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É o número 2 de António Costa, o braço-direito do primeiro-ministro e até esteve a substitui-lo nos últimos 15 dias, durante as férias do chefe do Governo. Siza Vieira, o ministro de Estado e da Economia, veio pela segunda vez ao programa “Sob Escuta”, da Rádio Observador, para uma entrevista em que se falou do apoio às empresas durante a pandemia e dos caminhos da recuperação económica. Ainda assim, Pedro Siza Vieira não se furtou às questões políticas: deixou um alerta aos parceiros da antiga Geringonça. Se foi possível trabalhar em conjunto durante cinco anos com o Governo de António Costa, disse o ministro, seria agora “incompreensível e inconcebível” uma crise por causa do Orçamento do Estado para 2021. Sobre uma eventual subida do salário mínimo, como reclama a esquerda, deu a mais forte resposta do Governo sobre a matéria até agora: “O tema não foi sequer objeto de discussão entre o Governo, o PCP, o Bloco de Esquerda, o PEV, o PAN”. E não deve ser até final do ano. Ponto final.
Siza Vieira explica ainda como vai o Banco do Fomento apoiar as pequenas empresas que hoje não têm acesso a crédito bancário, o que levou o Governo a salvar a Efacec e os desafios que Portugal enfrenta para convencer Bruxelas de que uma TAP “pequenina” não assegura os interesses do país.
[Veja no vídeo os principais destaques da entrevista]
O primeiro-ministro disse que o país não vai aguentar o segundo confinamento, mas há muitos sinais de que vem aí uma segunda vaga. Que recursos é que o Governo tem de parte para esse momento?
Quando tivemos os primeiros casos na Europa, basicamente não tínhamos nenhuma medida de proteção relativamente à forma como o contágio se disseminava. Se estivéssemos a fazer esta entrevista há três, quatro, seis meses atrás, provavelmente, estaríamos uns em cima dos outros numa cabine relativamente apertada, quando estivéssemos a chegar aqui eu não traria máscara vestida e não tínhamos desinfetado as mãos à entrada. E não estávamos preparados. Agora estamos muito mais preparados para isso. E acho que a experiência portuguesa também mostra que é possível fazer um desconfinamento extremamente controlado sem que haja um descontrolo do ritmo de contágio. Aquilo que vemos noutros países é que um desconfinamento mais generoso, digamos assim, acabou por propiciar um ritmo de crescimento de contágios muito maior. É preciso que vamos calibrando a forma como as sociedades se comportam para os próximos tempos, particularmente o outono e inverno deste ano, para evitar ter que tomar medidas tão drásticas como aquelas que houve que tomar no momento em que as sociedades não estavam pura e simplesmente preparadas.
Ouça aqui a entrevista na íntegra.
A retoma não está a acontecer ao mesmo ritmo que se previa inicialmente. O que resta para ajudar a economia no caso de haver uma segunda vaga forte e possivelmente um confinamento?
O que estamos a ver na Europa e em Portugal é que Junho foi melhor que Maio e Julho foi melhor do que Junho. Agosto será seguramente melhor. Mas vai ser um ritmo mais acelerado ou vai ser um ritmo mais lento?
Vai ser difícil, vai ser duro. Tivemos uma contração do PIB no segundo trimestre de cerca de 8,3 mil milhões de euros. Isto desapareceu: foram vendas que não foram feitas, foram encomendas canceladas, foram viagens que não se realizaram. Muitas empresas não tinham capacidade de aguentar sem receitas mais do que dois meses. E por isso, nessa altura, o Estado colocou na economia cerca de 10 mil milhões de euros. Estamos a falar de linhas de crédito e medidas de apoio social, entre layoff simplificado, diferimento de obrigações fiscais e de contribuições para a Segurança Social de quase mil milhões de euros.
E para aguentar a segunda metade do ano?
