Os sete chegaram à sala e foram recebidos com o flash das máquinas fotográficas, à medida que atravessaram o pequeno grupo de jornalistas ali reunidos, em fila, em direção ao palco. Luciana Berger tomou a dianteira e subiu ao pódio, adornado com um cartaz branco onde se lia em letras pretas carregadas “The Independent Group” (O Grupo Independente) e, por baixo, o lema #ChangePolitics (Mudar a Política).
Enquanto os restantes seis deputados se sentavam nas cadeiras alaranjadas ao seu lado, Berger começou por anunciar ser “Luciane Berger, a deputada do Labour…”, interrompendo-se de imediato. O seu riso nervoso foi acompanhado de imediato por algumas gargalhadas tímidas na sala, ou não fosse a presença de Berger ali precisamente para anunciar que aqueles sete deputados iam abandonar a segunda maior força política britânica. “Todos nós nos demitimos esta manhã do Partido Trabalhista”, esclareceu pouco depois. “Pessoalmente, sinto-me envergonhada por pertencer ao Partido”, acrescentou Berger. “Os [seus] valores têm sido consistentemente e repetidamente violados, minados e atacados.”
O anúncio daqueles sete deputados — Berger, Chris Leslie, Angela Smith, Mike Gapes, Gavin Suker, Ann Coffey e, provavelmente o mais mediático de todos eles, Chuka Umunna — caiu como uma bomba na política britânica e, em particular, dentro do Partido Trabalhista. E entretanto uma oitava deputada, Joan Ryan, juntou-se a eles. É a primeira cisão do partido em quase 40 anos, interligada a uma profunda crise política provocada pelo Brexit. O diferendo sobre a Europa não é o único ponto de contestação do grupo, mas pode também ter servido para acelerar este processo de saída de alguns. Uma coisa é certa: se o Partido Conservador está dividido, o Labour não lhe fica atrás.
Oito deputados abandonaram o partido. Porquê?
Os sete parlamentares inciais têm, entre eles, 112 anos de serviço ao Partido Trabalhista, como aponta o Times. Alguns foram ministros-sombra (Umunna, Berger, Leslie, Shuker), outros são deputados há mais de 20 anos (Leslie, Gapes e Coffey), mas só um (Leslie) tem experiência governativa. Todos aproveitaram este momento para denunciar o que consideram ser o “bullying e preconceito” que veem atualmente no Partido Trabalhista, justificando assim a sua saída.
Mais concretamente, Berger, deputada de origem judia, afirma não conseguir pertencer mais a um partido que é “institucionalmente anti-semita”, pondo assim o dedo na ferida ao referir-se às várias queixas contra o partido nesta matéria sob a liderança de Jeremy Corbyn. Mas essa não é a única crítica que levou o “bando dos sete” a sair: Umunna diz que a falta de confiança em Corbyn na defesa da “segurança nacional” é “um grande assunto para nós”; Leslie afirma que o partido “foi sequestrado pela máquina política da extrema-esquerda”; Smith acusou os “intelectuais de esquerda” dentro do partido “que pensam que ser pobre e de classe trabalhadora constitui um estado de graça”; e Gapes disse-se “furioso” pela liderança do partido “ser cúmplice na facilitação do Brexit”.
“A gota de água para este grupo foi o facto de eles sentirem que não conseguem, em consciência, fazer campanha por um partido que colocaria Jeremy Corbyn e os que o rodeiam no poder”, resume ao Observador Simon Fitzpatrick, analista especializado no Labour da consultora Cicero. “Eles discordam da visão de Corbyn para a política externa, acham que ele esteve do lado errado em muitos assuntos internacionais, e acreditam que o seu círculo próximo têm sido demasiado lentos a atuar contra o anti-semitismo no partido.”
As diferenças não são novas. Em 2015, Chuka Umunna apresentou a Corbyn a sua demissão do cargo de ministro-sombra da Economia, assumindo ter “diferentes pontos de vista sobre como construir uma sociedade mais igualitária, democrática, livre e justa”.. Também Gapes, em abril passado, avisava estar “pronto” para se demitir do partido. E muitos criticaram abertamente a política de Corbyn relativamente ao Brexit: após o referendo, 172 dos 248 deputados do Labour votaram a favor de uma moção de censura ao líder; este, contudo, acabou por manter-se no cargo. As divisões internas dentro do Partido Trabalhista não eram, por isso, surpresa para ninguém — só restava a dúvida se alguém ia mesmo avançar para uma cisão oficial.
