Recebeu-nos de sorriso no rosto, informal, e logo nos pediu conselhos para saber se vestia o blazer para a entrevista. Viria a explicar, mais à frente, que se veste muito mal e que só comprou roupa duas vezes na vida. Ou melhor, uma. A segunda não passou de uma tentativa frustrada.
Como frustradas foram também as tentativas de praticar uma série de desportos em criança e na adolescência. A melhor experiência foi no hóquei e não passou de suplente de guarda-redes, contou-nos o patologista Sobrinho Simões, entre gargalhadas. O seu passatempo favorito sempre foi ler.
Foi nos antigos lameiros da Asprela, no Porto, onde antes se caçavam codornizes e em 1996 se ergueu o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP), que o patologista nos recebeu, qual pai babado, orgulhoso do seu filho. E não se despediu sem antes nos contar a história do carvalho que foi plantado à porta do instituto que dirige, que lhe custou 80 contos e morreu passado pouco tempo, e dos dois novos que lá estão, lado a lado. Plantados na mesma altura, o do colega cresceu o dobro do dele, que trouxe de Arouca.
Workaholic insanável, é no IPATIMUP que passa as tardes até o sol se pôr, depois das manhãs de trabalho no Hospital de São João. Junta a isto aulas, projetos e viagens de trabalho. Pai sempre presente, mas “pouco atento”, confessa que a mulher sempre deu mais à família do que ele.
Seguiu Medicina, mas sempre quis conhecer as doenças sem ver doentes. Estuda o cancro há 40 anos, e nem por isso a doença deixou de o aterrorizar. Pelo contrário. Tem medo de sofrer, como o pai — que viu morrer — sofreu.
Aos 69 anos, e prestes a chegar à idade da reforma, é um dos maiores especialistas mundiais em cancro da tiróide e em 2015 recebeu a distinção de patologista mais influente do mundo. Porém, é na pele de professor que sente mais prazer e é como professor que espera ser recordado.
Quando pensei propor-lhe esta entrevista procurei o seu número e não tinha. Perguntei aos meus colegas e ninguém tinha. Até que um me disse que o professor não tem telemóvel. Ri-me. Fico sempre admirada como é possível viver sem telemóvel. Porque é que o faz?
O telemóvel tem uma capacidade de intrusão horrível e eu sou egoísta, não queria que me chateassem quando gostava de estar sossegado. Isto é uma justificação verdadeira, mas exagerada, porque é muito pessoal. Agora tenho outra justificação profissional: sou patologista portanto faço diagnóstico de cancro e doenças pré-cancerosas. Faço muitas segundas opiniões de casos difíceis portugueses e estrangeiros e tenho sempre muito medo que se fizer por via oral as pessoas não percebam bem. Além de que, as pessoas estão muito ansiosas por falar comigo. Se tivesse telemóvel e não respondesse ia ofendê-las. Esta é a justificação racional.
Mas nunca lhe criou dificuldades? Situações embaraçosas?
É permanente. Guio muito mal, tenho pequenos acidentes e fico sem gasolina, sou distraído. Já viu o que é um tipo ter um furo na auto-estrada sem telemóvel?
Já lhe aconteceu, portanto.
Claro. Tive de mudar o pneu, mas como tenho muito pouco jeito de mãos até chorei. Tenho uma cena que vista à distância até tem graça. Ia jantar com o doutor Artur Santos Silva e com o professor Canotilho e tinha ficado de ir ter a casa a umas certas horas. Fui fazer um doutoramento a Coimbra e na auto-estrada de Coimbra para o Porto tive um furo. Estava a chover e vi-me aflito para mudar o pneu. Tem muita graça porque chego a casa todo sujo de óleo, com colete amarelo, e a minha mulher diz-me: “Sabe que já é muito tarde?” (risos). Como é que a minha mulher me vê entrar em casa com um colete amarelo, todo sujo de óleo, e não me pergunta o que é que aconteceu? Também tem graça porque fui jantar com eles e ambos me disseram: “Epá, mas mudou um pneu sozinho? É o nosso herói!”. Portanto, fiquei muito bem visto. E outra coisa que me acontece muito é por exemplo sentir que vou chegar atrasado — odeio chegar atrasado — e se tivesse telemóvel prevenia.
E a família não protesta?
Protesta. Até porque depois uso o da minha mulher de uma forma que é um bocado abusiva porque as pessoas quando me querem falar apanham-me através do dela. E durante muito tempo até achavam perigoso quando os miúdos eram mais pequenos e vinham comigo. Tive sempre a desculpa da minha mulher ter telemóvel e usava o dela. E também uso muito o da Fátima que trabalha comigo desde 1984. Há 32 anos.
Esta opção de não ter telemóvel não tem então nada a ver com uma postura anti-consumista.