Até ao fim do ano, temos de ajudar a economia e as pessoas a suportarem uma retoma que não nos vai colocar no ponto em que estávamos no início do ano. Ainda temos linhas de mais 6,8 mil milhões de euros de crédito à economia. O Programa de Estabilização Económica e Social tem um volume muito significativo de despesa ou de quebra de receita que vão ajudar também a economia a funcionar. Para as empresas com quebras de faturação superiores a 40%, vamos disponibilizar apoio ao pagamento dos salários que varia entre 75% e 50%. Isto é bastante poderoso para empresas que não vão conseguir ter a procura a que estavam habituadas. Estamos convencidos que 2021 e 2022 vão ser anos de crescimento importante e de retoma. Mas nós não teremos futuro se não tivermos presente e é isso que é necessário assegurar.
Salário Mínimo nem sequer foi discutido ainda com partidos à esquerda do PS
Face a este cenário que acaba de descrever, há margem para aumentar o salário mínimo nos termos em que foi acordado com o PCP e o Bloco de Esquerda?
Não é uma questão que se coloque agora. Estamos abaixo dos nossos congéneres europeus nessa regra de repartição do rendimento, que faz parte de uma sociedade justa. Foi a lição da legislatura passada e mesmo dos últimos meses – que o crescimento dos salários acaba por puxar pelo crescimento dos rendimentos médios. No salário mínimo, o primeiro-ministro definiu uma determinada trajetória, dizendo que essa trajetória, obviamente, iria ser avaliada ano a ano em função do comportamento da economia, das exportações e do emprego. E eu acho que é isso que temos que avaliar. Acho que é uma decisão que não tem que ser tomada agora.
O Governo já reconheceu que a queda do PIB será muito superior à prevista no orçamento suplementar. Acha que será necessário fazer uma segunda retificação ao orçamento deste ano?
Acho que isso – francamente – nesta altura não é o mais importante. Os mercados, os observadores, os investidores percebem que Portugal tem uma situação financeira controlada. Estava numa trajetória financeira em que passámos de um défice para um excedente. Estávamos a reduzir a dívida pública, em montante e em percentagem do PIB. Aquilo que estamos neste momento a viver são medidas excecionais para absorver o impacto momentâneo de uma crise que ela própria também é momentânea. Não estamos pura e simplesmente a descontrolar as finanças públicas ou a tomar medidas estruturais que agravam perpetuamente a despesa pública ou a prescindir de receitas que nunca mais se recuperam. Nós estamos a responder a esta emergência com uma resposta das autoridades europeias, designadamente do Banco Central Europeu, que também percebeu que esta pandemia precisa de uma resposta excecional. Isso tem-nos permitido ir ao mercado em condições de financiamento altamente favoráveis. É toda esta panóplia de ferramentas e respostas que nos permitem estar seguros dos passos que estamos a dar.
Não será por falta de acesso a recursos financeiros que o Estado vai deixar de responder às necessidades da economia e das empresas.
Bom, também com moderação. Nós não podemos gastar sem pensar como estamos a gastar, o que estamos a gastar e para que efeito estamos a despender verbas. Mas o que estava a dizer é que não devemos pensar que combatemos uma crise económica com uma política financeira austeritária. Não devemos pensar que – porque as empresas estão a ter piores resultados e, por isso, os impostos vão baixar – que devemos cortar na despesa.
Receia que uma possível falta de acordo à esquerda, no que diz respeito a leis laborais ou em relação ao salário mínimo, possa eventualmente resultar num chumbo do Orçamento para 2021?
Como não sei o que será a melhor solução para a questão do salário mínimo, nem sequer tenho isto como objeto de discussão. Francamente, a questão do salário mínimo não foi sequer objeto de discussão entre o Governo, o PCP, o Bloco de Esquerda, o PEV, o PAN nas conversas que já tivemos a propósito do próximo Orçamento. Portanto não vale a pena estar a antecipar essa questão.
Não teme uma crise política na aprovação do Orçamento de Estado de 2021 que ainda agrave mais a crise económica?
