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Os papéis da abdicação nunca chegaram a ser assinados, também nunca renunciou e, hoje, Simeão II poderia ser o monarca há mais anos no trono. Mas quis o destino que a Bulgária se tornasse uma república e, depois da vida lhe ter trocado as voltas, ele usou-as para criar um novo caminho para servir o seu povo e então o Rei da Bulgária foi eleito primeiro-ministro da República da Bulgária. A reviravolta é impressionante e, provavelmente, única, mas os números também contribuem para alimentar a dimensão épica da vida deste soberano.
Simeão II da Bulgária tem 86 anos de vida e no próximo dia 28 de agosto completam-se 80 sobre o dia em que ascendeu ao trono depois da morte súbita do pai. Tinha apenas seis anos e logo aos nove teve de deixar o país rumo ao exílio. Viveu em Espanha, passou por Portugal e só 50 anos depois voltaria a pisar o solo da pátria. Depois de derrubado o muro que dividia a Europa, o antigo Czar (título dos reis nos países eslavos) voltou num novo tempo e com um novo papel. Simeão era desejado pelo seu povo, mas não necessariamente como monarca, por isso fundou um partido e foi imediatamente eleito primeiro-ministro. A vida do último Rei da Bulgária tem muito para contar, talvez por isso mesmo tenha escrito a sua autobiografia. Casou com uma espanhola, teve cinco filhos e é presença assídua nos eventos sociais da realeza internacional.
Um Rei sem trono, mas com muita presença
O Rei Simeão II, como é conhecido, é muito respeitado entre a realeza e não só. Faz parte da antiga guarda. Em 1954 foi um dos jovens príncipes a bordo do Agamemnon, o famoso cruzeiro que juntou quase 100 membros da realeza europeia em passeio pelas ilhas gregas. Foi lá que conheceu Juan Carlos de Espanha, com quem fez uma amizade para a vida. O soberano espanhol até lhe comunicou a sua abdicação seis meses antes desta acontecer, em junho de 2014. A bordo conheceu também a que viria a ser rainha Sofia, na época era princesa da Grécia e filha dos organizadores de todo o acontecimento.
Ao longo dos anos, o Rei dos búlgaros marcou presença nos grandes acontecimentos que junta os royals e não falha um casamento real. Ainda este ano o vimos com a rainha, no casamento do herdeiro da Jordânia, a boda que reuniu realeza de todo o mundo em Amã em junho. Afinal, Simeão e o avô do noivo, o antigo Rei Hussein, eram amigos próximos desde que estudaram juntos em Alexandria. O Rei e a rainha Margarita também estiveram na coroação de Carlos III em Londres em maio. Simeão II é um primo distante da Rainha Isabel II, já tinha estado no funeral da soberana no ano passado, havia sido convidado para o casamento do príncipe de Gales com lady Diana Spencer e em 2011 também esteve no casamento do príncipe William com Kate Middleton. Neste último, partilhou a sua experiência de vida dias antes, quando esteve em frente ao Palácio de Buckingham a responder às perguntas de Piers Morgan, em direto para a CNN.
O Rei dá entrevistas para diversos meios, fala do passado e do presente com a sabedoria e o estatuto que lhe confere o facto de ser uma majestade que conhece bem a vida fora dos palácios. Simeão II tem uma história que merece ser contada. Durante anos (décadas, até), anotou numa série de diários os seus encontros com políticos e personalidades de todo o mundo. Em 2014, lançou a sua autobiografia, que foi traduzida em várias línguas e chegaria a Portugal em 2018. “Simeão II da Bulgária. Um destino singular” (Book Hut, 2018) foi apresentado pelo próprio Rei Simeão em Cascais, na presença do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e da duquesa de Bragança e, na altura, falou com o Observador em português fluído, conta o entrevistador.
