Recusa fulanizar a discussão sobre o próximo ciclo do Bloco de Esquerda, mas não deixa de vincar que seria uma “irresponsabilidade” de todo o tamanho para o partido confiar que eleição de Mariana Mortágua, a concretizar-se, resolveria os problemas do partido. Reconhece os feitos de Catarina Martins, mas não deixa de denunciar a excessiva centralização de poder e os aspetos “contraditórios” da estratégia assumida. Não afasta futuras alianças com o PS, mas defende que esse não pode ser o alfa e ómega do Bloco.
Em entrevista ao Observador, no programa “Vichyssoise”, Pedro Soares, antigo deputado, ex-dirigente e crítico assumido da atual liderança do Bloco de Esquerda, promete levar à próxima Convenção do Bloco de Esquerda, agendada para o final de maio, uma alternativa clara, com “conjunto inúmero de pessoas” reconhecidas no país todo. Até lá, no entanto, vai lamentando a forma quase dinástica como a discussão se tem colocado. “Fico um pouco com pele de galinha quando oiço falar na sucessão de Catarina Martins. No Bloco, não há sucessões”, diz.
O bloquista, que há muito que defende que atual direção já devia ter feito uma reflexão autocrítica sobre o que falhou nas últimas eleições, evitar carregar no tom dramático em relação ao futuro do Bloco de Esquerda. Ainda assim, Pedro Soares argumenta que as coisas podem piorar ainda mais se faltar essa capacidade de corrigir os erros. “Acho que se não mudarmos de rumo é muito difícil reconquistar a credibilidade junto das pessoas”, alerta.
[Ouça aqui a Vichyssoise com Pedro Soares]
“Um novo rosto? Muito bem. A continuidade? Muito mal”
Neste momento, a candidatura de Mariana Mortágua à liderança parece o segredo mais mal guardado do Bloco de Esquerda. Vê com bons olhos essa hipótese?
Vejo com bons olhos qualquer candidatura. Não há ainda confirmação, apenas poderei falar sobre uma hipótese de candidatura. Do meu ponto de vista, qualquer solução que não retire conclusões de um balanço do ciclo eleitoral de derrotas que o Bloco teve e que não reformule a linha política em função disso é sempre uma má solução. Há dias, Fernando Rosas dizia que uma eventual candidatura de Mariana seria a continuidade com um novo rosto. Com toda a simpatia que temos pela Mariana e reconhecimento do trabalho que tem feito no Parlamento, devo dizer o seguinte: um novo rosto, muito bem; a continuidade, muito mal.
O facto de Mariana Mortágua ter sido lançada logo no dia em que Catarina Martins assumiu que não vai ser recandidata é um sinal de que se pretende uma sucessão dinástica?
Não queria que isso acontecesse. Aliás, fico um pouco com pele de galinha quando oiço falar na sucessão de Catarina Martins. Não há sucessões. Não há eleição na Convenção de um coordenador ou coordenadora. O que há é a eleição da Mesa Nacional e um eventual coordenador ou coordenadora que será eleito depois na Comissão Política que resultar dessa Mesa Nacional. Nem sequer é uma figura estatutária.
Normalmente é assumido que a primeira pessoas que assina a moção que ganha coordena.
É assumido por quem o assume. Eventualmente, se qualquer militante do BE encabeçar uma lista à Mesa Nacional, não quer dizer que assuma que queira ser coordenador.
A forma como foi anunciada a saída de Catarina Martins e, depois, como rapidamente se começou a falar no nome de Mariana Mortágua, dá-lhe indícios para dizer que há falta de democracia interna no partido?
Sabemos como essas coisas se fazem e no momento em que se faz. Não sei se é intencional ou não, mas procurar desviar o debate da Convenção na discussão de uma pessoa é errado. Não me parece que seja uma boa opção. Colocar centenas de delegados eleitos nas regiões a discutirem uma espécie de star system do BE, não me parece bem. O que é fundamental é fazer o balanço. Coisa que esta direção nunca assumiu. Não há um único documento, desde as legislativas, que faça balanço de todo este processo: da derrota das presidenciais, da derrota nas autárquicas, da derrota nas legislativas, etc. Parece-nos fundamental definir uma orientação política que nos tire da situação onde estamos. Tivemos votações na ordem dos 9%, 10%, e neste momento temos as sondagens que temos. Ou se faz alguma coisa e se muda a orientação política, ou então é uma irresponsabilidade. Seria manter o Bloco neste limbo.
Se Mariana Mortágua vencer mudará alguma coisa de fundo na linha política do partido?