Acho que não. O país não admite, não concebe que o sistema político e partidário não consiga dar uma resposta política estruturada num contexto em que estamos a viver tantas dificuldades do ponto de vista económico e social. Esta crise resultou de uma doença. Essa doença não foi criada pelos portugueses, não foi criada pelas empresas portuguesas, pelos trabalhadores portugueses, nem pelos políticos portugueses. Foi uma coisa que nos veio de fora, a que o país procurou responder da melhor maneira possível. Eu francamente acho que respondemos bastante bem quando vemos aquilo que foi o percurso desde março quando tivemos o nosso primeiro contágio até agora. Quando comparamos com os altos e baixos que muitos outros países europeus estão a ter, acho que devemos ficar, não vou dizer satisfeitos, mas apesar de tudo construir a base de confiança para o nosso futuro coletivo. E neste contexto tão difícil, mas ao mesmo tempo em que temos estes recursos europeus à nossa disposição, vir a pensar que se cria no Parlamento uma crise política porque os partidos que trabalharam juntos durante cinco anos não têm capacidade para se entender nesta altura. Acho incompreensível. E nem sequer concebo.
Documento de Costa Silva “não é plano, com metas, objetivos, alocação de recursos. É uma visão”
O plano Costa Silva para relançar a economia está em discussão. Porque é que o Governo optou por escolher um consultor privado e não criar uma equipa multidisciplinar, com outras valências, que não fossem apenas a economia?
Acho que é importante termos a capacidade de ter uma espécie de documento, que se coloca à discussão do país, onde se diz: isto é uma visão para a década; isto é o que podemos fazer numa década; são os caminhos possíveis para Portugal; isto são as opções que estão à nossa disposição; estas são as nossas vantagens comparativas. É um documento muito pessoal. Foi o professor Costa Silva que o elaborou – ouviu bastante gente – e apresentou ao Governo. Sim, eu acho que é bom que estas coisas sejam feitas fora do Governo. E tem sido, aliás, esse o modelo que se tem usado noutros países europeus que estão também a preparar documentos semelhantes. A ideia que eventualmente pode parecer é a de fazermos isto com uma equipa de pessoas que vai estar a trabalhar durante longos meses ou pedirmos a uma pessoa.
Também foi uma questão de urgência?
Neste momento temos um documento que está colocado à discussão. Não é um plano, com metas, objetivos, alocação de recursos, mas é uma visão estratégica, a partir da qual poderemos começar a trabalhar o plano de recuperação que temos que apresentar à União Europeia já em outubro e a partir do qual também podemos preparar o quadro financeiro plurianual. Outros países que têm equipas mais vastas estão ainda a começar a definir o caderno de encargos para essas equipas vastas prepararem.
Para quem lê parece que não é possível fazer tudo aquilo. Será a função do governo fazer as escolhas. Estou a pensar, por exemplo, no caso da reindustrialização, pode entrar em conflito com as questões da sustentabilidade, da coesão territorial.
A industrialização é um tema comum a toda a União Europeia e é um tema muito crítico em Portugal.
Mas está muito focado para a parte dos recursos mineiros, da exploração dos recursos minerais e da energia.
Não estou de acordo. O peso da nossa indústria portuguesa no valor acrescentado bruto nacional andava na casa dos 22% no início deste século. Está agora nos 17 %. É verdade que o resto da economia cresceu muito, mas a indústria transformadora perdeu peso no PIB. Hoje em dia nós produzimos bens mais complexos, tecnologicamente mais avançados e aquilo que percebemos é que Portugal tem capacidade de atrair investimento industrial que seja capaz de preencher uma lacuna que agora ocorre na economia internacional. A Europa e os países avançados acabaram por deslocalizar para países do Terceiro Mundo a produção de bens materiais. Hoje em dia importamos muita coisa, seja produto acabado, têxteis calçado, veículos, máquinas de países asiáticos, mas também muitos componentes que depois são incluídos na produção industrial que ainda existe.
Mas essa produção industrial que foi deslocalizada não tem muito valor acrescentado. Por alguma razão as economias ocidentais de alguma forma assentaram nesse modelo.
