cateteres. Atualmente, há um proibição de reutilização destes dispositivos, nomeadamente dos que são utilizados para tratar alterações do ritmo do coração, que hoje em dia são usados uma única vez e deitados fora. Ora, estes cateteres (e outros) podem ser perfeitamente reutilizáveis, com igual segurança e com metade do impacto no aquecimento global. No entanto, existe uma lei que proíbe a reutilização de todos os catereteres de uso único, que não acompanha as diretrizes europeias e o que se faz noutros países.
Pode apresentar outros exemplos?
A lei dos resíduos, de 1996, que considera como resíduos contaminados os plásticos que servem para embrulhar as caixas cirúrgicas, obrigando a que sejam levados para aterro. Este material é perfeitamente estéril e pode ser reutilizado várias vezes, inclusivamente por equipas hospitalares. Temos de rever algumas leis obsoletas e que impedem o caminho de sustentabilidade do setor da saúde.
Por outro lado, há um excesso de tomografias computorizadas em Portugal. Por cada mil pessoas, realizam-se em Portugal 333 tomografias computorizadas, ressonâncias magnéticas e PET por ano, quando a média da União Europeia é de 154. Se conseguíssemos reduzir estas prescrições para a média europeia, só isso representava uma poupança de mais de nove milhões de quilos de CO2. E temos outras áreas em que podemos avançar: a telemedicina, a medicina de proximidade, a integração de cuidados — tudo formas de reduzir as deslocações das pessoas, o que também limita a pegada ecológica. Por exemplo, foi feito um estudo na última campanha de vacinação que mostrou que, em comparação com 2022, houve uma redução de 1252 para 739 toneladas de CO2, devido à redução das deslocações.
Mas há também um caminho a fazer ao nível do edificado, da passagem de energias fósseis para energias renováveis, na adoção de transportes elétricos, na substituição das lâmpadas normais por LED, na diminuição do desperdício de água. São áreas onde é possível tomar medidas e, dessa forma, reduzir o impacto ambiental do setor da saúde.
“Os critérios de sustentabilidade ambiental têm de estar presentes em todas as decisões”
Há um caminho de sensibilização a fazer junto dos decisores políticos?
Há um caminho de sensibilização para todos: para o público, para os profissionais de saúde e para os decisores. Para mim, é chocante sabermos que estamos perante o maior desafio para a saúde das populações das próximas décadas e estes tópicos ainda não entram na formação pré e pós-graduada dos profissionais de saúde. Há um grande desconhecimento. Em setembro, fizemos um inquérito a 348 médicos (das cinco especialidades que mais os prescrevem: Pneumologia, Imunoalergologia, Medicina Interna, Pediatria e Medicina Geral e Familiar) sobre se tinham conhecimento do impacto ambiental dos inaladores. E apenas 52% disseram que sim.
Calcula-se que a pegada dos inaladores em Portugal é de 30 mil toneladas de dióxido de carbono/ano. Os inaladores não são todos iguais: existe um grupo, de pó seco, que não utiliza gases com efeito de estufa, e outro grupo, os inaladores pressurizados de dose fixa, que usa gases com efeito de estufa. O que fizemos foi emitir recomendações para a utilização de inaladores menos poluentes, sempre que haja alternativas com a mesma eficácia e segurança. E recomendámos também que, no momento da prescrição, surja um código de cores corresponde ao impacto ambiental que está em causa. É algo que já existe no Reino Unido.
O que é o Conselho Português de Saúde e Ambiente?
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É uma aliança criada em outubro de 2022, com o objetivo de dar uma voz comum às organizações de saúde no que diz respeito a alterações climáticas e redução a pegada ambiental, aumento a investigação nesta área e ajuda ao sistema de saúde no sentido de se capacitae para fazer face a esta transição. Tem já associadas 92 organizações, entre as quais associações, ordens profissionais, sociedades científicas, municípios, universidades, empresas tecnológicos, institutos de investigação.
Foi também um Observatório da Saúde e Ambiente, que vai emitir o primeiro relatório em dezembro.
No entanto, já há exemplos de boas práticas de sustentabilidade no setor da saúde, tanto em Portugal como no estrangeiro.
Sim. O serviço nacional de saúde britânico — que é o que tem a estratégia mais séria de sustentabilidade ambiental — pretende chegar a zero emissões em 2040 naquilo que dele dependa diretamente, e, em 2045, a tudo o que dele dependa indiretamente, o que inclui fornecedores.
Em Portugal, o setor privado tem uma estratégia séria de sustentabilidade. Já o SNS está muito focado no programa ECO@SAÚDE, que se centra na energia e incide pouco sobre a parte clínica. Precisamos de que a redução do impacto ambiental do setor da saúde se torne uma prioridade política e que os critérios de sustentabilidade ambiental estejam presentes em todas as decisões.
Mas há bons exemplos. A Unidade Local de Saúde (ULS) de Santa Maria tem um programa de eficiência energética que tem conseguido bons resultados. A ULS Entre Douro e Vouga tem conseguido bons resultados também. Os hospitais privados têm conseguido diminuir substancialmente a utilização de gases anestésicos, diminuindo a emissão de dióxido de carbono. A ADIFA, a organização de distribuidores farmacêuticos, também vem, de ano para ano, reduzindo a sua pegada carbónica. Mas ainda não é uma prioridade e ainda não existem medidas transversais. Esse é um dos objetivos do Conselho Português de Saúde e Ambiente.