Não. É egoísmo e falta de jeito meu para aprender coisas novas. Não é anti-consumismo porque das coisas que gosto sou um consumidor obsessivo. Por exemplo, de livros. E de comer carne por exemplo, que é uma estupidez. Adoro carne. E é horrível porque sei que não devia comer tanta carne.
Sendo uma pessoa que dedica a vida a compreender o cancro, e depois das notícias que dão conta da relação entre o consumo de carnes vermelhas e o cancro…
A relação é pequena. Como tudo, se exagerar e se ainda por cima usar churrascos e muito sal é verdade que se está a arriscar a ter um bocadinho de maior probabilidade. As pessoas têm de ter cuidado. Há um problema de comunicação da verdade científica. Criam-se coisas muito exageradas. A carne vermelha, de facto, comida em excesso faz mal como faz qualquer coisa. Como a carne branca.
Compra livros e carne, mas não roupa. Li que nunca compra roupa.
Não compro roupa, de novo, por egoísmo, preguiça, vergonha relacional. Não sei falar com as meninas. (risos) Tenho vergonha.
Então como é que trata disso?
Trata-me a minha mulher. Compra-me tudo. E antigamente era a minha mãe. Em toda a minha vida, lembro-me de ter comprado duas vezes coisas para mim. Em Paris, quando me perderam a mala no avião fui comprar camisas para o dia seguinte e a camisa apitou mas, como nunca tinha comprado, achava que era fácil chegar ao hotel e tirar. Disse adeus à menina que sabia que tinha pago e cheguei ao hotel e não consegui tirar e tive de voltar lá (risos). E tive outra vez que ia a Londres e a minha mulher diz-me: “Você gosta muito daquelas camisolas Burberry, compre uma naquele sítio assim e assim que são muito boas”. Entrei, vi as camisolas, veio uma menina perguntar o que é que eu queria, entrei em pânico e vim-me embora. É verdade que me estou nas tintas para a forma como me visto. É verdade, visto-me muito mal e não me importo.
Vestem-no…
Claro. E tem uma coisa que é muito chata que é, quer ela quer a minha filha — as pessoas que me dão roupa —, têm uma pena muito grande porque como ando sempre um bocadinho mal arranjado. E um bocadinho é um eufemismo. Dizem: “Ainda por cima em si nada brilha” (risos), que é uma coisa muito deprimente, mas não me chateia. Por exemplo, também é uma questão em relação aos carros. Guio muito mal. Mal, mal. E tenho sempre um carro que é aquele que de manhã pego, estou habituado e não me obriga a pensar. É pragmatismo. Por exemplo, vou sempre aos mesmos restaurantes e aos mesmos hotéis. Aquela coisa de: “Ah, eu gosto de experimentar’. Não gosto de experimentar coisíssima nenhuma, percebe? Gosto de chegar aos sítios e ter sempre a mesma lógica. Para que é que me vou arriscar. Adoro voltar aos sítios onde fui feliz. Por exemplo, em Âncora, nós temos lá casa, e vou lá sempre que posso ao fim de semana. O restaurante é conhecido pela Cantina do Sobrinho Simões. Odeio mudar.
Herdou isso da sua família?
Do meu pai, indiscutível. O meu pai também era médico e professor universitário. Era um tipo engraçadíssimo, muito mais tranquilo que eu. Muito grande. Também se estava nas tintas para o vestir e para carros. Tinha sempre carros em segunda mão. O meu pai falava muito connosco, discutíamos imenso. A minha mãe tinha de fechar as janelas para os vizinhos não acharem que estávamos à pancada. Discutíamos sempre aspetos intelectuais.
Como é que foi a sua infância?
Tive muita sorte porque era o filho mais velho, rapaz, Manuel como eram todos — já o meu avô tinha sido Manuel e o meu bisavô. Todos médicos. Precocemente percebeu-se que ia ser muito bom aluno porque era muito estudioso, passava a vida a ler, a ler, a ler. Desde pequenino. Sou um leitor compulsivo. Era o único rapaz — depois tive três irmãs — mas era o único rapaz e nasci no dia da Nossa Senhora da Mó, o dia mais Santo de Arouca. A minha avó achou claramente um milagre, não havia dúvida nenhuma. Portanto fui uma criança um bocado estragada por mimos. Fui o neto mais velho, o sobrinho mais velho.
Mas mimado de que forma?
Quando íamos de férias para Arouca podia sair à noite e ir jogar para o clube e as minhas irmãs não. Ia tomar banho para o rio e elas não e elas dizem que quando a comida vinha para a mesa a minha avó separava o bife maior para mim. Era típico da organização muito masculina da sociedade.
Quem foi a figura forte na sua infância?