Tem a ver com a autonomia estratégica da Europa e a sua dependência de produções críticas. Estou a pensar no setor da saúde, dos medicamentos, estou a pensar nos equipamentos de proteção individual. E isso está assumido pela Comissão Europeia. A segunda nota tem a ver com a gestão de cadeias de valor muito extensas. Em cadeias de valor onde a matéria prima é extraída na América do Sul, na Ásia etc, uma disrupção em qualquer ponto – porque há um ataque terrorista num porto onde são abastecidos ou uma inundação – tudo isto gera riscos para a economia mundial, o que leva a reequacionar a necessidade de aproximar alguns centros de produção de bens físicos de Portugal. Uma das coisas onde Portugal pode crescer tem a ver com acrescentar valor àquilo que produzimos. Se quiser, é passarmos a inventar mais aquilo que produzimos e não sermos apenas produtores. E essa confluência entre o conhecimento, os serviços e a produção de bens físicos é aquilo que permite fazer crescer não apenas em quantidade, mas em valor, aquilo que produzimos. E esse é um caminho que claramente o país quer percorrer.
Falhas apontadas por investidores estrangeiros? transportes e custo da energia
Mas também temos de ter capacidade de atrair projetos de investimentos estrangeiros pelo conhecimento. O fator salários baixos não tem nada a ver com isso?
Quando as empresas internacionais fazem decisões de localização de investimento ponderam um conjunto de fatores e, claro, a base de custos que aí têm. Mas também ponderam a produtividade que podem obter. Eu gosto muito de falar com investidores estrangeiros ou com gestores estrangeiros de unidades que se localizam aqui em Portugal e pergunto sempre: porque é que vocês escolheram Portugal ? Como é que compara a vossa unidade em Portugal com aquela que tem noutros países, em termos de qualidade, em termos de produtividade, em termos de rentabilidade? A primeira resposta fala na qualidade das pessoas. Não apenas técnica, mas também na forma como os portugueses trabalham. Como se relacionam em ambientes multiculturais, as capacidades linguísticas, a criatividade e a orientação para o resultado que a mão de obra portuguesa, de uma maneira geral, tem. Relativamente à comparação com outros setores dizem: aqui somos mais produtivos. Talvez os salários sejam mais baixos na Roménia ou na China…
Mas também apontam, certamente, falhas…
Relativamente às dificuldades, falam de duas ou três coisas. Quando estamos a falar da indústria surge muito a questão dos transportes de mercadorias. Estamos a falar de ferrovia, mas também de uma outra coisa muito crítica. Localizamos áreas industriais muitas vezes até na proximidade de grandes infraestruturas, mas faltam os acessos finais, aqueles últimos quilómetros da ligação da autoestrada ao porto. Estamos na periferia e é muito importante que as nossas infraestruturas sejam de grande qualidade, para baixar o custo e baixar o tempo de deslocação. A segunda coisa que nos dizem, embora com menos peso, é o custo a energia. A indústria é consumidora intensiva de energia e, portanto, temos como objetivo uma redução do diferencial de custo entre a energia para os produtores industriais em Portugal e aquilo que acontece no resto da Europa.
Mundo mais descarbonizado vai precisar de apoios públicos
O hidrogénio verde é um projeto muito importante para atingir esse objetivo. Ou não necessariamente?
Precisamos obviamente de conseguir produzir energia barata, mas precisamos de ter segurança de abastecimento para os nossos produtores. É muito importante que sejamos capazes de fazer este percurso da descarbonização, não de uma forma que seja “vamos produzir menos” ou “vamos deixar que chineses e indianos produzam os bens físicos que nós consumimos, poluindo o planeta”. Temos que assegurar que a produção de bens físicos – de que a humanidade vai continuar a carecer – é feita de uma forma que globalmente produza menos gases com efeitos de estufa. Isso significa que temos que introduzir novas tecnologias nos processos de produção.