“Um Rei no exílio pode ser uma figura patética e toda a minha vida fiz por não sê-lo”
Rei da Bulgária há 80 anos
Simeão Saxe-Coburg Gotha nasceu a 16 de junho de 1937 em Sófia, capital da Bulgária. Foi o segundo dos dois filhos do Rei Boris III e da rainha Giovanna, antes dele tinha nascido a princesa Maria Luísa. Do lado do pai, a casa real búlgara era jovem na altura, tinha origem alemã e era aparentada com a britânica. Do lado da mãe, destaque para o avô de Simeão, o Rei Victor Emanuel III, que fez um pacto com Mussolini que lhe permitiu manter o trono.
O Rei Boris III morreu a 28 de agosto de 1943 de um ataque cardíaco fulminante, dias depois de regressar de uma reunião com Hitler na Prússia Oriental que terá acontecido num bunker no bosque de Görlitz e terá sido violenta, uma vez que o Rei se recusou a compactuar com o ditador. Não só negou a participação de tropas búlgaras na guerra, como a deportação dos judeus búlgaros. Há teorias que defendem que a morte do Rei foi, na verdade, resultado de um envenenamento. Segundo o próprio Simeão, até esta teoria varia consoante o lado da história. Os ingleses acusaram os alemães, mas estes, por seu lado, terão acusado os ingleses apoiados pelo facto de a BBC ter noticiado a morte do Rei duas horas antes desta acontecer.
Em consequência, o filho sucedeu-lhe no trono com apenas seis anos, como Czar Simeão II, e foi formado um Conselho de Regência com três membros para governar em seu nome, entre eles o tio, o príncipe Kyril. Um golpe comunista a 9 de setembro de 1944 ditou que os regentes e os políticos mais comprometidos com a monarquia fossem executados e, tanto o pequeno Rei como a mãe e o resto da família real foram confinados no palácio de Vrana. O jovem Simeão foi considerado inocente e a rainha terá sido poupada por ter ajudado a salvar os búlgaros judeus.
Em 1946, um referendo decretou que a monarquia fosse abolida e, na noite de 16 de setembro, o Rei, bem como a mãe e a irmã, tiveram de deixar a Bulgária. Foram-lhes dados 200 dólares, um prazo de 48 horas e um bilhete de comboio. Embarcaram rumo a Istambul, mas o maquinista parou na última estação búlgara durante várias horas, porque se recusou a cruzar a fronteira com a Turquia. “Não serei eu a tirar o meu Rei do país”, lembra o El País.
O fim de viagem seria o Egipto, mais exatamente a cidade de Alexandria, onde a família se instalou primeiro. Aquele país era ainda um reino, liderado pelo Rei Farouk, e era lá que se encontravam já os pais da rainha Giovana. Mas esta queria regressar à Europa para que os filhos aí fossem educados e Espanha apresentou-se como uma sugestão do embaixador espanhol na Turquia. Na altura já o país era regido por Francisco Franco enquanto a sua própria família real, os Borbón, estavam no exílio em Portugal. Em julho de 1951, o governo espanhol concedeu asilo político à família real búlgara e instalaram-se primeiro em Barcelona e depois em Madrid. O rei passou quase 50 anos no exílio em Espanha, sem nunca abdicar ou renunciar ao seu trono.
Uma rainha espanhola, três casamentos e os cinco “K”
Simeão II estudou no colégio Victoria, no Egipto; no Liceu francês, em Madrid, e depois viajou para os Estados Unidos onde frequentou a Academia Militar de Valley Forge, no estado da Pensilvânia. Por lá, por questões de segurança, era conhecido como cadete Rylski, o mesmo nome que o seu pai usava quando viajava incógnito. Contudo, como aos fins de semana havia autorização de saída, chegou a trabalhar como baby-sitter. Segundo o próprio, o trabalho era bem pago e ele também gostava de ver o que havia dentro dos frigoríficos e como as famílias educavam os filhos.
