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"Shot to nothing". Snooker, o mais humano dos jogos individuais

No dia em que termina mais um campeonato do mundo, o escritor Sandro William Junqueira professa um encanto definitivo pelo "desporto que nos contém a todos". E explica porquê.

No dia 26 de novembro de 2004, Mark King, um homem muito alto de cabeça glabra, abriu a porta de casa em Romford a dois homens mais baixos do que ele. (Na primeira vez que vi Mark King o meu cérebro realizou esta estranha sinapse: imaginei-o a interpretar o papel de juiz Holden no dia em que algum realizador ousasse avançar para as filmagens da adaptação cinematográfica do livro Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy.) Os dois homens sentaram-se confortavelmente num sofá e trocaram algumas frases com Mark King. Não foram precisas muitas palavras para chegarem a um acordo.

Mark King, que permanecera de pé, mão apoiada no pano verde da sua mesa de snooker, acenou o sim. Os dois homens levantaram-se e aproximaram-se da mesa e de Mark. Um deles passou-lhe para a mão um envelope dobrado contendo mil libras, que trazia oculto no bolso do sobretudo. Mark King, com o suor a acumular-se no crânio e na testa, retirou a mão do pano verde e aceitou o envelope. Acompanhou os dois homens mais baixos que ele até à porta e despediu-se cordialmente.

Mark King sabia que a vida sobre a terra é uma luta e que daí a dois dias estes homens, com a colaboração de outros homens, regressariam numa carrinha para levarem a sua mesa de snooker para um qualquer clube da grande Londres. A mesa onde treinara obsessiva e compulsivamente durante anos e anos, todos os ângulos e tabelas e efeitos e o controlo da bola branca para, um dia, quem sabe, ganhar um torneio do ranking. Um shot to nothing certeiro, que falharia o vazio para acertar em cheio.

Mark King conseguiu vencer uma prova de ranking, o Open da Irlanda do Norte, em Belfast, na negra. Nunca tinha visto um homem tão alto chorar

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Dez minutos após este encontro, Mark King vestiu o casaco desportivo e uma boina. Saiu para a chuva, para o frio, dirigindo-se ao casino mais próximo. Este homem muito alto de cabeça glabra perdeu, em duas horas, numa mesa de Blackjack, a totalidade das mil libras que também já tinham levado a mesa de snooker. Apesar deste triste episódio e de outros tormentos subsequentes relacionados com o vício do jogo, Mark King conseguiu vencer uma prova de ranking, o Open da Irlanda do Norte, em Belfast, na negra. Numa comovente e inesquecível final contra Barry Hawkins. Isso foi na noite de 26 de novembro de 2016. Nunca saberei se, ao levantar a taça de cristal, Mark King teve a consciência do que tinha acontecido precisamente naquele mesmo dia, doze anos antes. O que sei é que nunca tinha visto um homem tão alto chorar.

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Este apontamento é bio dramático. Aconteceu uma parte. O resto podia ter acontecido. E tem sido assim o snooker desde que me chegou por acaso. Era um fim de tarde em modo zapping. E eis que aconteceu. Jogava-se a final do Mundial de Snooker de 2016, no Crucible, em Sheffield. Ding Junhui e Mark Selby digladiavam-se em pano aberto. Um cenário ideal de abstração aos incessantes ruídos que se soltam da esfrega da vida. Se não, vejamos: dois jogadores silenciosos, servidos de um taco, formalmente vestidos como funcionários do Gambrinus, movimentando-se à volta de uma mesa na tentativa de embolsar bolas coloridas, sempre vigiados de perto por um árbitro de luvas brancas, hirto e cerimonioso como uma árvore, com ares de sommelier reformado, a soprar calmamente os pontos, as faltas, o início e o fim; embrenhado na obsessiva labuta de devolver as bolas coloridas aos seus lugares respetivos.

Ali se erguia, vagaroso e calado, o eldorado soporífero para quem sofre de insónias e de assuntos de nervos. Ou não. Porque aquilo que parece pode ser o seu contrário e uma aparente bonomia melancólica é apenas isso: uma fina membrana que esconde o iminente tsunami de dor e glória, de solidão e superação, de erros e vitórias, de incerteza e vontade. Como nas histórias. Como nas pessoas.

Nesse fim de tarde primaveril, o meu shot to nothing falhou o vazio. E tornou-se um acontecimento. É apenas isso. A verdade requer poucas palavras.

E o erro surge muitas vezes. Humano, aleatório, indiferente à geometria e aos cálculos. Abre-se com estocada perfeita uma constelação de bolas vermelhas, momento decisivo, treinado à exaustão, mas o esférico rebanho é impossível de controlar.