As novas tecnologias têm um risco financeiro associado, vimos isso no passado. E há alertas relativamente à questão do hidrogénio. Há quem receie mais rendas excessivas da energia…
A meu ver, esse género de argumentação visa sempre derrotar a própria ideia de que nós possamos investir no futuro. A Europa precisa de investir em gases renováveis e está a fazê-lo. Acho que devemos permitir que as empresas portuguesas tenham apoios ao desenvolvimento de tecnologia que lhes permita não ser apenas compradores de tecnologia de terceiros, mas participar no processo de desenvolvimento dessa tecnologia. Temos que reconhecer que um mundo mais descarbonizado, mas em que a energia não pode emitir tantos gases, vai precisar de apoios públicos. E essa é a essência de uma política industrial. Uma política industrial apoia o desenvolvimento de novas tecnologias.
E esses apoios públicos não podem fazer com que a eletricidade volte a ficar cara em relação aos outros países?
Não, não. Há várias maneiras de apoiar o desenvolvimento de uma nova tecnologia. Uma delas é garantirmos procura a um preço mais elevado do que aquele que o mercado, trabalhando com tecnologias antigas, pode assegurar. A segunda hipótese é apoiar as despesas de investigação e desenvolvimento necessárias para que uma tecnologia ganhe maturidade e consiga começar a produzir de forma mais barata. A terceira é darmos um subsídio ao investimento, dizendo: ‘Tu constrói isto que é mais caro, mas depois pagamos uma parte. Estamos a falar de fundos europeus. A Autoeuropa quando se instalou em Portugal foi fortemente subsidiada e ninguém lamenta o investimento que o país fez no seu todo.
Portanto, apoios ao investimento na energia.
O nosso processo de transição energética deve assegurar que o diferencial de preço para os concorrentes europeus se vá reduzindo e que o processo de descarbonização não coloque os produtores nacionais numa situação competitivamente mais negativa do que os seus congéneres europeus. Isto obriga a uma grande articulação e obriga a que, à medida que vamos definindo metas mais ambiciosas, também possamos apoiar os nossos produtores a percorrer esse caminho. Sem nunca perder de vista este objetivo: qual é a meta e qual é o impacto que isso vai ter nos consumidores e nos produtores.
Banco de Fomento vai apoiar setor “muito mal servido” pela banca: as mid-caps
Queixou-se no Parlamento que Portugal era o único país sem um banco de fomento e, no entanto, ele já existe no papel há muito tempo.
Não me queixei. Limitei-me a constatar. Nós tivemos um banco de fomento em Portugal — Banco de Fomento e Exterior que foi privatizado nos anos de 1990. Nas últimas décadas fomos criando sociedades financeiras públicas que iam cumprindo uma pequena parte da tarefa de um banco de fomento. Mas sabemos que o financiamento às empresas tem várias falhas de mercado. Micro, pequenas e médias empresas têm dificuldade em aceder a crédito para apoio à sua tesouraria, mas sobretudo para aceder a crédito ao investimento com prazos adequados.
Os bancos estão cada vez mais cuidadosos na concessão de crédito. É preciso que haja um qualquer apoio público, que noutros países europeus existe sob a forma de instituições que apoiam essa concessão de crédito e que nós em Portugal não tínhamos, a não ser muito limitadamente. Queremos concentrar os recursos – humanos, técnicos e financeiros – para lhes dar maior escala; alargar o âmbito das operações que podemos realizar.
Até onde é que pode ir a operação do Banco de Fomento na concessão de financiamento às empresas?
