Índice
Índice
Não é por acaso que é uma das fotografias mais icónicas do mundo: mostra dor, sofrimento e crueldade, o horror da guerra no Vietname aplicado, mais do que às populações civis, às crianças — Phan Thị Kim Phúc tinha apenas 9 anos quando teve de fugir após o ataque das forças americanas à sua aldeia.
A lente do fotógrafo cristalizou-a nua, descalça e em desespero. A história contada depois explicaria que foi a dor que a levou a livrar-se das roupas, queimadas com napalm, mas nem sem elas acabou o sofrimento — as cicatrizes provocadas pela mistura incendiária feita à base de gasolina gelificada, hoje sinónimo de atrocidade e tortura, ficariam consigo para sempre.
Agora a comparação: pessoas com 10% do corpo queimado com napalm, proibido pelas Nações Unidas em 1980, podem sofrer de falência renal; pessoas com a mesma superfície corporal queimada por fósforo branco podem ter morte súbita.
Não é de ontem que se fala no alegado uso de armas de fósforo branco na Ucrânia — acusações que o Kremlin tem rejeitado sempre, recusando qualquer violação das convenções internacionais. No dia 24 de março, passava exatamente um mês desde o início da invasão russa do país, o Presidente Volodymyr Zelensky acusou o exército agressor, numa reunião da NATO, de estar a usar armas de fósforo branco contra civis: “Esta manhã, a propósito, foram utilizadas bombas de fósforo. Bombas de fósforo russas. Mais uma vez, morreram adultos; mais uma vez, morreram crianças”.
Another evidence of phosphorus bombs used by russian invaders. In Kramatorsk this time #WarCrimes pic.twitter.com/RbJyYhLKe0
— Oleksiy Biloshytskiy (@Biloshytsky) March 22, 2022
Antes dele, outros oficiais ucranianos, como Oleksiy Biloshytskiy, chefe da polícia de Pospana, cidade a 100 quilómetros de Lugansk, já tinham dito o mesmo. Num vídeo que publicou no Twitter, alegadamente gravado em Kramatorsk, cidade no oblast (região) de Donetsk onde na semana passada morreram 59 pessoas num ataque à estação de comboios local, pode ver-se o solo a queimar e a deitar fumo branco — características comuns à substância. Oleksandr Markushin, o presidente da Câmara de Irpin, cidade entre Bucha e Kiev, denunciou na mesma altura que um ataque noturno contra a sua e a cidade de Gostomel tinha sido perpetrado com recurso às mesmas bombas.
Mayor of Irpin says Russia targeted suburbs of Kyiv with white phosphorus last night. Here’s what we saw from the centre of Kyiv. pic.twitter.com/wifOqbTkIW
— Rohit Kachroo (@RohitKachrooITV) March 23, 2022
Agora, esta segunda-feira, cerca de três semanas depois, o mesmo alerta foi feito por James Heappey, o ministro da Defesa britânico, que não se limitou a dizer que a Rússia pode estar a preparar-se para usar bombas de fósforo branco em Mariupol, à medida que se intensifica a batalha pelo controlo da cidade, como assumiu mesmo que as forças invasoras já o fizeram, nomeadamente nos municípios de Donetsk, na região do Donbass, noutras ocasiões desde o início da guerra.
Latest Defence Intelligence update on the situation in Ukraine – 11 April 2022
Find out more about the UK government's response: https://t.co/3RYc4QJBuG
???????? #StandWithUkraine ???????? pic.twitter.com/p6jpNvs1eU
— Ministry of Defence ???????? (@DefenceHQ) April 11, 2022
Mas, afinal, o que é o fósforo branco, que efeitos tem no corpo humano, por que motivos tem sido tão contestado e a sua utilização pode ou não configurar um crime de guerra?
O que é o fósforo branco?
Ao contrário do vermelho, que é inofensivo e usado em palitos de fósforo, que se acendem mediante fricção e apagam à mais leve brisa, o fósforo branco é uma substância química altamente tóxica, que se incendeia espontaneamente no contacto com o oxigénio, é muito difícil de extinguir e tem a capacidade de voltar a acender até na pele humana.
Tecidos, munições, combustíveis e até metais — todas estas substâncias são permeáveis à ação desta forma alotrópica do fósforo, a mais perigosa (vermelho, preto e violeta são as outras), que as regras de segurança mandam armazenar dentro de água.
Neste vídeo, publicado em 2015 no YouTube por um bioquímico canadiano, é possível ver, de forma controlada, como um pedaço de fósforo branco entra em combustão espontânea, mesmo depois de apagado com água — assim que volta a estar em contacto com o oxigénio, a substância começa a fumegar, acabando por reacender. “Assim podem ver o que torna o fósforo branco tão assustador”, explica o cientista. “Se entrar em contacto convosco, não podem simplesmente apagá-lo, têm de se livrar dele completamente. Para além disso, como o fósforo também é venenoso, mesmo extinto, vai continuar a infiltrar-se no vosso corpo.”