A minha mãe era a figura forte do ponto de vista afetivo e o meu pai do ponto de vista exemplar. Queria ser como o meu pai e o meu avô. Mas as grandes associações afetivas eram a minha mãe e as minhas avós. Aliás, o meu pai não mandava nada, como eu também nunca mandei. Na nossa família não houve homem nenhum que mandasse alguma coisa. As mulheres é que assumem o lugar de força e de poder. Influências da origem dos Cristãos Novos da Beira Baixa.
Já disse que desde pequeno sempre gostou muito de ler. E brincava na rua?
Não. Até porque nunca fui bom a jogar desporto nenhum. A minha forma de afirmação desportiva era muito esforçada. Fui sempre um tipo esforçadíssimo. Era um miúdo gordinho, baixinho, pouco habilidoso. Joguei tudo e joguei sempre mal. A única coisa onde tive algum sucesso relativo foi no hóquei. Consegui ir para o Vigorosa mas era tão mau que fui suplente de guarda-redes. (risos) O que significa que nunca joguei um jogo oficial. Nunca. Depois na faculdade ganhei o campeonato universitário de pingue-pongue. O que teve graça é que ganhei porque não perdia bolas. Jogar bem pingue-pongue é puxar bem. Eu não. Era uma parede e os tipos perdiam comigo porque perdiam a cabeça (risos). Tenho uma medalha de campeão como um tipo que os envergonhava a todos.
Mas, desportos à parte, nunca brincava na rua?
A minha infância é muito ligada a brincar com os meus primos que moravam perto. Quando o [Hospital de] São João ia ser construído aqui, houve muitos médicos que foram viver para aquele bairro, que se chamava Antas. Na minha rua havia para aí oito médicos, todos médicos do São João e professores da Faculdade de Medicina. Era uma coisa muito familiar, conhecíamo-nos todos. As minhas irmãs davam-se com as primas e eu dava-me com os primos. O meu bisavô do Bombarral tinha construído ali umas casas, havia muita gente da família. Era um ambiente muito engraçado. Era muito familiar e ainda hoje é.
Mas já não vive lá.
Não, mas a minha mãe vive. Vai agora sair porque vai para Arouca definitivamente.
Desde sempre rodeado de médicos, foi naturalmente inevitável ter seguido essa via ou sentiu alguma pressão?
Que tivesse tido consciência, do lado dos meus pais seguramente que não houve, do lado dos meus avós provavelmente terá havido, subliminar. Mas repare que do lado da minha mãe eram todos clínicos: o meu bisavô foi clínico, o meu tio era um excelente clínico. Do lado do meu pai não. O meu avô era médico em Arouca, como o pai dele já tinha sido, mas ele gostava era de Arqueologia e Etnografia. Portanto, foi para Medicina só para sobreviver. Foi ele que ajudou a construir o Museu de Arte Sacra de Arouca. O meu pai nunca foi clínico. Era bioquímico. Onde quero chegar é que a Medicina para nós não significava clínica, significava trabalhar ou em laboratórios ou a fazer investigação. Não tínhamos pressão para ser médicos no sentido verdadeiro da palavra.
Mas quando é que percebeu exatamente que queria seguir o caminho da Medicina?
Tinha a certeza que ia para a Faculdade de Medicina porque não tinha alternativa. Depois quando cheguei a Medicina era muito bom aluno, mas gostava muito mais de estudar as doenças do que de ver doentes. Percebi também que não queria ser investigador fundamental, não queria fazer só investigação desligada da Medicina. A patologia, o diagnóstico do cancro veio para mim naturalmente. Depois o professor da cadeira era muito bom, era um dos melhores que tive — o professor Daniel Serrão — e nós somos muito influenciados naquelas idades pelos professores.
Nunca viu um doente?
Nunca vi doente nenhum. Como aluno não via porque me escondia atrás dos outros, e como médico fui desde o princípio para patologia. É que a clínica tem muito de bom senso, de arriscar, de incerteza, a maior parte das coisas não é grave e eu teria tendência para achar que é tudo grave porque os casos que me chegam são todos graves. Lá em minha casa os meus filhos, dois deles são médicos, e quem sempre os viu foi a minha mulher que é médica. Nunca vi os meus filhos, nunca dei uma injeção num filho meu. De resto, dei uma injeção uma vez num indivíduo, como aluno, e acabou.
Mas não é porque não gosta de lidar com pessoas.
Não. Quando comecei a estudar os hospitais públicos eram hospitais que tinham gente com muitas carências, metia muita pena saber que aqueles doentes que tinham tido uma pneumonia voltavam para casa e iam ter outra, percebe? Tive sempre muita pena dos doentes.
Diz que o diagnóstico do cancro surge como algo natural, mas já li que o que gosta mesmo é de dar aulas.