Obviamente é vocacionado para as empresas e com três áreas de atuação. A primeira é o crédito às pequenas e médias empresas, intermediado pelo sistema bancário. Através do Fundo de Contra Garantia Mútua, canalizamos um montante que, neste momento, deve representar cerca de 20% do crédito às micro, pequenas e médias empresas (o dobro do que era antes do Covid). É claro que é excecional, mas é importante contrariar a tendência de uma redução muito grande do fluxo de crédito para PME que se verifica desde 2010. Infelizmente, o nosso sistema empresarial e o nosso sistema bancário não se encontram. Portanto, se não tivéssemos começado a fazer fluir estas linhas – Capitalizar, etc – provavelmente a contração de crédito para as pequenas e médias empresas teria sido muito superior e a sua capacidade de atuar teria sido impactada negativamente. Esta é a parte do Fundo de Contra Garantia Mútua que será gerido pelo Banco de Fomento.
E quais são as outras duas áreas de atuação?
Uma segunda parte é o próprio balanço do banco que vai aumentar o capital para permitir fazer outras operações. Já com este capital podemos fazer muita coisa como co-investimento ao lado de bancos, ou seja certos projetos em que os bancos só podem tomar uma determinada parte do crédito, nós podemos entrar.
E já este ano?
Julgo que já este ano vamos começar a fazer operações. Outra coisa que podemos fazer – e que os bancos nos pedem muito – é assegurar financiamento de longo prazo aos bancos. Os bancos portugueses têm dificuldade em fazer operações a 15 ou a 20 anos, porque não têm acesso a financiamento ao mesmo preço. E o Banco de Fomento pode assegurar ser o veículo que capta fundos a mais longo prazo e os retransmite aos bancos para que eles possam fazer operações de mais longo prazo. E finalmente podemos mesmo fazer crédito direto a empresas.
Mas sempre em projetos ou empresas de pequena dimensão? Ou vamos ver o Banco de Fomento envolvido em grandes projetos?
À partida, não. Embora nós tenhamos também um segmento do nosso setor empresarial, que é crítico, e que é muito mal servido pelo sistema… São aquelas empresas que já não são PME, mas que ainda não são grandes empresas. As small mid-caps que têm os 500 trabalhadores e as mid-caps até aos 3 mil trabalhadores. Temos muito poucas em Portugal. O sistema é muito hostil a estas empresas. Quando atingem uma determinada dimensão deixam de poder beneficiar de um conjunto significativo de incentivos fiscais. E não são suficientemente grandes para terem os bancos a baterem-lhes à porta. Acho que um objetivo para a próxima década tem que ser ajudar as nossas pequenas empresas a tornarem-se médias empresas e as nossas médias empresas a tornarem-se maiores. E o Banco de Fomento pode ajudar nisso.
“Não acredito em meter dinheiro público bom em cima de situações más”
O Banco de Fomento também pode funcionar como uma espécie de válvula de segurança. As moratórias de crédito estão a proteger empresas e bancos de situações de incumprimento, mas isso terá que acabar fatalmente e temos bancos em situações de alguma fragilidade. O governo está preocupado com o risco de uma crise bancária?
Acho que, de facto, podemos ter nos próximos tempos um conjunto de empresas a entrar em dificuldades, particularmente a partir do próximo ano. Aquilo que devemos ter desta vez, ao contrário daquilo que aconteceu na última crise, é um sistema mais bem preparado para responder a essa situação. Mas os bancos já estão a fazer uma parte desse trabalho. Estão a provisionar, a fazer reservas (constituir almofadas financeiras nos seus balanços) para terem capacidade de absorver eventuais perdas que possam decorrer de as empresas não poderem pagar os seus créditos. E eles já estão a fazer isso.
Mas isso apenas não é suficiente, certo?
O próprio Estado também tem que criar um enquadramento favorável, que não pode ser salvar empresas que não têm viabilidade, que não pode ser apoiar bancos que não acautelaram o seu percurso. Tem que criar um quadro institucional, legislativo, fiscal que favoreça a possibilidade de – perante uma empresa que entra em dificuldades – sabermos se foi apenas uma circunstância de mercado, se é uma empresa viável que tem clientes que tem saber fazer e que merece ser apoiada.
Está a falar no regime jurídico de recuperação e insolvência? Em que é que se traduz exatamente esse agilizar?
