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epa10907575 Simone Biles of the USA performs on the Floor of the Women’s Finals of the Artistic Gymnastics World Championships in Antwerp, Belgium, 07 October 2023.  EPA/OLIVIER MATTHYS
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Aos 27 anos, a ginasta norte-americana vai participar nos terceiros Jogos Olímpicos da carreira

OLIVIER MATTHYS/EPA

Aos 27 anos, a ginasta norte-americana vai participar nos terceiros Jogos Olímpicos da carreira

OLIVIER MATTHYS/EPA

Simone Biles, uma Mona Lisa que só quer recuperar o sorriso para pintar uma obra de arte em Paris

Conquistou o mundo no Rio, quebrou em Tóquio, chega a Paris à procura de recuperar o sorriso. Simone Biles está de volta aos Jogos Olímpicos para prolongar o sonho que nunca caiu, só foi interrompido.

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Há três anos, a partir das imagens que chegavam de Tóquio, o mundo olhava com preocupação para Simone Biles. Três anos depois, a partir das imagens que chegam de Paris, o mundo olha com entusiasmo para Simone Biles. Depois de quebrar no Japão, de estar parada durante dois anos e de chegar a colocar em causa a carreira, a ginasta norte-americana está de volta — e quer ser protagonista nos Jogos Olímpicos.

Simone Biles voltou a divertir-se, está confiante e continua a fazer história. E é atrás de mais história que vai para Paris

Simone Biles entra em ação já este domingo, no arranque da qualificação da ginástica artística, e procura alcançar o que deixou por fazer em Tóquio: repetir os quatro ouros do Rio, em 2016, e sonhar com cinco, algo que poderia torná-la na norte-americana mais medalhada de sempre numa única edição dos Jogos Olímpicos.

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Ouros, pratas e bronzes à parte, a verdade é que Simone Biles já conquistou um dos maiores triunfos da carreira pelo simples facto de voltar — aos 27 anos, depois do caso dos abusos do médico Larry Nassar, do susto de Tóquio, das dores, do casamento e das dúvidas. Agora, resta-lhe ser a Mona Lisa que recuperou o sorriso e deixar uma obra de arte em Paris.

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A ginasta regressou à competição no ano passado e depois de dois anos parada, na sequência dos Jogos de Tóquio

Corbis via Getty Images

Uma visita de estudo que tudo mudou e um mundo conquistado no Rio de Janeiro

A vida da ginasta norte-americana — que um dia, sem sombra de dúvidas, dará origem a um filme daqueles biográficos estilo blockbuster que vai bater recordes nas salas de cinema tal como ela bateu nas competições — podia estar dividida em capítulos. O capítulo da infância, entre uma mãe problemática, mas uma solução feliz que culminou com a entrada no desporto; o capítulo do passo rumo ao topo, quando deixou a escola dita regular e começou a ter aulas em casa; o capítulo de 2016, que precisa de poucos adjetivos; o capítulo Larry Nassar, cujos adjetivos serão sempre parcos; o capítulo de 2019, uma espécie de ressurreição de quem nunca desapareceu e só decidiu mostrar ao mundo inteiro que nasceu para dar voltas no ar durante aquilo que parecem por vezes minutos; e o capítulo de 2021, onde a cabeça foi mais forte do que o corpo.

Ao contrário do que acontecerá no filme daqueles biográficos estilo blockbuster, a vida de Simone Biles ainda não tem capítulo final. Esse, pelo menos no que diz respeito à vida profissional que a tornou apenas Simone e que até dispensou a necessidade do apelido, poderá ter lugar este verão. Até lá, é preciso recordar como é que a mulher que mudou o paradigma da ginástica no mundo inteiro — e para sempre — chegou onde nunca ninguém tinha chegado.