É, de trabalhar com alunos, com médicos, com internos de patologia. Alunos de escolas primárias ou secundárias. Adoro mesmo. Vou falar-lhes sobre saúde e doença, comportamentos, genes, de onde vem a espécie humana, porque é que a gente é assim, para onde vamos. Não discuto cancro [nas escolas primárias e secundárias]. Mas com internos de patologia, sim. Quando fui presidente da Sociedade Europeia de Patologia criei muitas escolas de patologia nos países do Leste Europeu, na Turquia, na Roménia, na Bulgária e temos uma agora na República Checa. Se calhar fui quem mais criou escolas de patologia na Europa. Mas tem razão no que diz, o que gosto mesmo de fazer é de estar a conversar, a ensinar e a aprender com tipos que estão de alguma maneira interessados em ir mais longe. Esta ideia de que o professor é o tipo que ajuda a ir mais longe dá-me muito prazer, em qualquer circunstância. Sinto-me útil. Faço isto nos sítios mais reconditos que possa imaginar.
Foi sempre aluno de mérito, como é que vê os alunos de hoje?
São muito diferentes. Sabem muito, são bem educados e são muito estudiosos. Na Medicina têm uma capacidade de memorização extraordinária e são muito curiosos. Mas para mim têm dois defeitos: têm pouco treino de conversar portanto os nossos alunos muito bons nos exames orais vêem-se à rasca. São muito pobres de vocabulário. E para mim são muito infantis. São excessivamente centrados num assunto. Na minha geração tínhamos muito mais interesses.
Que interesses?
Ia imenso ao cinema, lia todos os jornais, portugueses e estrangeiros, interessava-me imenso pelo que se passava.
Tinha uma vida social preenchida.
Vida social não porque fui sempre um bocado bicho do buraco, mas tínhamos muita curiosidade pelo que se passava à nossa volta. Participávamos em tertúlias. E ainda hoje fazemos essas tertúlias. Por exemplo, tenho uma tertúlia com psiquiatras que também tem muita graça. O Porto nisso é diferente de Lisboa, em Arouca também tinha, no Bombarral também tinha. E isto é que acho que falta hoje. Sinto que se falar de uma coisa que veio no jornal aos meus alunos eles não sabem. Depois têm interesses muito específicos, veja, podem ser muito bons em surf, mas nós éramos omnívoros. O cinema era uma arte extraordinária. Pertencíamos aos cineclubes.
Tinham tempo para tudo?
Tínhamos. Havia muito tempo. Por exemplo, eu que estudava muito até me dava ao luxo de estudar pouco no tempo dos exames. Ia às aulas todas, tomava nota, fazia uma sebenta que se policopiava e era distribuída. As sebentas do Sobrinho Simões eram muito cobiçadas e há até uma história que envolve um professor meu, meu amigo, um tipo fora de série. Um dia disse ao meu pai: “Sabe, Sobrinho, hoje estava a fazer exame a um tipo e ele disse qualquer coisa e eu disse está errado e ele disse não está porque é assim que está na sebenta do Manuel Sobrinho” (Risos). Tinha-me tornado uma autoridade naquele meu pequeno mundo. Mas só para lhe dizer que isso me dava muito mais tempo.
Tinha outros hobbies?
Lia muito. O resto foram tentativas frustradas de ser desportista onde fui sempre um falhanço absoluto. Mas coisas épicas. Joguei no futebol de amadores do Porto, num clube que se chamava Merengues, e os Merengues era o clube do Orpheu e eles nunca me deixaram jogar até que um dia faltaram tantos que pude entrar para defesa direito. E dei tanta barraca que nunca mais me deixaram jogar (risos). Passei pelo campeonato de amadores do Porto tendo jogado uma vez. Foi horrível, percebe? Porque os tipos do Merengues eram bons.
Já patologista, como surgiu a ideia de criar o IPATIMUP?
Surgiu porque nós percebíamos que queríamos fazer investigação em Medicina, percebíamos que queríamos ser universitários e que a universidade era uma chatice de burocracia. Juntámo-nos várias pessoas do mundo da Universidade do Porto, Faculdade de Medicina, quase tudo patologistas, e fizemos uma associação privada sem fins lucrativos. Na altura o reitor era o professor Alberto Amaral e deixou-nos fazer.
No final da década de 80.
Em 1989 assinámos o protocolo de criação e fizemos este edifício em 1996. Tivemos a sorte de apanhar o reitor que era o professor Alberto Amaral e o ministro da Ciência que era o Zé Mariano Gago, uma conjugação espantosa. Aqui eram os lameiros da Asprela. Era perigoso vir aqui porque andavam a caçar codornizes que tinham o voo baixo. Era perto de minha casa, vinha aqui a pé. Percebemos que tínhamos a hipótese de fazer tudo e deixaram-nos fazer e ajudaram-nos. Já há bocado disse que tive uma sorte extraordinária com a minha infância. Tenho tido sorte na vida como o diabo, percebe? Sorte. Esta coisa de termos podido fazer um instituto ligado à Universidade do Porto, que tinha todas as vantagens da Universidade sem ter os seus defeitos, é uma sorte extraordinária. E nunca mais se voltou a criar em Portugal. Também estávamos muito em baixo. Não tínhamos ciência, tínhamos deficiências muito grandes. Depois a gente tinha uma coisa muito boa: força.