Antigamente usado na composição de pesticidas, fogos de artifício e até palitos de fósforo ultra resistentes às condições atmosféricas (no final do século XIX, depois de terem sido registadas deformações nas mandíbulas dos trabalhadores das fábricas que os produziam, a substância acabou por ser afastada), o fósforo branco é ainda hoje usado na composição de produtos químicos utilizados em fertilizantes, aditivos alimentares, compostos de limpeza, veneno para ratos — e armamento.
Desde 1916, altura em que foram produzidas as primeiras granadas, para uso do exército britânico, que os exércitos de praticamente todo o mundo têm utilizado fósforo branco em morteiros, cartuchos de artilharia e granadas — para além de eficazes para incendiar alvos como bunkers ou armazéns, à noite podem servir para iluminar locais, dada a forte luminosidade que produzem, sendo uma das suas características os traços de luz no céu; de dia para criar colunas de fumo capazes não apenas de bloquear a luz do dia mas também infravermelhos e sistemas de imagem térmica.
O fumo que produzem tem um cheiro semelhante ao do alho, é também ele altamente tóxico — e de acordo com a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos, apesar de à partida não provocar danos graves a partir dos 300 metros de distância, pode irritar as vias respiratórias da população mais suscetível até a cinco quilómetros de distância.
É uma arma proibida?
Sim. E não. Em primeiro lugar, o Willie Pete como é conhecido na gíria militar (uma derivação do alfabeto fonético em vigor durante a Segunda Guerra Mundial para White Phosporus — hoje seria Whiskey Papa) não é considerada uma arma química.
Não faz parte da lista de substâncias interditas pela Convenção sobre as Armas Químicas, em vigor desde 1997 e atualmente ratificada por 193 Estados — Rússia e Ucrânia incluídas.
Também não é legalmente considerada uma arma incendiária, segundo a determinação da Convenção da ONU sobre Armas Convencionais, em vigor desde dezembro de 1983, explicou em 2019, no blogue Lawfare, Matthew J. Aiesi, major do Exército dos Estados Unidos e professor de Direito da Segurança Nacional.
“O artigo 1.º do Protocolo define uma ‘arma incendiária’ como ‘qualquer arma ou munição concebida principalmente para atear fogo a objetos ou para causar queimaduras em pessoas através da ação da chama, calor, ou combinação dos mesmos, produzida por uma reação química de uma substância entregue no alvo’. O artigo exclui da definição munições ‘que possam ter efeitos incendiários acidentais, tais como iluminantes, traçadores, fumo ou sistemas de sinalização’”, enumerou o major do Exército dos EUA. Para logo a seguir concluir: “O fósforo branco é primariamente concebido para que sejam retiradas vantagens das suas propriedades produtoras de fumo, para marcar ou iluminar alvos, ocultar os movimentos de forças não hostis, e afins. Os efeitos incendiários do WP são acidentais. Assim, as munições de WP caem diretamente nas exclusões da definição de ‘arma incendiária’ do Protocolo III”.
Mesmo que o fósforo branco fosse considerado uma arma incendiária, a convenção não proíbe o uso de armas incendiárias durante conflitos armados, limita-se a circunscrever o seu uso, de forma a proteger as populações civis — podem ser usadas contra alvos militares, mas não contra alvos civis nem contra alvos militares caso existam nas imediações populações civis.
É tudo uma questão de terminologia legal, diz Matthew J. Aiesi: “As munições de fósforo branco são per se armas legais que podem ser usadas de forma consistente contra o inimigo. No entanto, as munições de fósforo branco, como qualquer arma legal, podem ser utilizadas de inúmeras maneiras ilegais, como para atingir especificamente civis ou lançar ataques indiscriminadamente”. Isso, sim, são inegavelmente crimes de guerra, previstos na Convenção de Genebra.
Que efeitos tem no corpo humano?
A descrição é do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças americano: “A exposição ao fósforo branco pode causar queimaduras imediatas que cicatrizam lentamente. A toxicidade sistémica da exposição ao fósforo branco é categorizada em 3 fases. A primeira fase (gastrointestinal) ocorre alguns minutos a 8 horas após a exposição ao fósforo branco. O choque durante esta fase pode ser suficientemente grave para causar a morte em 24 a 48 horas. A segunda fase (assintomática) segue-se à primeira fase e dura de 8 horas a 3 dias. A terceira fase (falha de múltiplos órgãos e lesão do sistema nervoso central) pode começar 4 a 8 dias após o início da segunda fase, e pode terminar em morte”.
Explicou em 2020 num relatório da Humans Right Watch Donatella Rovera, a conselheira sénior de resposta a crises da Amnistia Internacional, que documentou os ataques com fósforo branco em Gaza em 2009, “as queimaduras com fósforo branco são muito mais letais do que as queimaduras normais”.