Este semana, Simone Biles vai regressar aos Jogos Olímpicos três anos depois de ter abandonado quatro finais em Tóquio para dar prioridade à saúde mental e até ter colocado em causa a continuidade da carreira. Algo que só poderá acontecer porque aos seis anos, no início do novo milénio, uma visita de estudo lhe mostrou pela primeira vez um ginásio, um trampolim e atletas a dar piruetas no ar. Algo que só poderá acontecer, muito provavelmente, porque Nellie e Ron tomaram uma decisão da qual nem todos seriam capazes. Nellie e Ron, literalmente falando, são os avós maternos da ginasta (ainda que, biologicamente, só Ron o seja, já que Nellie é a segunda mulher do antigo controlador aéreo). Mas Nellie e Ron, legalmente falando, são os pais da ginasta.

Ao contrário do que acontecerá no filme daqueles biográficos estilo 'blockbuster', a vida de Simone Biles ainda não tem capítulo final. Esse, pelo menos no que diz respeito à vida profissional que a tornou apenas Simone e que até dispensou a necessidade do apelido, poderá ter lugar este verão. Até lá, é preciso recordar como é que a mulher que mudou o paradigma da ginástica no mundo inteiro — e para sempre —chegou onde nunca ninguém tinha chegado.

Simone e os três irmãos, dois mais velhos, uma mais nova, entraram no sistema de acolhimento de crianças devido aos problemas de alcoolismo e toxicodependência da mãe, Shanon. Quando descobriram que os quatro netos estavam a saltar de casa em casa, de família em família, Nellie e Ron acolheram as crianças temporariamente, numa altura em que já tinham três filhos. Em 2003, quando a ginasta tinha seis anos e o período de acolhimento se esgotou, o casal avançou para a adoção formal de Simone e da irmã mais nova, enquanto que a irmã de Ron, tia-avó das quatro crianças, adotou os dois irmãos mais velhos.

No dia da visita de estudo, voltou para casa com um formulário de inscrição e disse que gostava de experimentar. “A primeira vez que a vi ela estava sentada no chão com as pernas esticadas. Pôs as mãos de lado e puxou as pernas direitas até à barriga. Aos seis anos. Isso não é normal. Nem a musculatura dela no geral. Estava à espera da vez dela nas barras e não conseguia ficar quieta. E depois vi que passou de estar sentada para estar em pé apenas com um movimento, num colchão normal. Aquilo era tudo energia cinética do corpo dela. Pensei: ‘Wow, esta miúda é qualquer coisa'”, recordou Aimee Boorman ao The Undefeated.

Boorman treinou Simone Biles desde o primeiro dia, desde esse dia em que a viu deixar de estar sentada para passar a estar em pé apenas com recurso à força nas pernas, até 2016 e ao pós-Jogos do Rio de Janeiro. Para a treinadora, foi imediata a certeza de que Simone Biles tinha “uma noção do ar que era sobrenatural”. “Não é algo que se ensine. Sabem aquelas pessoas que têm um equilíbrio incrível? Bem, imaginem ter esse equilíbrio sem os pés no chão enquanto estão a rodar e a girar e saber exatamente quando é que têm de aterrar para não morrer”, completou Boorman.

Simone começou a treinar. Não faltava um treino, aliás — mesmo que estivesse doente. Durante todo esse tempo, apesar da dedicação absoluta, nunca teve o momento típico do filme biográfico estilo blockbuster em que entende que o ginásio, o trampolim, as barras e as argolas são os sítios onde pertence. “Era muito nova e só sabia que era muito divertido e queria fazer aquilo tudo. Mas não era aquela sensação de ‘oh, pertenço mesmo aqui'”, explicou ao The Guardian há algum tempo, acrescentando depois que só percebeu que tinha de tomar uma decisão — entre avançar para construir uma carreira ou abrandar e fazer da ginástica um hobby — quando estava no nono ano.

Simone Biles cedeu. Se foi o corpo ou a cabeça, ninguém sabe, mas cedeu. E os EUA perderam (e foram o pior no solo)

Para entrar na elite, treinar o máximo de horas por semana e tornar-se profissional, teria de começar a ter aulas em casa. Nellie, a mãe, explicou-lhe que isso significava não ir ao baile de finalistas, não ter atividades extra-curriculares, não estar com os amigos depois da escola. Depois de um fim de semana de ponderação, Simone escolheu a ginástica — o que não significa que os anos seguintes tenham sido fáceis.

