Se o patrão de uma empresa chegar ao pé de outra pessoa e disser “o senhor vai trabalhar para mim e se não o fizer eu vou prendê-lo“, essa pessoa “não vai gostar nada, vai opor-se violentamente – mas aos Estados, aos governos, damos autorização para fazer isso. Ou seja, é assumido que se o Estado exigir que o senhor faça parte de um júri no tribunal, ou se o chamar para o Exército, o Estado tem todo o direito de o fazer”. Para David D. Friedman, filho do lendário economista norte-americano Milton Friedman (1912-2006), isto é um paradoxo.
Em entrevista ao Observador, por videoconferência, David Friedman, que se descreve como um “anarco-capitalista“, acrescenta que “se alguém que estivesse a vender bens ou serviços dissesse ‘o senhor vai ter de comprar os meus bens e serviços, quer queira ou não, e eu vou ficar com o seu dinheiro“, a pessoa também se iria incomodar. Mas tomamos como natural que os Estados façam isso todos os dias, quando nos cobram impostos”.
Na sociedade ideal de David Friedman, que teve uma longa carreira académica nas áreas da Física e da Química mas acabou por escrever vários livros sobre Economia e Direito, não há Estado. As pessoas e as organizações entendem-se umas com as outras porque contratam os serviços de “agências de defesa de direitos“, que defendem os interesses dos seus clientes da mesma forma que, quando há um acidente de carro, as diferentes seguradoras privadas se entendem umas com as outras para chegar a uma solução justa.
Será que funcionaria? Há vários exemplos históricos de sociedades sem Estado, diz David Friedman, que recorda as conversas que teve com o seu pai, à medida que ia formando a sua visão ideal do mundo. E o que dizia Milton Friedman, o seu pai, sobre estas ideias? “A opinião dele era que o sistema que eu estava a propor poderia funcionar, mas provavelmente não funcionaria. E minha opinião era que poderia não funcionar, mas provavelmente funcionaria”.
Friedman esteve em Portugal para apresentar a palestra “Market Failures: An argument for or against government?”, a convite da Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP), em parceria com a FEP Economics Society e a Students for Liberty Portugal.
Ao Observador, explicou como é que um “anarco-capitalista” deve olhar para o tema do eventual regresso do serviço militar obrigatório em Portugal: “não faz sentido”, porque é uma forma de usar pessoas “como escravos”. E deseja “boa sorte” a Javier Milei, o Presidente argentino que também se considera um libertário “anarco-capitalista”.
É frequentemente descrito como mais do que um libertário, a designação é anarco-capitalista. Essa é a designação correta para descrever os seus pontos de vista e os modelos que propôs?
Sim, esse é um rótulo com o qual estou razoavelmente confortável.
Significa o quê, ser anarco-capitalista?
Significa que sou a favor de uma sociedade em que a atividade humana seja coordenada por transações voluntárias, por mecanismos de mercado, onde não existe um Estado. Isto é, que as funções que os Estados têm e que são úteis sejam substituídas por instituições privadas.
Portanto, não existe Estado algum.
Correto. Em termos simples, no anarco-capitalismo não existem instituições que tenham direitos especiais que as outras pessoas não tenham. Por exemplo, se o patrão de uma empresa chegar ao pé de si e disser “o senhor vai trabalhar para mim e se não o fizer eu vou prendê-lo“, você não vai gostar nada, vai opor-se violentamente a isso. Mas aos Estados, aos governos, damos autorização para fazer isso. Ou seja, é assumido que se o Estado exigir que o senhor faça parte de um júri no tribunal, ou se o chamar para o Exército, o Estado tem todo o direito de o fazer. Da mesma forma, se alguém que estivesse a vender bens ou serviços dissesse “o senhor vai ter de comprar os meus bens e serviços, quer queira ou não, e eu vou ficar com o seu dinheiro“, também se iria incomodar. Mas tomamos como natural que os Estados façam isso quando nos cobram impostos. Em poucas palavras, o Estado é uma instituição que tem esse tipo de direitos especiais que lhes permitem fazer coisas que consideraríamos violações dos nossos direitos se outras pessoas fizessem essas mesmas coisas. O que o anarco-capitalismo defende é que seria possível ter uma sociedade funcional sem tal instituição.