O snooker é um Evereste. É preciso treinar, persistir, sofrer muito para chegar lá acima. E o snooker não é pool. O pool não é snooker. Jogam-se numa mesa revestida por um pano, mas não devemos confundir Beyoncé com Shakira, nem robalo com cavala. O snooker é também o mais solitário dos desportos individuais. Uma raquete de ténis responde ou dá respostas. Quando erra, tem o ponto seguinte para a redenção. No snooker, ao erro, ou mesmo sem ele, pode suceder-se um longo e belo monólogo. Ali, sentado por largos minutos, horas até, já nada depende de ti, ou do teu talento, ou do caminho para ali chegar. Só quando surge novamente o erro é que renasce a possibilidade de diálogo.

E o erro surge muitas vezes. Humano, aleatório, indiferente à geometria e aos cálculos. Abre-se com estocada perfeita uma constelação de bolas vermelhas, momento decisivo, treinado à exaustão, mas o esférico rebanho é impossível de controlar. Não podes dar ordem ao caos. Não consegues controlar todos os elementos. No snooker, como na vida, é o espanto que nos salva. Está cheio de falhas, faltas, jogadas imprevistas, chouriços, caos e desordem. São os erros que o tornam tão apetecivelmente humano. E que quebram o verniz fleumático do jogo mais bem-comportado do mundo.

Há quem se empolgue com um 147. A tacada perfeita, que deixa a mesa limpa como um relvado acabado de cortar. Eu prefiro o erro. Como na escrita. É preciso falhar muito. Continuar. E dizer: Falta. Fui eu.

Ronnie O’ Sullivan, que está para o snooker moderno como Michael Jordan esteve para a NBA, chegou ao Mundial de 2020 acompanhado pelo psicólogo

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Já vi jogadores de snooker perderem partidas e muitos milhares de libras por assinalarem faltas a si próprios. Ninguém viu. Nem o árbitro, nem as repetições, nem o adversário. Mas o jogador sabe o que fez. Assume. Prefiro perder a ganhar pulando por cima do outro. E este gesto é das coisas mais bonitas que o mundo nos pode oferecer.

A maioria dos jogadores do circuito mundial não se parece com estrelas de rock. Não há músculo, força bruta ou graciosidade motora. Há imobilidade perfeita no ato da tacada, acuidade visual, geometria apreendida, resistência psicológica e um braço que acerta. Alguns aparentam sofrer de uma síndrome de envelhecimento prematuro: pele baça, olheiras em vez de olhos, calvície precoce, abdómens dilatados. Acontece talvez a quem se foca na obsessão de atingir aquela perfeição de errar menos vezes.

Ronnie O’ Sullivan, que está para o snooker moderno como Michael Jordan esteve para a NBA, chegou ao Mundial de 2020 acompanhado pelo psicólogo. Jogador genial, persona controversa, ambivalente, bipolar, já ameaçou deixar a modalidade para entrar num mosteiro budista e passou uma temporada numa quinta a cuidar de porcos. Até hoje, o dia em que estará na final a lutar pelo sexto título, a ameaça ficou por aí. A pairar como a nuvem escura.

Num jogo de snooker há muito poucas certezas, vários tiros no vazio, a luta permanente com a tentação de acreditar que temos o domínio sobre todas as coisas. E quando o erro surge, porque surge sempre, aquilo que resta é ficar à espera de uma outra oportunidade. Não soa familiar?

No início, foi a história bio dramática de Mark King. Aqui, agora, está Ronnie, The Rocket. Poderia também ter falado da casa que os pais de Mark Allen penhoraram para que o filho pudesse concretizar o sonho de se tornar um jogador profissional. Do dia em que, durante a infância, Mark Selby foi abandonado pela mãe. Da luta contra a doença de crohn de Ali Carter. Da dependência de vídeo jogos que levou o australiano Neil Robertson para a reabilitação. Do tique nervoso na pálpebra do olho direito de Ding Junhui. Do rosto de cachorro abandonado de Judd Trump sempre que começa a lutar com os demónios da insegurança. Da superlativa simpatia e educação de Shaun Murphy. Das caretas de Liang Wenbo. Do resiliente escocês antes-quebrar-que-torcer John Higgins.

Por ser o mais solitário dos desportos individuais, o snooker é terreno fértil a depressões, problemas de alcoolismo, vícios, jogos combinados, apostas ilegais.

Por ser o mais frágil dos jogos individuais, é também o mais humano, aquele que nos contém a todos.

Num jogo de snooker há muito poucas certezas, vários tiros no vazio, a luta permanente com a tentação de acreditar que temos o domínio sobre todas as coisas. E quando o erro surge, porque surge sempre, aquilo que resta é ficar à espera de uma outra oportunidade. Não soa familiar?

Sandro William Junqueira é escritor e encenador

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