Em 2016, Simone Biles impressionou o mundo inteiro e conquistou quatro medalhas de ouro nos Jogos do Rio

Getty Images

“Estava sempre muito solitária. Tinha saudades dos meus amigos e da escola e de tudo isso. Mas pronto, no final, tudo resultou. Houve um clique. Decidi que queria ser melhor. Não queria apenas mostrar a minha capacidade, queria que a minha capacidade fosse boa de ver”, recordou a ginasta. Os anos que se seguiram foram de constante evolução: foi campeã do mundo em 2013, 2014 e 2015, campeã nacional em todos esses anos e depressa começou a apontar baterias ao Jogos Olímpicos de 2016. Treinava 32 horas por semana, uma vez por dia às segundas, quartas e sábados e duas vezes por dia às terças, quintas e sextas. Domingo, o único dia de folga, era o dia da família. O dia em que Nellie, Ron, Simone e a irmã Adria iam à igreja e jantavam em conjunto.

Nesta altura, no filme biográfico estilo blockbuster, assistiríamos a uma montagem de imagens de Simone Biles a treinar, cada dia mais forte, cada dia melhor, numa sequência que recordaria Sylvester Stallone em modo Rocky Balboa a treinar pelas ruas de Filadélfia para derrubar Apollo Creed. Nos Jogos Olímpicos do Brasil, em 2016, a ginasta que na altura tinha apenas 19 anos conquistou quatro medalhas de ouro e uma de bronze e garantiu, praticamente sozinha, que a equipa dos Estados Unidos tivesse uma medalha em cada evento de ginástica pela primeira vez desde 1984.

Com os quatro ouros, Simone tornou-se a atleta norte-americana mais medalhada na ginástica numa única edição dos Jogos e a primeira a ganhar quatro provas desde a romena Ecaterina Szabo, 32 anos antes. Na cerimónia de encerramento, o Comité Olímpico dos Estados Unidos escolheu-a para transportar a bandeira do país, tornando-a a primeira ginasta a assumir essa responsabilidade. O Brasil, os Estados Unidos e o mundo pararam para ver, aplaudir e elogiar Simone — quer soubessem aquilo que estava a fazer quando não tinha os pés no chão ou não — e a atleta tornou-se uma celebridade a nível global. Mais do que isso, abriu um precedente e mudou o paradigma da ginástica internacional.

Nos Jogos Olímpicos do Brasil, em 2016, a ginasta que na altura tinha apenas 19 anos conquistou quatro medalhas de ouro e uma de bronze e garantiu, praticamente sozinha, que a equipa dos Estados Unidos tivesse uma medalha em cada evento de ginástica pela primeira vez desde 1984.

Até 2016, até ao Rio e até Simone Biles, existia a ideia sempre subjacente de que as ginastas, assim como as bailarinas, tinham de ser esguias, sem musculatura, com as medidas perfeitas e com um pouco natural encobrimento da puberdade e da evolução do corpo da mulher. Esta, sem tirar nem pôr, era a definição de elegância. Simone, com as coxas musculadas, os braços firmes, o torso forte e as mãos pequenas e robustas, mostrou que a elegância podia ser algo ambíguo: e que uma ginasta com um aspeto mais corpulento do que esguio podia ser tão ou mais elegante do que uma ginasta estilo bailarina.

Esta inversão naquilo que havia sido uma regra durante décadas veio mudar também a forma como a evolução das ginastas é pensada e efetuada — até Simone, a noção de que uma atleta de ginástica tinha de começar muito pequena, por volta dos três anos, para realizar uma formação ao longo da idade e chegar ao nível profissional e competitivo na altura dos 16 anos, era praticamente uma lei. Porquê? Porque nesse curto espaço de tempo, entre os 16 e os 19 anos, a puberdade, o alargar das formas, a passagem de um corpo de menina para um corpo de mulher eram ainda possíveis de ultrapassar. A partir daí, a carreira de uma ginasta, pelo menos das norte-americanas, tornava-se de desgaste ultra rápido e as mais novas tinham sempre prioridade em relação às mais velhas. Simone, com 19 anos, com formas e com um corpo que já não era de menina, mostrou que um corpo musculado de mulher podia ganhar medalhas. E, no caso dela, tornar-se o melhor de sempre.