Não é necessário um poder central para, no fundo, arbitrar as interações entre as pessoas e empresas?
As coisas que todos nós fazemos dependem de muitas outras pessoas, com interações que não são arbitradas por ninguém. Podemos imaginar estar sozinhos numa selva e tomar todas as nossas próprias decisões, mas como podemos fazer isso numa economia moderna? E a resposta é que pode fazê-lo através de um sistema de coordenação descentralizada, que é o que é um mercado, um sistema em que a pessoa A consegue que a pessoa B e a C façam coisas por si, oferecendo-se para lhes pagar para o fazerem.
O que é que isso significa, em concreto?
Se pensar nisso, o mundo em que vivemos é, à primeira vista, impossível. Impossível porque se olhar para a quantidade de interações descentralizadas que existem na nossa vida… O exemplo que é habitual dar-se é que para fazer um lápis é preciso coordenar alguns milhões de pessoas – porque, entre outras coisas, é preciso madeira. A madeira requer motosserras para cortar árvores. Para termos motosserras é preciso ter e gasolina e uma série de outras coisas… Se analisar esta sequência, verá que, mesmo para fazer um lápis, é necessário coordenar as atividades de um grande número de pessoas. E a forma óbvia de fazer essa coordenação é ter alguém no topo a dar ordens – mas isso funciona muito mal quando estamos a falar de uma coisa com a dimensão de uma economia nacional, como se demonstrou na União Soviética.
Qual é a maneira menos óbvia?
A forma menos óbvia de isto funcionar é o que temos, ou seja, a coordenação descentralizada propriedade privada, com comércio, etc. E quando falo em ao anarco-capitalismo refiro-me a uma sociedade onde esse é o principal mecanismo de coordenação, em vez de existir um chefe no topo a dizer a todos o que fazer.
O economista Murray Rothbard, da geração do seu pai, dizia que se houvesse um botão que ele pudesse premir e, ao fazê-lo, isso acabasse com o Estado, ele iria premi-lo imediatamente. David Friedman também carregaria nesse botão?
Eu não o faria.
Porque não?
Porque acredito que para ter uma sociedade anarco-capitalista viável é preciso desenvolver as instituições que ela exige. Se simplesmente abolíssemos o Estado, criaríamos muito rapidamente outro Estado.
O seu pai, Milton Friedman, não foi tão longe. Gostava de um Estado pequeno, mas achava que deveria haver algum Estado, com intervenção limitada na sociedade e na economia… O que achava ele do anarco-capitalismo?
A opinião dele era que o sistema que eu havia descrito poderia funcionar, mas provavelmente não funcionaria. E a minha opinião era que poderia não funcionar, mas provavelmente funcionaria. Não é uma distinção assim tão nítida (risos).
Ele morreu em 2006, um dos economistas mais marcantes daquela geração, Prémio Nobel em 1976 e criador das teorias da chamada Escola Monetarista de Chicago. Falava muito com ele sobre estes temas?
Não me lembro de termos discussões muito extensas sobre isto. É óbvio para mim que existem pontos que poderiam levar o meu sistema a quebrar. E acho que era óbvio para ele que o sistema talvez não quebrasse. Penso que o nosso desacordo não era sobre a forma como os Estados funcionam, mas sobre como poderia funcionar uma alternativa.
Mas acha que as pessoas podem realmente imaginar a vida sem o Estado, nesta fase?
Não vejo porque não conseguiriam. Afinal, existiram sociedades sem Estado no passado.
Onde?