Dedicou a sua vida a compreender o cancro. É frustrante?
Não. É um desafio extraordinário.
Dá luta.
Dá imensa luta. E dá sempre novas pistas. Houve muitos cancros que percebemos e estamos já a ter resultados muito bons em muitos cancros. O que é muito interessante no cancro, e que dá luta, é que a palavra é infeliz porque é como se fosse uma só coisa e são muitas e depois a gente quando estuda um e aprende qualquer coisa desse vai ver e há mais um ou dois sítios onde pode aplicar. E faz uma espécie de jogo de articulações muito engraçado. É um desafio engraçadíssimo porque o cancro é nosso. Não é uma doença provocada por bichos. Alguns são, mas mesmo quando são provocados por vírus ou bactérias são através das nossas próprias células. É uma metáfora de uma coisa que cresce dentro de nós, em competição connosco.
Uma competição desleal.
É desleal no caso dos cancros que têm sucesso e nos põem a vida em risco, mas antes rebentámos – se isso lhe dá alguma satisfação – muitos mais. Todos os dias temos células malignas e destruímo-las. Todos os dias, toda a gente. E portanto as tentativas de criar cancros, pela instabilidade genética, são permanentes e acontecem milhares de vezes ao longo da nossa vida e a gente vai-se vendo livres deles. Portanto o cancro que vemos, que nos assusta, é o cancro avançado, é a ponta do iceberg. Por baixo disso há uma quantidade enorme de cancros que a gente destrói. Como se fosse uma coisa intrínseca a nós e é por isso, de resto, que aumenta nos velhinhos, como eu, porque deixamos de ter os mecanismos de reparação. Temos mecanismos de reparação permanentes e com a idade ficam mais frágeis.
Há 40 anos a lidar com este assunto. Criou imunidade? Ou o cancro ainda lhe mete medo?
Muito medo. Eu sou medroso. No limite a razão pela qual não quis ser clínico é porque tenho medo das doenças.
É hipocondríaco?
Não. Tenho medo das doenças enquanto destruidoras da pessoa. Tenho medo de ter cancro. Não tenho medo de cair de um avião, porque sei que não depende de mim, que se lixe, é muito raro. Do cancro tenho. E tenho porque sei que curamos ou controlamos mais de 60% já dos avançados, mas há 40% que não controlamos e que mais cedo ou mais tarde podem dar chatices. E se tivermos um desses não é um problema de força de vontade, é um problema de sorte. Temos de ter muita ternura para com as pessoas que estão a sofrer com cancro que não está a ser controlável porque não é porque elas não tiveram força de vontade é porque tiveram pouca sorte e há alguns que nem sabemos bem tratar. Tenho muito medo de ter isso. Medo mesmo. Noutro dia tive uma suspeita que depois não era coisíssima nenhuma, era outra coisa culpa minha que não tinha dito ao médico, mas pensei que podia ter e fiquei de uma tristeza e depressão assustadora, de medo. Medo.
Precisamente talvez por fazer tantos diagnósticos que dão positivo.
Claro. Mas, repare, trabalho na tiróide. Fiz também cancro do estômago mas havia aqui gente melhor e desapareci. Tenho quase cinco ou seis pessoas muito melhores que eu, só se fosse burro. Há pessoas que vieram depois de nós, que aprenderam connosco, já têm ali cinco anos que ganharam e a ciência se desenvolveu. Se não forem burros e se estudarem muito são melhores que nós. E é bestial, não tenha dúvida. É uma alegria.
Não fica incomodado com isso? Por lhe passarem?
Não. Um professor vive do sucesso dos tipos que ensinou.
Há professores que não dão mais de 18…
Mas isso são professores que não vêem mais os alunos. Eu continuo a ver os meus. Tenho aí um chinês fora de série e brasileiros fora de série, que vieram connosco, ficaram por cá, e são dos melhores do mundo.
Mas voltemos ao cancro e ao medo.
Sou medroso. Tenho medo do escuro, tenho medo do metro de Nova Iorque. Não entro. Tenho medo de viajar sozinho, odeio viajar sozinho. Tenho medo de ser assaltado. Mas já fui assaltado no Brasil com este relógio, com um amigo meu, às 9h30 na praia do Hotel Sheraton, na Baía. Fomos assaltados e os tipos pediram tudo: dinheiro, fios, relógios, e mostro-lhe este relógio e ele diz: “Esse não quero” (risos). O ladrão era esquisito.