Depois dos Jogos Olímpicos, e numa decisão que Simone já conhecia antes de viajar para o Rio, Aimee Boorman deixou o ginásio onde treinava há décadas e deixou a ginasta. No círculo mais próximo da atleta, soaram os alarmes: existia a forte possibilidade de, depois de ter conseguido praticamente tudo aquilo que queria no Brasil e depois de ficar sem o pilar que a acompanhou durante toda a formação, Simone Biles decidir terminar a carreira aos 19 anos. “Sim e não. Naquele momento, senti mesmo que estava tudo feito. Mas existia uma pequena chance de querer voltar. Toda a gente me dizia ‘ah, tu vais voltar’. E eu acho que até combati essa ideia”, explicou a ginasta à CNBC.

US Gymnasts Testify As Senate Examines FBI's Handling Of Larry Nassar Investigation

A norte-americana foi uma das jovens ginastas a testemunhar contra Larry Nassar, antigo médico condenado por agressão sexual

Getty Images

As nódoas negras deixadas pelo caso Larry Nassar e as dúvidas sobre o futuro da carreira

Depois dos Jogos, limitou-se a anunciar que ia parar durante um ano — e ninguém sabia se esse era um primeiro passo para uma paragem permanente ou se era uma porta aberta a um regresso. Durante o ano sabático, escreveu a autobiografia “Courage to Soar” em conjunto com uma jornalista, participou no programa de televisão “Dancing With The Stars” e escolheu novo treinador, o franco-americano Laurent Landi. No início de 2018, anunciou que tinha voltado aos treinos. Mas o início de 2018 significou muito mais para Simone Biles do que um simples regresso aos treinos.

Logo em janeiro, quase um ano depois de o escândalo surgir pela primeira vez na comunicação social, a ginasta confirmou que foi uma das centenas de jovens atletas abusadas por Larry Nassar, o antigo médico da seleção olímpica de ginástica dos Estados Unidos. “Eu também sou uma de muitas sobreviventes que foram sexualmente abusadas pelo Larry Nassar. Existem muitas razões que me deixaram relutante quanto à decisão de partilhar a minha história, mas eu sei que a culpa não é minha”, escreveu Simone Biles no Twitter, numa publicação que também incluía a hashtag #MeToo. No dia seguinte, o antigo médico foi condenado a 175 anos de prisão. E a ginasta, que recentemente confessou que lhe é difícil “confiar” na USA Gymnastics depois de tudo o que aconteceu, reconheceu que o passo mais complicado de dar foi precisamente aquele que sublinhou assim que partilhou a história: o de entender, aceitar e perceber que não tinha culpa de nada.

“Como é que posso confiar?”. Um ano e meio depois da condenação de Nassar, Simone Biles voltou a falar sobre as ondas de choque do pesadelo

“As estatísticas dizem que uma em três raparigas é abusada sexualmente. Isto é ridículo. Ensinamos às raparigas que têm de se tapar em vez de ensinarmos aos rapazes a não tocar nas raparigas? Culpam as roupas, aquilo que as raparigas vestem, dizem que estão a pedi-las. Lamento, mas ninguém pediu nada. Nunca é culpa da rapariga e acho que foi isso que mais me custou entender — que não era culpa minha”, disse Simone ao The Guardian.

Durante o ano sabático, escreveu a autobiografia "Courage to Soar" em conjunto com uma jornalista, participou no programa de televisão "Dancing With The Stars" e escolheu novo treinador, o franco-americano Laurent Landi. No início de 2018, anunciou que tinha voltado aos treinos. Mas o início de 2018 significou muito mais para Simone Biles do que um simples regresso aos treinos.