O meu livro mais recente, que fala sobre sistemas jurídicos muito diferentes dos nossos, analisa uma ampla variedade de sistemas jurídicos, começando pela China Imperial, Péricles e Atenas… Vários dos sistemas que se abordam são sociedades sem Estado ou com Estado muito pequeno. O caso que conheço melhor, porque escrevi um artigo sobre ele há muito tempo, é o chamado Período Saga, na Islândia. Esta era uma sociedade que tinha uma legislatura e um sistema judicial, mas nenhum braço executivo do governo. Então, depois de receber seu veredito, cabia a si e aos seus amigos aplicá-lo. E foi um verdadeiro sucesso. Durou cerca de 300 anos, mais tempo do que os EUA duraram até agora. E produziu uma literatura muito boa. Ainda lemos os livros que se escreveram há 800 anos sobre como aquelas pessoas se organizavam.
Algum outro exemplo?
Um exemplo mais recente seria o sistema tradicional somali, anterior ao erro que foi a criação do país da Somália. Esse era, também, um sistema onde não havia governo central e havia mecanismos através dos quais as pessoas resolviam os seus conflitos, por vezes de forma violenta, mas muitas vezes não. E há outros exemplos: os índios Comanche, por exemplo, eram comunidades sem Estado. Grande parte, penso eu, do que realmente havia na Idade Média era característico de sociedades sem Estado, no sentido de que o que determinava as interações não era o Rei, que estava muito longe, mas sim regras implícitas sobre em que circunstâncias, se alguém o prejudicasse, você tinham o direito de retaliar, por exemplo.
Quem também se descreve como anarco-capitalista é Javier Milei, o novo Presidente da Argentina. Conhece-o?
Não o conheço pessoalmente, não.
Sabe se ele leu os seus livros?
Não sei, sei que nos discursos dele já referiu outros autores da área libertária mas, tanto quanto sei, nunca fez referência ao meu trabalho.
Mas acha que estas ideias podem vingar num país como a Argentina?
Não sei o suficiente sobre a política argentina para ter uma opinião fundamentada sobre aquilo que ele pode conseguir. Mas desejo-lhe sorte.
Este tem sido o tema favorito dos seus livros de Economia e Direito, embora se tenha formado mais em Física e Química…
O meu primeiro livro foi, em parte, uma tentativa de esboçar como seria uma sociedade moderna sem um Estado, mas com propriedade privada. E só quando fiz o trabalho que resultou no meu livro mais recente é que concluí que estava a tentar reinventar a roda, ou seja, que versões muito mais simples daquilo que descrevia tinham, de facto, existido no passado.
Mas porque é que a vida seria melhor sem o Estado? Como é que a pessoa comum pode entender como isso seria um benefício para a sua vida e para a vida das suas famílias?
Já falámos de exemplos extremos de centralização, como a Rússia Soviética. Mas mesmo nas nossas sociedades ocidentais, modernas, o Estado torna a vida das pessoas pior de muitas formas. Dou-lhe um exemplo: o Estado impõe restrições aos medicamentos, resultando na produção de muito menos medicamentos e a custos muito mais elevados. Sam Peltzman, um dos economistas da Universidade de Chicago, fez um trabalho onde mediu o efeito de uma mudança nas regulamentações dos medicamentos, um conjunto específico de regras que entrou em vigor e que a mudança que trouxe foi reduzir para metade o número de medicamentos criados – sem nenhum efeito positivo na qualidade média. Na verdade, simplesmente eliminou-se metade dos medicamentos, tornando-os mais caros para as pessoas. Esse seria um exemplo.
Que outros exemplos costuma referir?
Outro do qual eu gosto de falar é sobre um comunicado da Food and Drug Administration (FDA) onde eles confessam ter matado 100 mil pessoas. É claro que não foi assim que eles colocaram as coisas. O que está em causa são os betabloqueadores, medicamentos usados para prevenir um segundo ataque cardíaco, que a FDA finalmente decidiu aprovar nos EUA. Naquela época, eles já eram de uso comum na Europa há pelo menos 10 anos. E o comunicado de imprensa da FDA dizia que estes medicamentos salvariam 10.000 vidas por ano. Portanto, se os proibiram durante 10 anos, 10 mil vidas por ano, isso significa que por causa deles morreram 100 mil pessoas. É claro que não foi assim que a FDA fraseou a coisa…
E na Europa?