Mas o que o assusta precisamente? É o medo da morte ou o medo de ficar sem saúde?
Deve ser as duas coisas. Tenho medo que se tiver uma doença grave que me torne não afetivo. Isso para mim é um sofrimento. As relações com os meus filhos, com os meus netos. O meu medo é um medo da morte, mas uma morte com sofrimento e tenho medo de antes de morrer deixar de ser eu ou ser menos eu.
E perder capacidades.
Isso para mim, que sou orgulhoso, seria mortal. Tive amigos que tiveram tumores cerebrais e começaram a ter dificuldades de articulação. É terrível. Não tenho medo, tenho terror. E acho que é uma prova de inteligência. Estamos aqui os três porque somos filhos dos que tinham medo. Os outros já morreram. Nós desenvolvemo-nos porque éramos muito eficientes e uma das coisas que dava eficiência era o medo, a dor. Quem não tem dor morre.
Disse que um dos medos era perder capacidade de transmitir afetos aos netos, aos filhos. Conseguiu sempre transmitir-lhes afeto com tantas viagens, aulas, investigação? Como foi essa gestão?
Nunca fui um pai ausente. Fui sempre presente, mas pouco atento. A minha mulher é médica e no dia em que estava de urgência, tínhamos três filhos, eu tratava deles. Ia buscar os miúdos ao colégio ou ao infantário — às vezes esquecia-me –, mudava fralda aos três, dava-lhes banho e fazia-lhes jantar, sempre simples, sem sopa, muita coca-cola, muito puré rápido, salsichas, ovos estrelados que eles adoravam. Adoravam o dia com o pai. E nas férias eu e a minha mulher dissociávamos as férias: ela fazia um mês com as crianças e eu ia ao fim de semana e eu fazia um mês com as crianças e ela ia ao fim de semana, para termos os dois meses de férias.
Para que as crianças tivessem com quem ficar durante todo o período de férias?
Para que estivessem os dois meses sem ficar no Porto. Ficavam em Âncora ou Arouca e alternávamos nós. E tinha graça. Fui sempre um pai presente mas, e isso eles acusam-me, enquanto eram pequeninos não lhes achava graça nenhuma, não acho graça a nenhuma criança pequena. Mas depois fui sempre um pai presente e a certa altura a minha mulher deixou de achar graça ir trabalhar comigo lá para fora, porque estava sempre a trabalhar e sempre preocupado, e passei a levar os meus filhos. Tenho ali uns seis, sete anos, em que ando com os meus filhos por todo o mundo que é das coisas mais extraordinárias que possa imaginar, uma coisa do outro mundo. Mas já estavam grandes. Agora, se fosse o juízo final, e tenho muita sorte de ter uma família bestial, o peso relativo do meu esforço e do da minha mulher para esta família é para aí um oitavo, sete oitavos.
Diz isso a rir-se mas sente algum peso na consciência? Arrepende-se?
Não me arrependo, não. Cada um de nós é como é. E se calhar se tivesse tentado fazer outras coisas tornava-me mais chato. Funcionou muitíssimo bem. Mas sabe o que é que me chateia? Por exemplo, não me lembro de algumas coisas que devia lembrar. Não me lembro bem de como era a minha casa na Pasteleira, que é estranhíssimo. Se tinha de dar-lhes banho, como é que não me lembro? E tenho pena. Das histórias deles lembro-me se tiver fotografias e reconstruo.
Mas estava sempre presente-ausente?
Estava sempre a pensar noutra coisa…
Então nunca aproveitou a 100% aqueles momentos.
Aproveitei quando ia com eles para o estrangeiro. Pude gozar com eles momentos que nao tinha gozado. Ou nas férias. Há aí um elemento de recuperar tempo perdido.
Mas nunca fizeram um período de férias todos juntos.
Só quando ficaram maiores. Mas nesse período das férias com os rapazes e a minha filha, levava sete ou oito amigos para Âncora e os miúdos lembram-se disso. Se tivesse pessoas a doutorarem-se comigo iam também para lá e trabalhavam comigo. Mas não me lembro bem deles [dos filhos] como devia lembrar-me. Com 30 anos, estive na Noruega com eles um ano. A Gu deixou de trabalhar e foi uma fase espantosa. Fiz lá o pós-doc. Eles andavam no Colégio Francês e fomos chamados porque batiam nos meninos todos: não percebiam o que eles diziam. (risos) Depois lá começaram a falar francês e ganharam medalhas e tudo, mas a fase inicial foi muito difícil. A Joaninha ainda fazia xixi nas calças portanto não podia ir para o colégio, a Gu ficou com ela em casa, foi um espanto. Um ano assim. E eu não me lembro tanto quanto devia.
É um workaholic.