As nódoas negras deixadas por Larry Nassar e por todo o mediatismo do caso, por muito que só se tenha associado ao escândalo numa reta final, ensinaram a ginasta a encontrar ferramentas para cuidar dela própria e desenhar limites. “Faço terapia para lidar com tudo porque tive dias em que não queria pôr um pé no ginásio. Mas vou deixar que isso me afaste da minha paixão e dos objetivos que ainda tenho? É só mais um obstáculo para ultrapassar (…) As emoções e a dor, és ensinado a lidar com isso. Mas hoje em dia, se não estou 100% concentrada, não vale a pena ir e fingir. Porque o que eu faço é perigoso, é de alto risco. Quando somos mais novos, não temos escolha: vamos para o ginásio até se estivermos doentes. Mas se eu me sentir doente, para que é que vou torturar-me?”, explicou.

Em 2018, voltou a ser campeã nacional e mundial (com um cálculo renal) e marcou a diferença ao usar um maillot verde-petróleo, a cor designada internacionalmente para representar as vítimas de agressão sexual. Até que chegamos a 2019. Em 2019, ao ser novamente campeã absoluta nos Estados Unidos, tornou-se a primeira mulher em 70 anos a conquistar este título seis vezes: e como se isso ainda não chegasse, decidiu ser a primeira mulher na história a executar na perfeição um triple double, um duplo salto mortal com três rotações.

No final da performance, ciente de que tinha alcançado aquilo a que se tinha proposto e mais ainda, riu-se, festejou e não escondeu a alegria. Antes, na trave, já se tinha tornado a primeira ginasta de sempre, homem ou mulher, a conseguir uma saída perfeita de um duplo mortal com dupla pirueta. Dito assim, tudo parece simples e quase sem significado; com as imagens, percebe-se que Simone Biles é um atentado à gravidade. De forma expectável, aquilo que fez durante aquele fim de semana de agosto teve todo o destaque na comunicação social norte-americana e internacional. Mas foi o USA Today, através de um artigo de opinião, que melhor descreveu o que significa para a ginástica aquilo que a ginasta alcançou.

Gymnastics - Artistic - Olympics: Day 4

Em Tóquio, Simone Biles falhou várias aterragens, algo a que ninguém estava habituado

Getty Images

“Imaginem Muhammad Ali no Rumble in the Jungle. O jogo em que o Michael Jordan estava com gripe. A vitória da Serena Williams no Open da Austrália enquanto estava grávida. O Michael Phelps a ultrapassar o Milorad Cavic para ganhar a sétima medalha de ouro nos Jogos de Pequim. Há noites (…) em que somos recordados de que estamos a ver grandeza à frente dos nossos olhos. E não é a grandeza de que se fala quando se trata de todos os atletas acima da média. A verdadeira grandeza é aquela que as pessoas vão recordar durante décadas, reproduzindo os detalhes como se tivesse acontecido apenas um ou dois anos antes”, escreveu Nancy Armour. O passar dos anos, da experiência e da vitória, levou Simone Biles a criar e a inventar cada vez mais, executando movimentos inéditos e que nunca tinham sido vistos em competição: hoje em dia, existe um Biles no trampolim, um Biles na trave, um Biles e um Biles II nos exercícios de solo e ainda um Biles II no cavalo.

Tudo isto, mais do que torná-la um símbolo feminista do empoderamento das mulheres, tornou-a também um símbolo racial do empoderamento das mulheres negras — assim como Serena Williams no ténis, por exemplo. Algo que, para Simone, não faz qualquer sentido. “Para mim, eu sou apenas a Simone. Nunca penso ‘ah, sou a primeira afro-americana a ganhar isto ou aquilo. Toda a gente enfia isso nas nossas cabeças. Nunca penso ‘oh meu Deus, sou a primeira isto, a primeira aquilo’. Faço ginástica porque gosto de me divertir. Nunca trago a raça para nada disto”, garantiu a ginasta, que entretanto foi ainda abalada pela acusação de triplo homicídio feita a um dos irmãos.