Na maioria dos países europeus, cerca de metade de todo o rendimento vai para o Estado, na forma de impostos. Nos EUA, atualmente, é um pouco mais de um terço. Portanto, as pessoas estariam muito melhor se isso não acontecesse. Suponho que dependeria do país em particular. Não sei o que Portugal faz de errado, mas no que diz respeito aos EUA, por exemplo a guerra contra as drogas envolve custos muito elevados. Resulta em grandes quantidade de despesa pública, muita gente a ir para a cadeia, muita gente a morrer por causa de drogas que são de pior qualidade porque são vendidas num mercado ilegal (onde é mais difícil comprovar a qualidade, etc…). Portanto, penso que há muitas maneiras pelas quais os Estados tornam o mundo um lugar pior. Mas não creio que alguém deva ser persuadido desse facto com uma conversa de 15 minutos como a que estamos a ter agora.
Mas será um Estado sem Estado uma sociedade sem lei?
Não. O sistema que esbocei no meu primeiro livro – e que expandi desde então – é aquele em que os indivíduos são clientes de empresas privadas que protegem os seus direitos e organizam a resolução dos seus litígios. O problema que obviamente temos é saber o que acontece se eu achar que o senhor me roubou e o senhor alegar que não. O que teríamos era diferentes “agências de defesa de direitos” das quais éramos clientes, empresas privadas que nos iam defender a cada um de nós. Os críticos desta ideia dizem que as nossas agências andariam numa guerra constante umas com as outras. Mas as guerras são muito caras e estamos a falar de empresas privadas, que querem ganhar dinheiro. Portanto, penso que o resultado provável de um conflito é que cada empresa – cada “agência de defesa de direitos” – iria sempre tentar chegar rapidamente a um acordo prévio, para evitar chegar às instâncias mais elevadas como aquelas que cumpririam as funções que hoje cumprem os tribunais, nas nossas sociedades, mas que aqui seriam também tribunais arbitrais privados.
Quem faria cumprir esse acordo sem um Estado?
No modelo anarco-capitalista não há um Estado para fazer cumprir esse acordo. O que promove que haja um acordo é o facto de estas agências serem “jogadores recorrentes”, ou seja, cada empresa sabe que se o veredito for ignorado quando for desfavorável ao seu cliente, então a outra empresa irá ignorar outros vereditos quando for no sentido contrário. E aí ninguém ganha, desaparece o negócio para todos.
Existe algum exemplo atual de como isso funcionaria?
Todos conhecem um exemplo real, atual, de como isto aconteceria. Se pensar na situação em que o seu carro bate no carro de outra pessoa, e o senhor tem uma seguradora, que é diferente da seguradora da outra pessoa. Cada uma dessas empresas gostaria que a decisão final fosse no sentido de atribuir a culpa ao cliente da outra empresa, ou seja, partimos de um impasse em que cada empresa quer que seja a outra a pagar. Eles poderiam resolver a disputa recorrendo a um tribunal – mas ir a um tribunal é muito caro, moroso e não é fácil prever quais decisões acabam por ser tomadas. Então, o que realmente acontece, como todos sabemos, é que as companhias de seguros elaboraram um conjunto de regras práticas que ambos aceitam, para que se possa decidir fácil e rapidamente qual empresa deve pagar o dinheiro pelo acidente, sem ter de passar pela experiência complexa e cara de ir para tribunal.
Claro, mas está a falar de um pára-choques de um carro, ou mesmo que o carro se tenha estragado completamente, são coisas materiais… Como é que o anarco-capitalismo lida com questões mais essenciais?
