É de papel e caneta na mão que Ana Gomes vai visitando o país real. Sem estrutura de campanha, sem comitiva, sem apoiantes atrás de si, apenas com dois ajudantes e um fotógrafo. E um bloco de notas. Esta quinta-feira, o carro que por vezes conduz percorreu 400 quilómetros de curvas e contra curvas para ir de Lisboa a Cinfães, distrito de Viseu, tomar o pulso aos problemas do país real. Piscar o olho à esquerda de manhã e organizar a “resistência anti-fascista” à noite. Foi mais ou menos assim o dia de campanha.
Acessibilidades, falhas de rede tecnológica que dificultam o ensino à distância, falta de voluntários para os bombeiros locais, despovoamento e obstáculos burocráticos que seriam ultrapassados se houvesse maior descentralização. Ou seja, combate às desigualdades sociais, transição digital e economia verde. Ana Gomes passa os dias a piscar o olho ao eleitorado da esquerda e hoje não foi exceção. As visitas ao terreno são sempre pontuadas com ataques a Marcelo Rebelo de Sousa (o que também agrada à esquerda), quer seja pela sua visão “neo-liberal”, quer pelo “fator de bloqueio” que representa para a descentralização, quer ainda pela “displicência” com que está a encarar esta campanha eleitoral.
Não há frase que não termine com uma espécie de: a culpa é de Marcelo. Pelo contrário, e como parte considerável da esquerda apoia António Costa, de vez em quando também convém elogiar. O Governo “atuou bem” quando, ontem, anunciou “medidas duras mas indispensáveis” para combater a pandemia e decidiu manter as escolas abertas. “Um alívio”. Foi a primeira vez que se ouviu Ana Gomes elogiar Costa, depois de o ter comparado a Orbán na gestão da polémica do procurador europeu.
Mas há uma sombra a pairar: quanto mais a candidata critica Marcelo, mais lhe fica a sobrar vontade de criticar André Ventura. Hoje foi o dia em que não resistiu. À noite, reuniu-se numa conferência online com Rui Tavares e Manuel Alegre e, juntos, organizaram a resistência contra aquele-cujo-nome-não-pode-ser-pronunciado. Leia-se, André Ventura. Porque, desta vez, não vai lá com “tanques na rua”. A democracia está a ser “minada por dentro” e é por dentro que se tem de lutar.
Um apoio de cravo em riste
Manuel Alegre apareceu na campanha de Ana Gomes através de um ecrã, mas nos primeiros cinco minutos disse o que parecia que tinha entalado na garganta há vários meses. Citando Mário Soares, e lembrando os combates pela democracia e pela liberdade que travou com Soares e Salgado Zenha, Alegre acusou o Partido Socialista de ter desertado e desistido de lutar (e logo nestas presidenciais onde há uma “candidatura que quer destruir as instituições democráticas”), mas Ana Gomes teve a “coragem” de preencher esse vazio. Por isso é para ela que vai o seu voto, apesar de ser “amigo” de Marcelo Rebelo de Sousa e dele lhe merecer “muitas atenções”.
É Ana Gomes que, no seu entender, está a “representar a história que ajudou a construir”. Sem tanques nem cravos, Alegre elogiou o “espírito da resistência anti-fascista” que a candidata a Belém representa e apelou à luta. E Ana Gomes respondeu citando-o: “Mesmo na noite mais triste, em tempos de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. O nome de André Ventura nem por uma vez se ouviu numa hora de conversa a três. Mas esteve em toda a parte.
Marcelo (à boca grande), Ventura (nas entrelinhas)
O truque é não nivelar por baixo, por isso o centro das atenções de Ana Gomes vai ser — sempre — Marcelo Rebelo de Sousa. Foi ele quem voltou a atacar a cada frase que proferiu neste quinto dia de campanha. Mas hoje foi diferente: a candidata não resistiu a comentar os “insultos” de Ventura proferidos na véspera e, no momento em que teve Manuel Alegre virtualmente ao seu lado, ao cair da noite, o combate a Ventura foi indiretamente o centro das atenções. É um equilíbrio difícil: atacar o adversário real ou atacar o adversário imposto? Ana Gomes vai-se equilibrando na vara, mas hoje ia escorregando um bocadinho.
No país da Web Summit, Ana Gomes vira o jogo de Ventura contra Marcelo