Foi na capital espanhola que conheceu e se encantou por dona Margarita Gómez-Acebo y Cejuela e, mesmo nos Estados Unidos, continuou a sua corte à jovem espanhola à distância. Em 1962, o último Rei dos búlgaros casou-se com a aristocrata espanhola, mas até o casamento foi difícil para Simeão II. Enquanto Simeão era cristão ortodoxo, a sua amada era católica, por isso foram necessários dois encontros com o Papa e três casamentos, analisar leis e procurar antecedentes. O primeiro foi o casamento católico, que aconteceu a 14 de janeiro do referido ano e foi celebrado pelo confessor do Rei da Bélgica. O segundo foi o civil, no dia 20, perante o autarca da cidade de Lausanne, na Suíça. O terceiro foi o casamento ortodoxo, que teve lugar na cidade suíça de Vevey e foi celebrado pelo fundador da diocese búlgara nos Estados Unidos em colaboração com o arcebispo russo na Suíça. Quando celebraram as suas bodas de diamante, 60 anos de casamento, os reis deram a primeira entrevista conjunta.
Tiveram cinco filhos e têm 11 netos. O primogénito foi Kardam (1962), príncipe de Tarnovo, que morreu em abril de 2015 de uma complicação pulmonar na sequência de um acidente de automóvel em agosto de 2008. Tinha 52 anos e deixou dois filhos adolescentes, Boris (que herdou o título do pai e se tornou príncipe de Tarnovo) e o príncipe Beltrán, frutos do casamento com Miriam Ungría, que em 2022 se casou com um príncipe e primo do Rei da Jordânia. Casaram-se na igreja ortodoxa dos santos Andrés e Demetrio, em Madrid, onde viria também a ser o funeral do príncipe. O segundo filho dos reis da Bulgária é Kyril (1964), príncipe de Preslav, que esteve casado com a espanhola Rosario Nadal entre 1989 e 2009. Seguiram-se os príncipes Kubrat (1965), Konstantin-Assen (1967) e a princesa Kalina (1972).
Todos têm nomes começados pela letra “K”, mas por casualidade, explicou o Rei à Vanity Fair. Contudo a relação com a Bulgária é propositada. Kardam foi o nome de um dos primeiros Czares do país natal e “é curto e fácil de pronunciar”, Kyril foi o nome de um tio do Rei que foi fuzilado em 1945 e, depois de dois nomes com “K”, decidiu prosseguir. Kubrat foi um dos fundadores da Bulgária, Konstantin foi em homenagem ao Rei Constantino da Grécia, que tinha convidado Simeão para ser padrinho de um dos seus filhos, Kalina esteve para ser Klementina, avó do soberano, mas a mãe da bebé temeu que ela não se conseguisse casar com um nome tão antiquado e assim ficou. Todos os filhos viviam em Madrid, à exceção da filha mais nova, que casou na Bulgária e mudou-se para lá.
O Rei manteve uma luta com os tribunais para que lhe fosse devolvido o que o antigo regime havia tirado. No final da década de 1990, o Palácio de Vrana e outras propriedades que haviam sido confiscadas foram devolvidas à família real, mas uma grande polémica sobre a utilização do palácio como propriedade pública fez da casa onde o Rei nasceu o objeto de uma longa luta judicial. Em 2018, o tribunal municipal de Sófia decidiu a favor do Estado, no entanto em 2021 o tribunal de recurso da capital búlgara devolveu o palácio ao Rei, que voltou a fazer dele a sua casa. Em 2020, o Supremo Tribunal decidiu devolver à família real o Palácio de Tsarska Bistritsa.
O regresso do Rei: um partido, um primeiro-ministro e um gato
Em novembro de 1989, Simeão II chorou ao assistir à queda do Muro de Berlim na televisão, em casa, porque achava que nem ele nem os seus filhos poderiam alguma vez regressar à Bulgária. Mas começava a desenhar-se uma porta de entrada para um novo começo. Em maio de 1993, os reis Juan Carlos I e Sofia de Espanha visitaram a Bulgária e foram recebidos por muitos populares entusiasmados que gritaram o nome do seu último Rei. “Juan Carlos, ajuda-nos a que Simeão volte”, lia-se numa faixa entre a multidão, relata o El País. E perante tal reação e tantos gritos por “Simeão”, Juan Carlos ligou ao amigo para lhe perguntar: “Que tipo de república tens aqui?”.