Não sei se isto é assim tão insignificante… Decidir sobre que é que tem de pagar 50 mil dólares para comprar um carro novo é algo que é muito importante para a vida das pessoas. Mas o facto de a lei tratar de coisas ainda mais importantes é, para mim, um argumento a favor de ser feito por mercados privados e não pelo Estado – porque ficam mais bem feitas. Se tudo o que o Estado se encarrega de fazer é entregar as suas cartas, bem… às vezes as suas cartas vão chegar atrasadas. Mas imagina alguma coisa mais importante para as pessoas do que a alimentação, que hoje é gerida de forma descentralizada? Se o Estado for responsável pela produção e distribuição de alimentos, como aconteceu na União Soviética e na China, então milhões de pessoas irão morrer de fome. Quanto mais importantes forem as coisas mais eu defendo que sejam geridas de forma descentralizada e não por um Estado central.
Numa sociedade sem Estado, quem está lá para impedir que a minha casa seja invadida? Ou quem está lá para impedir que meu País seja invadido?
Impedir que o seu País seja invadido é um problema muito mais difícil. O primeiro é fácil: para evitar que a sua casa seja invadida, basta ser cliente de uma empresa como as tais agências de proteção de direitos, como referi. E se uma empresa não proteger bem os seus direitos e a sua propriedade, ninguém estará disposto a pagar a essa empresa qualquer dinheiro para proteger os seus direitos, portanto essa empresa vai falir.
Mas o que isso significa? Quer dizer que pago a uma empresa para colocar um segurança em frente à minha casa o dia todo?
Não necessariamente. Basta que essa empresa deixe claro que se alguém invadir e assaltar a sua casa, eles irão descobrir quem o fez e irão processá-lo e exigir-lhe muito dinheiro, ou tentarão puni-lo de alguma outra forma.
Disse que evitar que o meu país seja invadido é uma questão muito mais difícil de responder…
Esse é um problema mais difícil, sim. Porque prevenir que a minha casa seja invadida é uma defesa simples de um bem privado. O custo disso onera-me a mim e, portanto, estou disposto a pagar a uma empresa para impedir que as pessoas a roubem. Mas evitar que o meu país seja invadido é um bem público, sendo que para os economistas “bem público” não significam um bem produzido pelo Estado: significa um bem cujo produtor não pode controlar quem o recebe e, portanto, não pode vendê-lo da forma como se fosse um sapato ou uma peça de fruta. E a defesa nacional é um bem público e não há garantia de que as formas que existem de pagar bens públicos seriam suficientes para defender um dado país. Também vai depender, em parte, do risco que o país corre, do quão patrióticos são os seus cidadãos e até que ponto estão dispostos a doar dinheiro para ajudar a defender o país.
Isso poderia fazer com que o sistema que o Professor Friedman propõe não funcionasse?
Eu disse anteriormente que a opinião do meu pai era que poderia funcionar, mas provavelmente não funcionaria, e minha opinião era que poderia não funcionar, mas provavelmente funcionaria. E uma das razões para potencialmente não funcionar é que se estivermos na situação, digamos, de uma Estónia ou uma Letónia, onde temos um vizinho muito poderoso e agressivo, pode não ser possível garantir defesa suficiente sem um Estado que reúna os recursos para impedir esse vizinho de atacar.
A propósito, em Portugal está a haver um debate público sobre a possibilidade de se voltar a ter serviço militar obrigatório, algo que deixou de existir nos anos 2000. Em parte, essa discussão surge porque temos uma situação geopolítica delicada aqui na Europa. Algumas pessoas dizem que teremos, por essa razão e outras, de trazer o serviço militar obrigatório de volta…
Não acho que isso faça muito sentido. Se olharmos para o produto económico dos países europeus da NATO esse produto é cerca de 10 vezes superior ao da Rússia. Portanto, é difícil acreditar que, se estes países estiverem realmente dispostos a gastar recursos consideráveis nas suas forças armadas, esses recursos não possam ser suficientes para lidar com a Rússia sem que seja preciso escravizar pessoas para garantirem que têm soldados.