Por enquanto, os deputados ainda não têm nenhum nome oficial para lá de “Grupo Independente” e não são, por enquanto, um partido. Todos continuarão no Parlamento, como deputados independentes, até à próxima eleição. Mas, ao abrirem a porta a que outros deputados do Labour e de outros partidos se juntem ao seu projeto, revelaram desejo de conseguir criar uma força mais sólida no futuro. “A palavra crucial é ainda. Não somos um partido novo — ainda”, declarou um deles ao Guardian.
“Mesmo que não haja mais deputados a seguirem-nos, vai haver solidariedade”, prevê ao Observador Tim Oliver, professor da Universidade de Loughborough que se tem dedicado a estudar os efeitos do Brexit na política nacional e internacional. “Alguns destes deputados tinham pouco a perder se fizessem isto. Ou iam ser preteridos por outros candidatos pelo partido na próxima eleição, ou foram eleitos com maiorias muito confortáveis, o que lhes dá grandes hipóteses de não perder o lugar [numa próxima eleição]. Isto não vai extinguir-se em breve, as divisões do Labour são profundas e remontam a décadas.”
Mais deputados do Labour vão sair?
Provavelmente. Esta terça-feira, as capas dos principais jornais britânicos anunciavam isso mesmo e pouco depois deu-se o anúncio de Joan Ryan.
Tuesday’s GUARDIAN: Corbyn is warned: change or more rebels will quit #tomorrowspaperstoday pic.twitter.com/cXnaaP9zfe
— Helen Miller (@MsHelicat) February 18, 2019
Quantos o farão e se essas saídas serão residuais ou de grande impacto, é o que falta saber.
“Muito depende de como a liderança do partido reagir nos próximos dias e nas próximas semanas. Se eles ‘enterrarem a cabeça na areia’ e não reconhecerem a seriedade dos problemas, outros podem segui-los”, prevê Fitzpatrick. O mesmo deram a entender alguns deputados trabalhistas aos jornais: “Frank Field deixou o Labour por causa de bullying há seis meses”, declarou o deputado Neil Coyle, dando o exemplo do histórico do partido que saiu em desacordo da liderança de Corbyn, dizendo-se “intimidado”. “Esse falhanço teve consequências que contribuíram para que mais membros e deputados saíssem do partido. Um falhanço continuado em resolver os problemas vai provocar mais saídas.”
Por um lado, várias fontes do partido têm garantido aos media que pode vir aí cerca de uma dezena de demissões. Por outra, há relatos de que 30 deputados do partido estiveram a discutir a saída nos últimos meses, mas que as diferenças de opinião quanto a estratégia e organização levaram a que apenas este primeiro grupo desse o passo esta semana.
Uma coisa é certa: a quantidade de trabalhistas descontentes com a liderança de Corbyn é muita. “É claro que há um número de outros deputados que estão a avaliar o seu futuro no Labour”, resume Fitzpatrick. “Ficaria surpreendido se pelo menos uns quantos mais não os seguissem.”
O Brexit é um dos problemas para o “grupo dos sete”?
Sim. Embora não seja a principal queixa relativamente à liderança de Corbyn, não há dúvidas de que os primeiros sete deputados são fortemente críticos da postura do líder do Labour face ao Brexit e que gostariam que o Reino Unido permanecesse na União Europeia (UE).
Oficialmente, o partido diz respeitar o voto do referendo, mas impõe condições para a saída, defendendo, por exemplo, que o país se mantenha numa união comercial com os europeus. Corbyn, contudo, tem um historial de críticas a Bruxelas. “Mesmo que Corbyn apoie um novo referendo, ele vai esperar até ser demasiado tarde ou vai dar a deputados suficientes um aceno para que o chumbem”, previu um dos “sete” ao colunista Nick Cohen, da Spectator, preferindo manter o anonimato.
Por isso mesmo, o grupo demonstrou abertura para acolher no seu seio membros do Partido Conservador que defendem a permanência na UE. Esses tories, declarou Umunna, “estão desmoralizados pela UKIPização do seu partido e a sua posição na Europa”, razão pela qual são bem-vindos pelo Grupo Independente.