Sou, típico. E tenho pena disso. Tenho pena porque acho que podia lembrar-me mais. Se tiver que escrever uma coisa sobre eles e fizer um esforço aquilo vem. O mesmo com os meus netos. Adoro os meus netos. Quando a minha neta mais velha, a Mariana, que é bailarina e é um espanto, nasceu eu percebi que ia morrer. Nunca tinha percebido, o que é uma coisa estúpida. Um tipo que fazia autópsias nunca tinha percebido que ia morrer.
Mas porquê só naquele momento?
Não sei. Foi um problema geracional, não sei. Foi há 11 anos. Mas não foi trágico, nem de morte súbita, não. E repare que fiz autópsias durante anos e vi morrer o meu pai.
Viu?
Sim. Ele teve um cancro do pulmão. Tive de tratar aquilo bem. O meu pai tinha 71 anos e eu 40.
Um período difícil, calculo.
Muito difícil. E percebi que ele ia morrer.
E ele também?
Ele não porque o aldrabei, explicando que tinha um cancro tratável. Começámos a fazer radioterapia a fingir e aguentou-se muito bem.
Porque optou por mentir ao seu pai naquela hora?
Ele tinha um cancro, e metástases, que sabíamos que não era curável. Mas era possível tirar as dores. Menti porque se dissesse que tipo de cancro era, ele como médico saberia que o cancro era incurável e eu tinha medo que ele não lutasse. Inventei um cancro tratável, dos velhos, ganhando credibilidade. Andámos quatro ou cinco meses a fazer radioterapia e ficou sem dores nenhumas. Foi muito difícil porque ele sofria muito a entrar para a máquina da radioterapia. Só interrompemos o tratamento quando ele perdeu a consciência e o próprio médico achou que já não havia vantagens. Ele continuava a acreditar. Os doentes agarram-se a tudo e às tantas até eu me agarrei.
Ele sendo médico nunca desconfiou?
Não, nem tendo visto o raio-X. Os doentes querem acreditar. Adorava o meu pai, o tipo era fora de série, e percebi que ele ia morrer. Às tantas queremos é que não sofram. Os miúdos foram para fora do Porto de férias e nós ficámos. É muito duro ver morrer uma pessoa de quem gostamos muito. Agora percebo que, em relação a pessoas que a gente adora, se calhar a eutanásia é uma hipótese a considerar. Mas só num registo muito afetivo é que se pode pensar isso. É muito complicado. É muito difícil generalizar.
E de que forma o marcou?
Aí percebi que as pessoas morriam, mas não percebi que ia morrer. Depois só quando a minha neta nasce é que percebo. Depois os outros foram nascendo, são seis, o mais novo tem quatro anos. Dou aulas em Paris todos os anos: já lá fui com os meus filhos solteiros, casados sem filhos e agora já vou com os netos e este ano foi a primeira vez que o mais novo, que tem quatro anos, foi connosco. Teve de se levar carrinho e desta parte já me lembro. É mais recente e já estou mais velhinho.
Tem a cabeça mais liberta…
E se calhar percebi que já não vale a pena correr tanto.
Passou a vida a correr?
Claro.
Os seus dias continuam cheios?
Agora pior. Porque estou a correr aquela coisa do fim. Levo uma vida que até é envergonhante. Começo muito cedo e acabo muito tarde. Chego a casa às 20h30 e levo os papéis. Agora tiraram o pimpim do tablet e a minha mulher irrita-se menos. E estou sempre a correr de um lado para o outro. Quando mete Lisboa ainda pior.
É pressa por saber que está a chegar a reforma?
Acho que é isso. Uma fuga em frente. Por exemplo, não dei a última aula porque vou continuar por aí. Podia começar o curso no próximo ano mas depois tinha de interromper e chateava toda a gente, por isso não quis. Teve graça porque os alunos sabiam e fizeram uma festinha com um bolo engraçadíssimo, de gozo. Tive lágrima ao canto do olho. Choro com muita facilidade.
Mas chora de tristeza, alegria?
Choro muito de alegria, por exemplo com reencontros. Mete-me muita impressão um barco a partir, mas também os reencontros dos filmes, choro baba e ranho. Com os alunos, este ano, por exemplo, fizeram-me essa graça, uma festinha, leram-me uma coisa. Mas senti também pena. Custou-me no sentido em que não há volta para trás.
O que tem em mente para depois da reforma?
Vou continuar, provavelmente, aqui pelo IPATIMUP. Depois a Universidade provavelmente vai-me propor que fique professor emérito e quero ficar por causa dos doutoramentos e tal. Também gostava muito de continuar a ajudar no hospital.
Mas tem noção que a atividade vai abrandar.
Sim. E sobretudo não terei aquela coisa oficial dos alunos. Fazer exames…
E isso custa-lhe.