Traduz-se em várias coisas que eu acho que não aconteceram na nossa última crise. Obviamente, num quadro legislativo e fiscal que hoje em dia já é mais favorável à recuperação do que era há dez anos. Traduz-se, claramente, numa capacidade de resposta mais forte do nosso sistema judicial. E houve também um reforço nessa matéria. Traduz-se na capacidade de os nossos bancos conseguirem trabalhar de forma articulada, a gerir situações de devedores que entram em dificuldades e que podem ter exposições a 2, 3 ou 4 bancos. O conjunto de instituições credoras e o enquadramento institucional e legislativo em que estes processos acontecem tem que ser desde já preparado para quando as empresas entrarem em dificuldades, ser capaz, o mais cedo possível, de reconhecer a situação, ser capaz de distinguir aquilo que são empresas que já estavam mal. Mas são os credores que têm que ter a capacidade de avaliar se uma empresa é viável ou não. São os credores que têm que fazer o principal esforço de, perante as empresas viáveis, ajustarem o valor dos seus créditos àquela situação.
Credores que muitas vezes são bancos…
Mas não são só bancos. E em terceiro lugar implica também que o sistema público possa poder viabilizar certas situações de financiamento ou de capital para empresas que tenham passado por esse processo de reestruturação um processo de reestruturação saudável. Eu não acredito em meter dinheiro público bom em cima de situações más, não só de empresas inviáveis, mas de empresas viáveis relativamente às quais os sócios ou os outros credores não tenham feito o esforço de ajustamento do balanço dessa empresa à sua situação operacional efetiva.
Pagar a Isabel dos Santos pela Efacec? Claro, num Estado de Direito não se confisca
Vemos sinais de uma maior intervenção do Estado na economia, com as decisões em relação à TAP e a Efacec. O impacto económico e financeiro destas operações para o Estado foi estudado previamente?
Sim, claro, é evidente. A partir do caso Luanda Leaks, a Efacec (que era dominada em 70% por Isabel dos Santos) passou a ter enormes dificuldades por razões reputacionais. Clientes e fornecedores diziam: “Eu tenho dificuldades em relacionar-me com uma empresa que é controlada por uma pessoa que está a ter estes problemas”. Isso foi agravado porque as ações representativas do capital da Efacec foram objeto de arresto judicial e portanto deixou de haver sequer alguém que pudesse exercer os direitos sociais. É como se tivéssemos uma empresa sem dono. E mesmo o processo de alienação se confrontava com esta dificuldade: mesmo que houvesse comprador, vender as ações era difícil dado os arrestos. As ações da Efacec eram uma cascata de participações que vinham desde Malta até Portugal. A empresa começou a entrar em dificuldades financeiras. A resposta foi dada para resolver este problema e não para responder a uma empresa que estava em dificuldades financeiras. A Efacec até ao final de 2019 tinha uma situação financeira equilibrada. Estamos a falar de uma empresa que tem uma capacidade industrial em setores que vão ser críticos para o nosso futuro como a mobilidade elétrica e a eletrificação de infraestruturas.
Mas ainda há uma possibilidade de o Estado ter de pagar a esse acionista de controlo, ter de pagar a Isabel dos Santos?
Sim, obviamente. Num Estado de Direito não se confisca. Não fizemos avaliações formais, mas temos bons pontos de referência. Havia uma tentativa de alienação das ações detidas pela senhora Isabel dos Santos e foram recebidas propostas que deram uma valorização para a empresa. Nos termos da lei, o Estado é obrigado a determinar o valor daquela participação e pagar a quem provar que essa indemnização é devida. Pode ser a engenheira Isabel dos Santos, podem ser os bancos que são credores delas. Os tribunais vão decidir a quem é que o Estado tem de pagar. Estou convicto de que há muitos interessados na Efacec. Podem estar interessados numa parte do negócio ou estarem interessados no negócio como um todo. Na venda, provavelmente vamos valorizar, não apenas o encaixe financeiro mas também a visão estratégica para a empresa.