Não faz sentido, portanto, na sua opinião…
Penso que, em geral, qualquer economista dirá que o recrutamento forçado é uma forma muito ineficiente de criar um exército. Porque o que todos gostamos de ter é as pessoas que são melhores a combater (e piores a fazer qualquer outra coisa) no exército – da mesma forma que gostamos de ter as pessoas que são melhores em ensinar (e piores em outras coisas) a ensinar nas escolas, por exemplo. O que um economista quer é que as pessoas vão para as áreas onde são mais úteis. E, portanto, a solução passará por ter um exército profissional onde se contrata pessoas aptas a um salário razoável, em vez de simplesmente impor o custo a todas as pessoas, aos jovens, escravizando-os.
Mesmo na Ucrânia, quando Putin invadiu o país, o governo ucraniano impediu que os homens com idades entre os 18 e os 65 anos, salvo erro, deixassem o país. Claro, sabemos que alguns conseguiram sair do país, mas…
Posso compreender porque é que o governo ucraniano fez isso, mas não deixa de ser uma violação clara dos direitos das pessoas que queriam sair e não puderam… Penso que a Ucrânia tem argumentos melhores para fazer isso do que para Portugal, porque Portugal não tem uma fronteira comum com a Rússia.
Voltando ao anarco-capitalismo. Se a lei é concebida e aplicada de forma privada, não é apenas uma questão de quem é financeiramente mais forte? Digamos que o Professor e eu estamos a caminhar numa rua à noite e uma terceira pessoa leva um tiro – o Professor diz que fui eu e eu digo que foi o Professor. Se o Professor for mais rico do que eu, não será capaz de me culpar pelo crime, mesmo que não tenha sido eu?
Não, porque os clientes das nossas agências de defesa dos direitos querem um sistema onde só serão punidos se realmente cometerem um crime. E, portanto, uma agência de aplicação dos direitos que tem a reputação de condenar a pessoa errada – quando esta é menos rica – não será capaz de vender os seus serviços a muitas pessoas.
Mas as pessoas mais ricas terão acesso a agências melhores, ou não?
Claro, mas hoje as pessoas mais ricas têm acesso a melhores alimentos, por exemplo. O objetivo de ser rico é ter acesso a coisas melhores, mas isso não significa que o rico será capaz de matar o pobre. Isso significa que a pessoa rica, quando alguém a rouba e ela liga para a agência de aplicação de direitos, alguém aparece 15 minutos depois, e a pessoa pobre, alguém aparece uma hora depois. Porque o rico paga um preço mais alto por um serviço de maior qualidade, que é o que acontece em muitos contextos.
Então, o pobre não estaria em situação pior do que aquela que temos?
Porque diz isso? Não sei como estão as coisas em Portugal, mas nos EUA as pessoas pobres dos guetos urbanos não recebem muita proteção policial…
Existem prisões na sua sociedade anarco-capitalista?
Não sei se existem. Pense assim: suponhamos que eu digo que a indústria automobilística deveria ser totalmente privada sem qualquer intervenção estatal. E responde-me com a pergunta: se assim isso, as empresas vão produzir muitos ou poucos automóveis elétricos? A resposta é: não sei. Da mesma forma, não sei se, num sistema de mercado que produza a sua própria lei, as prisões farão algum sentido ou se é possível fazer tudo com multas. Não posso prever quais serão os resultados que mercado vai encontrar. Só posso dar razões para pensar que os resultados do mercado respeitarão melhor os valores humanos do que os resultados políticos.
E qual é a sua opinião sobre a corrupção? Existe algo inerente ao poder político que será sempre vulnerável à corrupção? E como seria a sua solução menos vulnerável à corrupção?
“Sempre” é um pouco forte. O problema fundamental é que o próprio político, estatal, não sofre os custos das suas ações, ao passo que uma empresa privada sofre. Isto é, se eu tiver uma empresa privada que recolhe o meu lixo e eles forem corruptos e não o recolherem quando e como deveriam, rapidamente irão começar a perder clientes. Porém, os responsáveis políticos não sofrem com a mesma coisa.
Não perdem votos?