Em 1996, o Rei fez a primeira visita à Bulgária desde o exílio e foi recebido por meio milhão de pessoas que o esperavam nas ruas da capital. A irmã tinha sido a primeira da família a regressar, em 1991, e dois mais tarde foi a vez da mãe. A 6 de abril de 2001 Simeão anunciou que iria voltar de vez ao seu país natal. Fez um discurso à nação no qual declarou a sua intenção de criar um partido político: o National Movement Simeon II (NMSII) e em junho desse ano, dois meses depois de criar o partido, já foi candidato às eleições parlamentares. Teve uma vitória esmagadora, com 43% dos votos, e a 24 de julho de 2001 tornou-se primeiro-ministro da República da Bulgária aos 64 anos. Cumpriu os quatro anos de mandato com um governo em coligação com o partido Movement for Rights and Freedom (MRF). Foi durante o governo de Simeão que a Bulgária aderiu à NATO (2004) e assinou o tratado de adesão à União Europeia (onde viria a entrar em 2007). O antigo primeiro-ministro assume-se europeísta convicto, “intelectualmente, espiritualmente, culturalmente” e vê estes dois momentos como conquistas do seu mandato.
“Contribui bastante. Os feitos são os feitos. Mas foram as circunstâncias, não os meus méritos pessoais. Entre o meu apelido, a minha função no exílio e a minha trajetória nas finanças pude mexer mais cordéis do que qualquer outro primeiro-ministro”, disse à Vanity Fair. Terá sido o primeiro monarca da história a ganhar eleições democráticas e deu a si próprio 800 dias para mudar a Bulgária, uma ideia que leu num livro de estratégia empresarial e diz ter sido muito lógico para si. Ao El País confessou que foi um erro. “A ideia dos 800 dias foi um dos meus grandessíssimos pecados, my big mouth, ainda hoje me pergunto porque o fiz…”. A proposta era ambiciosa, mas disse ter cumprido “mais ou menos” o que haviam dito que queriam alcançar ao fim de mil dias. “No exílio controlava-se o ritmo. Como primeiro-ministro tudo era mais rápido. Foi um desafio enorme, senti-me sobrecarregado. Podia ter-me dado um enfarte!”.
Quando estava no cargo chegou a passar 12 horas sozinho no seu gabinete só com a companhia do gato Babu. Conta ainda que escolheu não contar com o apoio dos filhos tanto como gostaria, para evitar acusações de intromissão ou de nepotismo. “Foi duríssimo!” Foi primeiro-ministro até 15 de agosto de 2005 e nas eleições parlamentares desse mesmo ano o seu partido fez parte do novo governo, mas desta vez numa coligação tripartidária, na qual aos dois partidos da anterior se juntou o Bulgarian Socialist Party (BSP). Em 2009, Simeão II demitiu-se das suas responsabilidades no partido.
Durante o exílio manteve contactos na área dos negócios e nunca esteve parado. Foi presidente da Thomson-CSF, empresa francesa de eletrónica, em Espanha, durante 13 anos. Depois da sua carreira política continuou a trabalhar como conselheiro na alta esfera internacional, por exemplo foi o representante de Hassan II, Rei de Marrocos, no conglomerado financeiro e industrial marroquino Omnium Nord Africain (ONA) durante mais de duas décadas. Também trabalhou com imigrantes búlgaros pelo mundo. Afinal ele também o foi. Durante mais de 50 fez de outra pátria a sua morada sem nunca perder a esperança de regressar a casa.
“Vejo a nostalgia como uma perda de tempo, e até um certo masoquismo”, diz o Rei que fala seis idiomas, contudo acrescenta que prefere ouvir a falar. “Poupei-me a muitos desgostos. Se uma pessoa prefere, étaller, como se diz em francês, ter razão em tudo e mostrá-lo, reduz o tempo que pode dedicar a aprender com o outro. É uma filosofia que fui desenvolvendo com muitas horas de voo.”