Em primeiro lugar, ainda não ouvi nenhuma declaração da Mariana a assumir-se como candidata. Em segundo lugar, quem quer que seja eleito, espero que consiga mudar esse rumo. É a minha esperança, é a minha expectativa e a de muitos militantes.
Mas Mariana Mortága era uma das pessoas mais envolvidas na definição da linha do Bloco até agora. Pode agora mudar?
As pessoas gostam que os dirigentes políticos reconheçam os seus erros. Ainda há pouco tempo vimos isso no Parlamento, ministros a reconhecerem erros. Daria confiança às pessoas, aos eleitores.
Portanto era importante que Mariana Mortágua reconhecesse o erro que o Bloco cometeu.
Claro que sim, com base num balanço político. Não por qualquer fogacho pessoal, nem se pede que quem quer que seja assuma uma responsabilidade individual. Quando, a seguir à derrota eleitoral, começámos a levantar a questão de que era preciso uma convenção logo que possível, veio logo o anátema: “Vocês querem é fazer rolar cabeças”. Não é assim. Não se pode fazer a discussão política, num partido com a responsabilidade que o BE tem, à volta de pessoas e de cabeças. Se tivéssemos feito um balanço político isso tinha dado confiança às pessoas, que percebiam que havia uma direção capaz de reconhecer erros e capaz de fazer mudanças.
Há quem diga, dentro do Bloco, que a imagem radical de Mortágua ajuda a que o Bloco pareça menos domesticado. Concorda que ela tem esse potencial?
Não me reconheço nessa declaração. Mariana Mortágua é uma excelente deputada, uma pessoa por quem tenho bastante apreço. Mas não sei qual é o programa, a intenção dela, não sei sequer se quer ser coordenadora, se será candidata.
“Tática nas eleições foi procurar novo acordo com PS. Isso retirou credibilidade”
Em fim de ciclo, consegue dizer que Catarina Martins foi uma boa coordenadora do Bloco de Esquerda? Faz uma avaliação positiva?
Teve uma grande dedicação ao Bloco, um papel muito importante partido e na última década da política do país. Protagonizou uma mudança fundamental no início da ‘geringonça’. Como qualquer dirigente político, não está isenta de erros. Podemos falar dos erros da Catarina, mas, neste momento, é preciso relevar que teve um papel importante. Todos temos de lhe agradecer.
Quando pede aos próprios que façam a sua reflexão, era importante ouvirmos da sua boca qual foi, se conseguir escolher um, o maior erro de Catarina Martins e da atual direção.
Tenho alguma dificuldade em dizer qual é o maior; houve vários. Houve dois aspetos principais: a nível interno, há uma concentração excessiva no secretariado do Bloco, que desvaloriza todos os outros órgãos, da Comissão Política à Mesa Nacional às distritais. Isso é um erro. Retira raiz e base de sustentação ao Bloco. No plano político geral, o que se passou nas últimas legislativas foi que, apesar de termos um programa próprio bem definido, o discurso político, a linha tática foi procurar um novo acordo com o PS. Isso diluiu completamente as bandeiras e retirou credibilidade à candidatura do BE. Fiz várias ações de campanha e havia pessoas que vinham ter comigo e perguntavam: “Vocês deitaram o Governo abaixo e agora querem fazer novo acordo com o PS? Isso não bate a bota com a perdigota”. Há aqui uma situação aparentemente contraditória. Não faz sentido.
Ouvimo-lo criticar esta linha de Catarina Martins e que pode, se se confirmarem as intenções de Mariana Mortágua, ter continuidade. Quem é que pode encabeçar essa alternativa a esta linha política? Está disponível para isso?
Tenho estado disponível para contribuir para que o Bloco se afirme, recupere e reganhe credibilidade na opinião pública. Se não quero concentrar o debate em torno de quem vai ser o coordenador ou coordenadora, também não vou dizer se vou ou não encabeçar essa alternativa.
Mas quem é que pode assumir essa alternativa?
Há uma iniciativa de muitos militantes de base do Bloco, alguns deles até bastante conhecidos, que estão a trabalhar no sentido de apresentar uma moção política alternativa. E isso terá uma consequência a apresentação de uma candidatura à Mesa Nacional.
João Teixeira Lopes lançou José Soeiro, por exemplo.
Todas as hipóteses são boas, desde que tenham este pressuposto: é preciso tirar conclusões do ciclo eleitoral terrível que atravessámos e verter essas conclusões numa orientação política que mude de rumo.
Falou em figuras reconhecidas. Quem são?