Em março de 2019, antes dos campeonatos nacionais e mundiais, anunciou que os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020, deveriam ser os últimos em que iria participar. Aos 22 anos, em entrevista ao programa “Sportswomen” da Sky Sports, explicou que não se sentia com condições físicas para continuar a treinar da forma exigida por uns Jogos. “Planeio definitivamente que os Jogos de Tóquio sejam os últimos. Sinto que o meu corpo já passou por muita coisa e está a cair aos pedaços. Tenho dores durante grande parte do tempo”, afirmou, numa linha de pensamento que foi ao encontro de uma entrevista dada no mesmo mês ao Daily Mail.

O passar dos anos, da experiência e da vitória, levou Simone Biles a criar e a inventar cada vez mais, executando movimentos inéditos e que nunca tinham sido vistos em competição: hoje em dia, existe um Biles no trampolim, um Biles na trave, um Biles e um Biles II nos exercícios de solo e ainda um Biles II no cavalo.

“A dor é algo com que vivo e isso é um pouco estranho para a minha idade, certo? Parece estranho quando não tenho dores. Tenho tido alguma sorte com as lesões mas têm acontecido algumas coisas. Já rasguei um dos gémeos duas ou três vezes, parti uma costela em 2016 e tenho um dedo do pé que está destruído em cinco pedaços desde os últimos Jogos. Se andamos a saltar no ar o tempo todo, às vezes a gravidade diz que não”, explicou, acrescentando depois que costumava dizer que ia “estar numa cadeira de rodas aos 30 anos” e que sentia que o corpo estava “a gritar e a berrar” para que parasse de competir. Mas Tóquio mudou tudo.

O “peso do mundo” em Tóquio

Com a própria a assumir o favoritismo, os Jogos Olímpicos de Tóquio preparavam-se para ser o local onde Simone Biles ia não apenas continuar a provar que era a melhor sempre, mas até deixar o mundo de queixo caído ao demonstrar que podia ser ainda melhor — tornando-se a atleta norte-americana mais medalhada de sempre nuns únicos Jogos, caso conquistasse cinco medalhas de ouro no evento. No Japão, contudo, o sonho de atingir esse recorde ficou mais longe. Para surpresa de todos, Biles falhou várias aterragens, errou movimentos, mostrou-se pouco confiante e desistiu de quatro finais.

À saída de uma das provas, explicou aos jornalistas que a lesão não era física, mas igualmente grave: “Não confio em mim como confiava antes. Talvez esteja a envelhecer. Há dias em que toda a gente tweeta sobre ti e sentes o peso do mundo. Não somos apenas atletas. Somos pessoas e às vezes temos de dar um passo atrás”.

Nos últimos Jogos Olímpicos, a ginasta desistiu de quatro finais e só conquistou a medalha de bronze na trave

Getty Images

O passo atrás de Simone Biles foi o de desistir quando tinha a cabeça num turbilhão. O objetivo era o de não forçar e arriscar uma lesão, pondo as cinco provas individuais que se seguiam em risco. Ao mesmo tempo, a ginasta que provou ser uma lutadora toda a vida fez aquilo de que só os mais fortes são capazes: admitir quando se está em baixo e se precisa de ajuda. “Sempre que se está numa situação de grande stress, uma pessoa ‘passa-se’. Tenho de focar-me na minha saúde mental e não colocar em perigo a minha saúde e bem estar. É lixado quanto estás a lutar com a tua própria cabeça”, disse, em lágrimas. A equipa técnica apoiou a decisão, o problema foi rapidamente atribuído aos mais técnicos twisties, e a norte-americana acabou por ainda resgatar uma medalha de bronze na trave.

Simone Biles e a saúde mental dos atletas. É possível sobreviver à pressão de ser a “melhor de todos os tempos”?

O passo seguinte era uma absoluta incógnita. Era certo que Simone Biles iria parar a carreira, mas ninguém sabia durante quanto tempo, até quando ou se seria para sempre — só se soube que casou, em abril de 2023, com Jonathan Owens, um jogador de futebol americano com quem namorava há três anos. Dois anos depois de Tóquio, no verão passado, apareceu uma luz sobre o que aí viria. Em junho de 2023, a USA Gymnastics confirmou que a ginasta iria marcar presença no US Classic, uma das principais provas de preparação para os Campeonatos Nacionais que estavam marcados para o mês seguinte.