Nesse mesmo ano, tornou-se célebre o caso de Razia, uma menina afegã de apenas 8 anos, que chegou ao hospital da base aérea de Bagram, a cerca de 60 quilómetros de Cabul, depois de um ataque com fósforo branco, em estado muito grave: a substância queimou-lhe cara, pescoço, braços, consumiu-lhe o cabelo, passou para o couro cabeludo chegou ao crânio. Ao contrário de duas das suas irmãs, Razia não morreu mas teve de ser submetida a mais de 15 cirurgias e só saiu do hospital dois meses depois.
O mais difícil, foi estabilizá-la, descreveu a NBC: a máscara de oxigénio que lhe colocaram quando foi transportada para o hospital derreteu, sempre que os médicos tentavam raspar o tecido corporal queimado, as chamas voltavam a irromper. Como explicou à Humans Right Watch Nafiz Abu Sha’ban, cirurgião no Hospital al-Shifa em Gaza, na altura a tratar um homem ferido com a substância, o fósforo branco pode colar-se à pele e continuar a infiltrar-se no corpo, agravando, com o passar do tempo, as queimaduras iniciais. “Já excisámos o tecido queimado e agora as feridas estão a piorar. Quando o vimos pela primeira vez, as feridas eram mais superficiais do que são agora.”
Para além de poder reacender-se após o tratamento e em contacto com o oxigénio — “Pode queimar pessoas até aos ossos e reacender-se em feridas limpas, uma vez removidas as ligaduras”, explicou às Nações Unidas em 2018 Stephen Goose, o diretor da divisão de armamento da Human Rights Watch —, o fósforo branco pode infiltrar-se na corrente sanguínea, envenenando rins, fígado e coração e causando a falência de múltiplos órgãos. Para além disso, a exposição à substância pode ainda provocar paralisia facial, convulsões e colapso cardiovascular completo em apenas 24 horas.
“É extremamente doloroso”, disse à Newsweek em 2019, numa altura em que foram documentados uma série de ataques com fósforo branco na Síria, mais uma vez contra populações civis, sobretudo crianças, Erik Tollefsen, o chefe da unidade de contaminação de armas do Comité Internacional da Cruz Vermelha.
Anos antes, à Humans Right Watch, a médica sírio-britânica Rola Hallam tinha feito uma descrição ainda mais pungente sobre este tipo de armas: “Podem queimar através de tudo. Se podem queimar através do metal, que esperança tem a carne humana”?
Quem o utiliza?
O ponto do artigo da Newsweek de 2019 era exatamente este: apesar dos seus efeitos profundamente nocivos e devastadores, “o fósforo branco continua a ser utilizado de forma surpreendentemente generalizada”, dizia a revista, com os governos a aproveitarem as lacunas das leis internacionais.
“A regulamentação de uma arma ao abrigo do Protocolo III depende da forma como quem a desenvolve, fabrica ou utiliza descreve o seu objetivo”, escreveu a Humans Right Watch, que nos últimos anos tem tentado alterar a legislação internacional, num memorando, já em 2015.
Dito isto, a organização revelou que os Estados Unidos, que já tinham recorrido à substância no Vietname, terão usado fósforo branco no Iraque, em 2004, e no Afeganistão, em 2009. O ataque de que foi alvo Razia, de oito anos, nunca foi aliás clarificado, tanto as forças da NATO, encabeçadas pelos EUA, como os Talibã, recusaram qualquer responsabilidade — não tendo, porém, negado utilizar a substância. Já no Iraque, o governo americano acabou por admitir ter utilizado armas de fósforo branco — entretanto um estudo, publicado em 2010, associou diretamente os ataques americanos com esta substância a Fallujah com aumentos sem precedentes na mortalidade infantil e nas taxas de cancro e leucemia.
Em 2008, denunciou também a Humans Right Watch, Israel terá usado fósforo branco na Faixa de Gaza, em edifícios como escolas, centros comunitários, hospitais e até um edifício das Nações Unidas, levando à morte e mutilação de inúmeros civis palestinianos. Apesar de a organização ter acusado Telavive de empreender estes ataques de forma indiscriminada em zonas habitacionais, visando atingir alvos civis, Israel garantiu sempre ter usado o fósforo branco apenas para “criar cortinas de fumo”.
Já a Síria terá recorrido ao mesmo tipo de armas em 2013, em vários ataques, denunciaram os observadores internacionais, incluindo aquele que teve alvo uma escola na província de Aleppo onde 37 civis morreram, a maior parte crianças, e 44 ficaram feridos.
Também na Síria, a Rússia acusou os Estados Unidos de usar este mesmo tipo de armas — e foi denunciada exatamente pelos mesmos motivos. Ambos os governos negaram tudo.