Talvez a mais conhecida seja a do nosso militar de Abril Mário Tomé. Mas há um conjunto inúmero de pessoas, do Norte a Sul do país e às ilhas, que certamente farão parte dessa alternativa.
Em 2021, dizia ao Observador que o chumbo do Orçamento do Estado era um primeiro passo na direção correta. O Bloco continuou a dar passos nessa direção? Ou perdeu-se pelo caminho?
Houve um problema no chumbo do Orçamento: houve uma orientação política contraditória. Não foi clara perante as pessoas. O Bloco andou toda a campanha eleitoral das legislativas [de 2019] a dizer que era preciso um novo acordo com o PS. E, de repente, sem assumir qualquer mudança de orientação política, esteve até à última a criar a expectativa sobre se votava contra ou se se abstinha e, de repetente, decide votar contra. As pessoas não percebem isso. É uma atitude contraditória. Apesar do voto contra ter sido um passo na direção certa, o processo foi errado. Porque o Bloco não se assumiu com oposição antes. Ponho as minhas mãos no fogo: antes da maioria absoluta, não há uma palavra, desde o líder parlamentar até qualquer outro deputado, a dizer “nós somos oposição”.
O Bloco não deve voltar a ser um parceiro do PS como foi na geringonça?
Tentei discernir as coisas: uma coisa é termos um programa político e, no dia a dia do combate político, afirmarmos bandeiras próprias; outra coisa é o que se passa depois das eleições. Aí já depende de muita coisa, inclusive da correlação de forças que é criada. Agora, fazer depender uma linha política da hipótese de haver negociações é diluirmos o nosso programa político.
O contrário seria esconder o jogo às pessoas.
Esconder o quê? Nós dizemos “estamos disponíveis para”. Outra coisa é dizer “nós queremos entrar num governo ou numa maioria do PS”.
Bloco não deve querer entrar num governo do PS?
O Bloco não deve definir a sua linha política função disso.
Mas deve entrar num governo do PS?
Depende do programa, como é óbvio. Por exemplo: participei nas negociações da ‘geringonça’; numa semana, foi necessário definir um programa mínimo para haver um acordo com PS, PCP e BE. A prova disso é que houve temas é que não conseguimos chegar a conclusões e foram criados grupos de trabalhos específicos para isso. Neste momento, fazer um acordo com quem for à esquerda sem que haja um programa bem definido, seria um erro.
“Hesitação da atual direção cria buraco que é preciso resolver”
Se o Bloco de Esquerda optar por manter este rumo, acredita que está em causa a sobrevivência do partido?
Acho que se não mudarmos de rumo é muito difícil reconquistar a credibilidade junto das pessoas. Estou muito empenhado em reconquistar em reganhar essa confiança. É preciso uma esquerda forte e radical, também como barreira ao avanço da extrema-direita. Esta hesitação que a atual direção do Bloco tem relativamente a estas questões cria um buraco no quadro político que é preciso resolver.
Isso é um sim à pergunta? A sobrevivência está de facto em risco?
Não quero ser dramático, não vale a pena. Não estamos num teatro. Agora, se o Bloco não mudar de rumo, fica numa situação muito complicada.
Vamos ao nosso segmento carne ou peixe. Quem convidava para comer um bacalhau à Braga: Mariana Mortágua ou Catarina Martins?
Tenho todo o gosto em almoçar ou jantar com qualquer uma e certamente que isso acontecerá. Neste momento estou mais interessado em conhecer, por exemplo, o que é que se passa com o programa para a habitação do Governo. Talvez fosse mais interessante almoçar com a ministra da Habitação.
Quem é que convidava para ser seu assistente nas aulas: Pedro Filipe Soares ou Jorge Costa?
Acho que não têm grandes competências na minha área, onde dou aulas.
Preferia ser ministro num governo de Pedro Nuno Santos ou nunca ver o Bloco chegar ao poder?
Não estou muito interessado em ser ministro. De qualquer modo, simpatizo com o Pedro Nuno Santos. Trabalhei com o Pedro Nuno na lei de bases da habitação, acho que fizemos um bom trabalho.
Existindo uma maioria parlamentar de esquerda, preferia que o BE assinasse de cruz uma reedição da ‘geringonça’ ou que permitisse ao PSD governar com o Chega?
Assinar de cruz nunca. Nem uma coisa, nem outra. Assinar de cruz foi o que se incutiu na opinião pública, de que o Bloco estaria disponível para assinar de cruz qualquer coisa desde que fosse com o PS. Rejeito completamente esse caminho.