A partir do momento em que o regresso da ginasta de 26 anos foi oficializado, surgiu a pergunta óbvia: queria isto dizer que Simone Biles iria estar nos Jogos Olímpicos de Paris do ano seguinte? Sobre a resposta, porém, ninguém conseguia ter certezas. Ainda assim, e logo a começar pelo facto de já ter voltado aos treinos há algum tempo, existiam algumas pistas que indicavam que a norte-americana queria marcar presença nos terceiros Jogos da carreira.

"Sempre que se está numa situação de grande stress, uma pessoa 'passa-se'. Tenho de focar-me na minha saúde mental e não colocar em perigo a minha saúde e bem estar. É lixado quanto estás a lutar com a tua própria cabeça."
Simone Biles, em Tóquio, depois de desistir de várias finais

Logo à partida, o pormenor de regressar à competição no US Classic. Em 2018, dois anos depois dos Jogos Olímpicos do Rio onde fez história, Simone Biles também interrompeu a pausa na carreira naquela prova e antes de se relançar a sério nos Campeonatos Nacionais. Na altura, é certo, faltavam uns teóricos dois anos para os Jogos seguintes — mas a Covid-19 encurtou o calendário e fez com que existissem apenas dois anos de distância entre Tóquio e Paris, o que faz com que Biles tenha parado durante o tempo habitual, mas estivesse a voltar um pouco mais em cima da hora.

Depois, a alteração de discurso. Em outubro de 2022, a ginasta garantiu numa entrevista à NBC que ainda tinha “medo de estar no ar” e que continuava a ir “religiosamente” à terapia. Em janeiro do ano seguinte, disse ao Houston Chronicle que estaria em Paris “sem qualquer sombra de dúvidas” — só não sabia em que papel. “Ainda não sei se vou estar a competir ou na bancada a aplaudi-las, mas sei que vou estar em Paris”, atirou, abrindo a porta à possibilidade de marcar presença nos Jogos.

Por fim, o facto de não ser a única a parar durante dois anos e a regressar a pouco mais de um dos Jogos de Paris. Também Sunisa Lee, que conquistou uma medalha de ouro, uma de prata e outra de bronze em Tóquio, esteve sem competir durante dois anos e agendou o regresso para o US Classic no início de agosto de 2023.

epa11495690 Simone Biles of USA practices her routine in the floor exercise during the Artistic Gymnastics Women’s Podium Training ahead of the Paris 2024 Olympic Games at the Bercy Arena in Paris, France, 25 July 2024.  EPA/ANNA SZILAGYI

Em Paris, onde chegou a admitir não estar, Biles vai tentar regressar aos melhores dias da carreira

ANNA SZILAGYI/EPA

O regresso com recordes, novas conquistas e a vontade de ser dona de Paris

Quando se soube que Simone Biles iria voltar à competição, dois anos depois de uns Jogos Olímpicos de Tóquio em que deu prioridade à saúde mental e abdicou de quatro finais, a dúvida generalizada foi apenas uma: como, de que maneira e em que forma é que a ginasta norte-americana iria regressar? E ela fez questão de responder rapidamente.

Voltou no início de agosto de 2023, no US Classic, e no final do mês conquistou desde logo o oitavo título nacional de ginástica de solo — quebrando um recorde que durava desde 1933, quando Alfred Joachim se sagrou campeão nacional pela sétima vez na carreira. Em San Jose, onde decorreram os Nacionais de ginástica dos Estados Unidos, tornou-se ainda a mais velha de sempre a ganhar a competição nacional de conjunto, aos 26 anos e uma década depois de a ter vencido pela primeira vez.