A TAP terá de apresentar de reestruturação rapidamente e esse plano terá que refletir um ajustamento muito grande no sector da aviação e no turismo. A TAP vai ser necessariamente mais pequena do que é agora…
É óbvio que durante algum tempo o sector do transporte aéreo vai ter uma procura muito retraída. As pessoas não estão a viajar, estão com receio e há limitações ao transporte. E não sabemos quanto tempo isso durará, um ano, dois ou três.
Mas não podemos manter uma capacidade completamente desproporcional em relação àquilo que será o mercado no próximo ano…
Sim, mas a minha visão pessoal é a de que o valor que a TAP — e que levou a Lufthansa a interessar-se por tomar uma participação — não tem a ver com a operação de uma TAP pequena para servir Portugal e Ilhas e ligações a comunidades europeias. Mas pela capacidade que a empresa teve de se afirmar em rotas transcontinentais, de dominar em termos europeus as ligações ao Brasil, de crescer muito significativamente nas ligações aos Estados Unidos. Isso é que é o valor que a TAP traz ao país. Também acho que precisamos de assegurar que somos capazes de convencer a Comissão Europeia de que temos uma empresa viável que também tem essa operação. Ou seja que não reduzimos tanto a dimensão da TAP que ela seja incapaz de prestar esse serviço ao país.
O grande desafio será convencer a Comissão Europeia?
Sim. Acho que isso também tem a ver com a forma como somos capazes de demonstrar que a TAP é capaz de ter uma estrutura de custos compatível com as suas congéneres, ou seja, que mantemos um nível de operação razoável de uma forma que tenha uma estrutura de custos adequada. O desejável é termos no futuro uma TAP que continue a prestar ao país o mesmo tipo de valor que prestou nos últimos anos e que não é só levar portugueses para o Brasil ou trazer as nossas comunidades de outros pontos. É esta ideia de uma empresa altamente exportadora, uma empresa que compra a empresas nacionais 1.300 milhões de euros todos os anos e que uma TAP pequenina não conseguiria assegurar.
Regras criadas para a Administração Pública geram é ineficácia na resposta
No final de abril assumiu falhas nos pagamentos de layoff e afirmou que sentia ter defraudado as expectativas dos empresários. Desde então a sua presença, como face visível a lidar com esta resposta à crise, diminuiu consideravelmente. Parece que o Governo lida mal com o assumir dos erros…
Acho que não. Você fez agora uma ligação que até acho absolutamente surpreendente. Uma constatação que o país tem que fazer é que temos que capacitar a nossa administração pública para estar à altura das exigências de uma sociedade e de uma economia que evoluíram. Desinvestimos nas últimas décadas e o caso das respostas do sistema informático da Segurança Social ilustra bem isso. Entre pensionistas e beneficiários de prestações sociais não contributivas e a ação social, a segurança social é provavelmente a área de maior dimensão financeira do Estado. E no entanto tem um sistema informático que você se calhar não tem em sua casa. Se queremos ter uma capacidade de resposta, e vamos precisar dela, temos que investir em tecnologias, temos que investir em quadros qualificados, temos que investir na qualificação das pessoas existentes. Mas acho que tudo isto ponderado, a nossa Administração Pública respondeu de forma admirável a um contexto muito difícil.
Esse investimento passa também pelo rejuvenescimento e pela contratação de mais funcionários.
Estou de acordo. Acho isso absolutamente essencial.
Mas tem sido muito difícil, mesmo quando os concursos são lançados, há impugnações….
Não tenho dúvida. Aliás uma reflexão que tenho feito é a de que criamos para administração pública um conjunto de peias, de constrangimentos e regras que supostamente visam assegurar que tudo é rigorosamente controlado mas que na verdade aquilo que geram é a ineficácia de muita resposta da administração pública.
E é isto que vai dificultar a eventual aplicação dos fundos europeus..
É isso que vai dificultar, mas também digo uma coisa: é por nós estarmos mais conscientes disso que podemos melhor gerir essas situações.
[Veja a entrevista na íntegra:]