Em suma, o Brexit faz parte da cola que une os dissidentes, mas não é o único elemento que a compõe.
Como vai Jeremy Corbyn reagir a isto?
“Corbyn pode bem argumentar que ele próprio não abandonou o partido quando discordou das políticas seguidas durante a liderança de Tony Blair.” Esta é uma das estratégias que Tim Oliver prevê que possam vir a ser usadas pelo líder trabalhista em reação a esta cisão: reforçar que o Labour sempre foi um partido com diversas correntes de opinião, mas que isso não se traduz necessariamente em separação.
Para já, Corbyn disse estar “desiludido” com as saídas e, esta terça-feira, reforçou que o partido tem instrumentos para ouvir aqueles que estão em desacordo. “Aqueles que dizem não estar a ser tidos em conta não estão a aproveitar as oportunidades que existem e que estão disponíveis para eles a qualquer altura”, afirmou. Contudo, reconheceu que “ao liderar um partido, é preciso levarmos as pessoas connosco”, abrindo a porta a uma possível reflexão interna.
Alguns dos aliados mais próximos do líder, contudo, foram menos tolerantes. O ministro-sombra das Finanças, John McDonnell, avisou os dissidentes que devem abandonar os seus lugares na Câmara dos Comuns e sujeitar-se a eleições para lá permanecerem. A Momentum, organização interna do Labour muito próxima de Corbyn, classificou o “bando dos sete” como um grupo que quer voltar “a um programa de privatizações, corte de impostos para os mais ricos e desregulação dos bancos”, colando de imediato o grupo à “Terceira Via” de Blair. Também o secretário-geral do Unite, o sindicato próximo dos trabalhistas, sublinhou que “todo o fel” destes deputados “está reservado para o seu próprio partido e para as políticas que lhes garantiram votações recorde nos seus círculos eleitorais há 18 meses”, disse Len McCluskey.
O vice-presidente do partido, Tom Watson, apresentou no entanto uma postura diferente. “Confesso que temia que este dia chegasse e temo agora que, se não mudarmos, podemos vir a ver mais dias como este”, disse num vídeo divulgado no Facebook onde não poupou nas palavras: “Amo este partido, mas às vezes já não o reconheço.”
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O aviso a Corbyn veio de dentro, mas não é certo se o líder tenciona fazer marcha atrás. “Por agora não o vejo a fazer mudanças de fundo em reação a isto”, avisa Fitzpatrick. “Mas se ele não agir e mais membros do partido seguirem os sete, ele pode ser forçado a isso. Pessoas como Tom Watson estão já a tentar sublinhar a importância de ouvir as mensagens que estes sete estão a tentar passar.”
É a primeira vez que há uma cisão no Labour? E ela representa uma ameaça séria ao futuro do partido?
Em relação à primeira pergunta, a resposta é não.
Em 1972, Dick Taverne abandonou o Labour depois de ter sido censurado internamente pela sua postura fortemente a favor da UE. Acabaria por concorrer como independente ao mesmo mandato e derrotar tanto o candidato do Labour como o do Partido Conservado — e a sua ação, diz a New Statesman, “inspirou os seus aliados políticos Roy Kenkins, David Owen, Shirley Williams e Bill Rodgers, de que uma saída do Labour podia ser bem sucedida”. Este grupo, composto por antigos membros de Governo, acabaria por fazer isso mesmo em 1981 e fundar o Partido Social Democrata (SDP na sigla original) — que, anos mais tarde, evoluiria para o Partido Liberal Democrata, atualmente terceira maior força política nacional nos Comuns. Taverne, que deu uma entrevista esta segunda-feira, previa precisamente que o momento está “maduro” para que haja um desafio à liderança de Corbyn, mas reconhecia haver problemas com o timing, já que a data oficial do Brexit (29 de março) está tão próxima.
Quanto à possibilidade de o Grupo Independente ser uma ameaça tão forte ao Labour como o SDP foi em tempos, é mais difícil prevê-lo. Por um lado, há sinais positivos para os dissidentes: uma sondagem publicada pela Sky News esta terça-feira dá conta de que o grupo aparece à frente dos Liberais Democratas, com 10% das intenções de voto.