É isso que se supõe. Mas, na realidade, o indivíduo, mesmo num país tão pequeno como Portugal, sabe que o seu voto individual não tem qualquer hipótese de afetar o resultado da eleição. E, portanto, ele tem muito pouco incentivo para tentar usar o seu voto para controlar o poder estatal. Ou seja, quando alguém escolhe um carro para comprar, essa pessoa sente a consequência direta da sua escolha: comprar o carro A e não o carro B. Isso quer dizer que o indivíduo, num mercado, tem um controlo direto sobre aquilo que obtém – e isso dá-lhe um incentivo para tentar descobrir qual dos produtos disponíveis será o melhor para ele.
Outro tema que gostaria de abordar consigo é a forma como os governos lidaram com a pandemia da Covid-19, por ter sido um momento em que o Estado determinou a vida das pessoas a um nível inédito na história recente. Como é que um anarco-capitalista viu aquilo que aconteceu, os confinamentos, a impossibilidade de as pessoas gerirem o seu próprio risco de apanhar a doença?
Pensei que no geral, pelo menos o meu governo, tomou muitas decisões idiotas. Não sei o que aconteceu em Portugal…
Em que estado morava?
Na Califórnia, que não foi uma das piores, devo dizer. Fecharam as escolas, mas não trancaram as pessoas nas suas casas, por assim dizer. Recordo-me, por exemplo, que a FDA proibiu inicialmente a utilização de quaisquer testes para a Covid-19 que não fossem aquele que tinham aprovado – isto embora outros testes estivessem a ser utilizados no estrangeiro. E depois de essa situação já existir há algum tempo, eles admitiram que o único teste que tinham aprovado não funcionava bem. Os outros é que funcionavam.
E as vacinas?
As pessoas falam sobre o facto de termos conseguido uma vacina em menos de um ano. Mas, na verdade, tivemos uma vacina em menos de uma semana. Esse foi o tempo que demorou desenvolver a primeira das vacinas. Se o Estado não se tivesse envolvido, é claro que teria levado algum tempo a testá-las, de alguma forma, e a desenvolver instalações de produção, etc. Mas não creio que demorasse mais de um ano, como demorou. Mas os Estados insistiram na forma mais longa de testar uma vacina, que é esperar muito tempo até que um número suficiente de pessoas tenha contraído Covid acidentalmente, por assim dizer, para que depois se possa dizer que aqueles que foram vacinados têm menos probabilidade de contraí-la (ou morrer da doença) do que aqueles que não tomaram a vacina. E essa seria uma política perfeitamente sensata se as pessoas não estivessem a morrer aos milhares, por dia, porque lhe dá resultados mais confiáveis do que o procedimento muito mais rápido em que há um grupo de voluntários que são deliberadamente infetados – e avalia-se como é que essas pessoas são infetadas (ou não) conforme tenham ou não sido vacinadas. Mas não creio que aplicar o método cientificamente melhor faça sentido quando vários milhares de pessoas morrem todos os dias, como era a situação na altura.
E o debate sobre as máscaras, que nos EUA foi muito intenso?
Nos EUA, o uso de máscaras foi tratado mais como simbólico do que real. O que quero dizer é que houve vários momentos em que eles insistiram que as pessoas tinham de usar máscaras, mas não insistiram que usassem máscaras N95, as que realmente funcionavam. Então as pessoas usavam apenas máscaras de tecido, sobre a boca, o que tem muito pouco efeito na transmissão. Além disso, essencialmente neutralizaram as escolas por um ou dois anos, apesar de logo se ter percebido que as crianças em idade escolar quase não tinham qualquer risco de morrer de Covid-19. Era um risco para os velhos, não para os jovens. Eu teria dito que a maioria das pessoas seria capaz de gerir o seu próprio risco, mas a verdade é que fui capaz de gerir melhor o meu risco porque já estava reformado. Portanto, penso nem tudo o que fizeram foi errado e não vou ao ponto de dizer que tudo teria corrido bem sem Estado. Mas penso que, quando se pesam as boas e as más decisões, os Estados de um modo geral provavelmente tornaram as coisas ainda piores.