O passo seguinte passava pelos Mundiais de Antuérpia, na Bélgica: a primeira competição internacional em que Simone Biles iria participar depois dos Jogos Olímpicos de Tóquio. E apesar de saber que teria todos os olhos nas suas costas, como acontece desde que impressionou o mundo inteiro ao conquistar quatro medalhas de ouro em 2016 no Rio de Janeiro, a ginasta não tinha grandes dúvidas na hora de explicar o porquê de ter decidido voltar a competir.

Ela continua a voar até Paris: Simone Biles faz um dos saltos mais difíceis de sempre e batiza mais um movimento

“Acho que grande parte foi imaginar-me daqui a 10 anos, a olhar para trás, e pensar nos arrependimentos que posso ter. Quero estar a ver imagens dos Mundiais ou dos Jogos de Paris na televisão e pensar ‘uau, se eu tivesse só voltado ao ginásio, se me tivesse esforçado mais um pouco…?’ Porque vou sempre fazer tudo aquilo que me apetecer fazer depois de a minha carreira acabar. Mas não vou ter a minha carreira para sempre. Acho que agora o sucesso significa algo um bocadinho diferente para mim. Agora é só aparecer, estar bem mentalmente, divertir-me lá fora e o que acontecer, acontece”, atirou a norte-americana numa entrevista recente ao site do Comité Olímpico Internacional.

Voltou no início de agosto de 2023, no US Classic, e no final do mês conquistou desde logo o oitavo título nacional de ginástica de solo — quebrando um recorde que durava desde 1933, quando Alfred Joachim se sagrou campeão nacional pela sétima vez na carreira.

E o que aconteceu foi impressionante. Conquistou quatro medalhas de ouro e uma de prata e, ainda nas eliminatórias, tornou-se a primeira mulher a conseguir completar um duplo Yurchenko no cavalo — considerado um dos saltos mais complexos de sempre — em competições internacionais. A ginasta norte-americana já tinha alcançado o salto na perfeição tanto em 2021 como nos Nacionais daquele mesmo ano, mas nunca o tinha concluído internacionalmente. Nem ela, nem qualquer outra mulher.

Já este ano, voltou a não desiludir e sagrou-se campeã nacional de ginástica pela nona vez, alargando o próprio recorde. A jogar em casa — os Campeonatos Nacionais decorreram no Texas e a ginasta teve o marido e a restante família a apoiá-la nas bancadas –, Simone Biles dominou toda a competição e nem sequer deixou que um erro no cavalo atrapalhasse a supremacia demonstrada no all around. A norte-americana terminou as provas com um combinado de 119.750 pontos, mais seis do que Skye Blakely, a segunda classificada, e muito longe de Kayla DiCello, que ficou no terceiro lugar.

“O que queria era estar aqui e estar confortável e confiante com a minha ginástica para estar no apuramento para os Jogos Olímpicos e dar o passo seguinte rumo a Paris. Não podia estar mais orgulhosa do meu momento nesta altura do ano e do facto de estar a conseguir ganhar cada vez mais confiança, de me colocar em frente a uma multidão e repetir tudo o que faço nos treinos”, explicou Biles já depois de receber a medalha de ouro.

Apesar de antes já ter ficado totalmente subentendido que a ginasta de 27 anos iria mesmo estar presente nos Jogos Olímpicos, foi a primeira vez que Simone Biles assumiu diretamente que queria estar em Paris — três anos depois de, em Tóquio, ter abdicado de quatro finais para dar prioridade à saúde mental e ter até colocado em causa a continuidade da carreira.

“Toda a gente diz que parece mesmo que estou a divertir-me e isso é bom. Se não estiver stressada ou a sentir ansiedade, estou mesmo a divertir-me. É bom ter isso e é bom ter voltado a sentir isso”, acrescentou a norte-americana, que esteve dois anos sem competir depois de Tóquio e que é ainda a ginasta mais medalhada de sempre em Jogos Olímpicos, com sete medalhas entre quatro ouros, uma prata e dois bronzes. Este domingo, em Paris, Simone Biles vai voltar a tentar impressionar o mundo inteiro. Mais do que isso, vai voltar a sorrir.

 
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