Por outro, vários analistas sublinham que as comparações com o SDP “não fazem sentido”, como alegou Suzanne Moore no Guardian, falando “numa era largamente diferente”. O editorial do mesmo jornal também vai nesse sentido e aponta que, apesar das críticas, o Labour de Corbyn está numa situação muito diferente: “Não há provas de que a maioria que votou em Corbyn em 2015 e em 2016 — ou os sindicatos — vacilou no seu apoio. Mesmo após as demissões desta segunda-feira, este não é um partido envolvido no tipo de guerra civil que abalou o Labour de Michael Foot em 1981. Isso pode vir a acontecer no futuro, mas o facto de não estar a acontecer neste momento sugere que muitos dos críticos de Corbyn tencionam ficar e defender as suas ideias.”
A cisão pode afetar também o Partido Conservador?
Sim — basta que alguns tories a favor da manutenção na UE decidam juntar-se ao grupo. Para isso mesmo alertou o Telegraph no seu editorial desta terça-feira, referindo-se ao rombo que o SDP fez no voto conservador no início dos anos 80, mas que foi contido pela liderança de Margaret Thatcher. “Mas o Partido Conservador de hoje não tem uma líder do calibre da senhora Thatcher e há rumores de descontentamento nas bancadas dos tories também. Não é impossível imaginar um pequeno número de conservadores a favor do Remain a gravitarem em torno do senhor Umunna e dos outros, cujo grupo — ainda não um partido — é suficientemente amorfo para atrair membros que não sejam do Labour.”
De acordo com as contas do Telegraph, há cinco os membros do Partido Conservador que podem decidir juntar-se ao grupo dos sete: Anna Soubry, Sarah Wollaston, Heidi Allen, Nick Boles e um membro do Governo não nomeado.
“O maior desafio seria como criar uma visão comum se o grupo incluísse deputados conservadores”, alerta Fitzpatrick. “Eles podem ter coisas em comum na sua oposição ao Brexit, mas teriam mais dificuldades em alinhar políticas em temas como impostos, regulação do setor privado, investimento público e etc.” Será o Brexit assunto suficientemente divisivo para Soubry e os restantes arriscarem dar o salto? O que nos leva à última questão…
O Brexit irá reconfigurar a política britânica?
É a pergunta de um milhão de dólares — ou libras, neste caso. É o Brexit tema suficientemente divisivo para levar à criação de um novo partido com figuras de ambos os grandes partidos da política britânica? Para isso, é necessário que 30 deputados se juntem, o que lhes daria estatuto oficial de “terceiro partido” nos Comuns e uma hipótese de colocar perguntas a Theresa May nos debates, como explica o Guardian. A adesão ou não de conservadores a este grupo dos sete será decisiva: é isso que irá determinar “se são uma nota de rodapé da História da política partidária britânica ou um novo capítulo”, resume a Economist.
Este movimento, diz o professor Oliver, é o exemplo claro de que os principais partidos britânicos estão divididos, na Europa e não só. Mas, defende o académico, é a prova de que o Labour está ainda mais partido do que os tories: “O Partido Conservador tem divisões, mas estão mais unidos em ideias ligadas à política económica do que o Partido Trabalhista”, sentencia. “O Brexit irá dividir os dois partidos durante muito tempo, mas os deputados vão ser forçados a enfrentar a dura realidade do sistema eleitoral britânico e, por isso, a maioria manter-se-á no seu partido. O que não significa que os dois partidos podem tomar por garantida a capacidade de controlarem a agenda. Mas as oportunidades políticas para os deputados que se demitirem vão ser limitadas e a formação de um novo partido será algo difícil de sustentar.”
A leitura de Simon Fitzpatrick também é cautelosa, destacando que é necessário tempo para perceber se o Brexit irá “testar as lealdades partidárias tradicionais” de alguns deputados. Mas num caso como o Brexit, nada está excluído. “Ainda é cedo para perceber se os eventos de segunda-feira são o início de um realinhamento mais profundo ou se isto vai evaporar se e quando um acordo para o Brexit for aprovado.” A incerteza em caso de no-deal é muita — até para os tradicionais partidos políticos britânicos.