Custa-me muito. Sinto uma falta disso…
Mesmo que saiba que já deu muito e que pode ser o momento de se dedicar mais aos netos, à família.
Sim, mas não fui eu que decidi. Tem graça quando é o próprio a decidir. E atenção, a família também não acha graça. Já disseram: “Epah, o pai não vem cá para casa”. Aminha mulher diz: “Olhe, faça o que quiser mas cá em casa não fica”.
Mas porquê?
Porque devo ser um chato. Já viu o que é? Por exemplo, acumulo livros, acumulo tudo no meu escritório. De resto, como pode ver aqui, esta é a versão mais benigna que pode imaginar. No escritório de minha casa não se consegue entrar. E as pessoas têm medo que faça isso.
Também me disse antes da entrevista começar que tem mau feitio. Não diria, a julgar pelo sorriso constante.
É porque estou sempre a trabalhar. Se tiver de fazer uma coisa para o dia seguinte, sou insuportável. Sou um bicho de uma agressividade… porque sou muito perfecionista. Às vezes sou bruto. Os meus filhos estavam habituados, agora os meus netos às vezes assustam-se. O meu filho noutro dia disse-me: “Pai, tenha cuidado que a miúda ficou assustada”. Eu dei-lhe um berro porque ela estava a portar-se mal e ela ficou paralisada. (risos)
De que é que mais se orgulha na sua carreira profissional?
Dos tipos que comigo andaram para a frente. A minha parte deve ter sido menos do que penso porque depois inventamos muito. Aqui no serviço, aqui no IPATIMUP, cientistas, patologistas, médicos, alunos, que passaram por mim, por aqui, que foram fazer estágios, e depois os tipos no estrangeiro. Há sempre muita gente que hoje em dia desempenha papéis importantes na Europa e no Brasil.
Como é que recebeu a distinção, em 2015, de patologista mais influente do mundo?
Adorei, adorei. Tive uma felicidade que não faz ideia. A revista The Pathologist é digital e eu recebo em papel, mas chega-me tarde. Estavam a fazer este concurso há já cinco meses e não sabia. Telefona-me o tipo que fica em segundo, um patologista inglês, e diz: “Estou-te a telefonar para te dar os parabéns”. E aí percebi que tinha havido uma votação, que tinham escolhido 100 de todo o mundo e depois uma segunda votação e que tinha ganho. Fiquei felicíssimo. Atenção que gosto de receber prémios. Tenho vergonha depois das cerimónias, mas adoro receber. E adorei pela circunstância de ser um prémio internacional.
Mas foi o momento mais alto em termos de distinção?
Não. Para mim, de longe o que me deu mais orgulho foi o Prémio Pessoa, em 2002. Foi o Dr. Balsemão que me telefonou, no dia em que estava a ir para a China. Fiquei muito feliz porque tinha muita consideração pelas pessoas que tinham já ganho o Prémio Pessoa e geralmente não era para pessoas do Porto, nem era para pessoas da Saúde. Também adorei receber o Prémio Bordalo que foi dado ao grupo do Professor Sobrinho Simões. Atenção que o Prémio Bordalo só é dado a grupos em dança e deram-me a mim, o que é muito giro. E nesta coisa do mais influente também disseram isso: parte da minha influência é porque influenciei gente que depois construiu um círculo de influências. E no Ciência Viva também senti isso. A ideia que os prémios são para nós e para a nossa gente. Não perdemos nenhum bocado com isso. Ganhamos. Mas adorei o Pessoa. O Pessoa é o tipo que tinha uma coisa mais transversal.
Ao longo da entrevista disse várias vezes que houve tipos mais novos e que lhe passaram à frente. Disse várias vezes que há melhores. Mas o professor tem noção que é muito bom ou não?
No meu pequeno mundo, em tiróide, sou. Onde sou competitivo em termos internacionais é no diagnóstico e interpretação do cancro da tiróide que é um cancro pouquíssimo importante, felizmente não mata quase ninguém e que é um entre 20 cancros mais graves. Agora, eu ganho o prémio do Patologista mais influente do mundo não por causa da tiróide mas por ter treinado muita gente. Pela escola e pela ideia que temos uma responsabilidade social.
Como é que quer ser recordado?
Como professor de Medicina. Como um tipo que se bateu muito para que os alunos de Medicina e a Faculdade de Medicina e Universidade do Porto fossem melhores. Mais do que o patologista de tiróide e tenho muitos prémios no mundo da tiróide. Posso ser recordado como um tipo muito importante para diagnosticar bem o cancro da tiróide. So what? [E então?] Qualquer dia há-de haver um tipo a fazer melhor que eu. A ideia de ser recordado como professor é no limite até uma vaidade porque é a ideia que a gente é recordado pelo futuro e não pelo passado. Os tipos que ajudou a aprender, que ajudou a fazer uns truques, que ajudou a escrever uns papers.