Na bancada parlamentar socialista aguarda-se a discussão pública das medidas que o Governo anunciou para a habitação, para decidir se avança com mais projetos. Mas, dentro do grupo, os deputados da JS já pedem mais do lado da procura e há alguns socialistas com dúvidas sobre a capacidade da máquina do Estado em implementar algumas medidas, com os seus efeitos “perversos” e a velocidade dos resultados. Já sobre eventuais inconstitucionalidades há alguns avisos, mas argumenta-se com o que já existe na legislação nacional para sacudir esse peso do capote socialista.

Em janeiro, o líder socialista já tinha avisado o partido para a urgência de pôr reformas no terreno no primeiro trimestre e as medidas na habitação estavam entre as que pretendia. Costa tomou a dianteira nesta apresentação e ficará diretamente ligado ao seu sucesso ou insucesso. Essa parte da história ainda está por escrever e, no PS, teme-se que algumas medidas possam ser de difícil aplicação — entretanto terá a ministra da Habitação a explicar as medidas ao grupo parlamentar, em princípio na próxima semana.

No programa “Princípio da incerteza”, na CNN, a deputada socialista Alexandra Leitão elogiou a iniciativa do Governo, mas deixou uma “dúvida: a capacidade da máquina do Estado para levar a cabo este conjunto de medidas. É muito exigente para a máquina do Estado e esse é o grande desafio”. Não está sozinha e a mesma ideia foi ouvida pelo Observador junto de outros socialistas quando se refere em concreto a medida do arrendamento pelo Estado para, depois, subarrendar — com eventuais obras de reabilitação pelo meio.

“Não há máquina para a concretizar e os municípios não são criados do Governo”, comenta um socialista que mostra o mesmo receio. “Nem que contratasse todas as imobiliárias conseguia concretizar todas as medidas”, atira.

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Um alto quadro do partido aponta no mesmo sentido e diz que o que se está a fazer é a “recorrer ao Estado para que este cumpra funções que não está em condições de assumir“. Porquê? “Em primeiro lugar, o próprio Estado desconhece o seu próprio património e, quando conhece, tem dificuldade em promover a sua reabilitação”. “Este recurso excessivo ao Estado condena o programa à partida“, sentencia.

A mesma fonte ainda acrescenta um problema adicional. “A forma de comunicar estas medidas provocou inquietação no país. Alarmismo. Foi mal apresentado, sem estratégia, com medidas avulso e a reagir sob pressão, com uma certa leviandade”. O Governo “voltou a passar uma imagem de impreparação”, comenta a mesma fonte.

A forma de comunicação do plano já tinha sido apontada por outro socialista. No Facebook, Ascenso Simões escreveu que “há muito tempo que não via uma reforma tão mal comunicada.
Pior seria impossível. E do PS ninguém sabe o que dizer…”

O que fez Sócrates e o TC validou a pedido de Cavaco

Quanto ao arrendamento compulsivo, há no PS quem tema que ele possa esbarrar na “relação que os portugueses têm com a propriedade”. A medida tem levantado sobretudo dúvidas quanto à constitucionalidade e, no partido, Miguel Costa Matos, avisa, em declarações ao Observador que “o PS tem de ser o garante da Constituição. Quem fez os orçamentos inconstitucionais foi a direita”, reclama. Apesar de assumir que o “direito à habitação tem de ser protegido, tem de se ter cuidado”, alerta o líder da Juventude Socialista.

Mas também diz que a legislação nacional já conta com uma medida para forçar a reabilitação, expropriando proprietários quando não a promovem, “e nunca ninguém apontou inconstitucionalidade”. A alteração até veio de um Governo socialista, liderado por José Sócrates, que em 2009 implementou o novo regime jurídico da reabilitação urbana que previa a venda de casas forçada quando não reabilitadas. O então Presidente da República enviou a lei para o Tribunal Constitucional, por considerar que violava o direito à propriedade privada, mas os juízes do Palácio Ratton não viram fundamento para invocar a inconstitucionalidade.

Os socialistas viram-se, assim, para esse momento: “O Estado pode impor a venda forçada de imóveis não reabilitados, por exemplo? Pode e o Tribunal Constitucional já disse que pode”, aponta a deputada Isabel Moreira. Ao Observador, a eleita pelo PS afirma ainda que “o direito de propriedade privada é um direito com evidente natureza social e não tem, como nenhum direito fundamental, valor absoluto”.

“Teremos de ver a concretização da medida, mas em abstrato a Constituição não protege uma lógica de acumulação sem função (um uso açambarcador). O arrendamento forçado é menos intrusivo do que a venda forçada e esta já passou no TC”, argumenta.

“Temos de ter calma. Ler o normativo que vier em concreto. Perceber que é algo comum no direito comparado e, em face do que vier a ser o desenho concreto da lei, veremos. Sendo que não vejo obstáculo constitucional à partida”, acrescenta a constitucionalista e deputada da maioria.

Na área política do PS, o constitucionalista Vital Moreira levanta, no entanto, outro ponto, o do princípio da proporcionalidade. “Embora o direito à habitação (tal como os demais direitos sociais) seja exigível apenas ao Estado (em sentido amplo) e não aos proprietários privados, a sua realização por aquele pode, porém, justificar a restrição de direitos, liberdades e garantias de terceiros, como é o direito de propriedade e a liberdade contratual. Ponto é que se preencham os requisitos constitucionais da necessidade e da proporcionalidade das restrições em causa”.

E diz que o que é preciso saber é “se o mesmo objetivo — ou seja, a mobilização de habitações devolutas para o mercado de arrendamento — não poderia ser atingido por meios menos lesivos dos referidos direitos do que o arrendamento compulsivo ao Estado, designadamente através da penalização fiscal dessas situações e de incentivos fiscais ao arrendamento.”

“Quase todas as medidas têm efeitos perversos”, assume um alto quadro do partido que, no entanto, olha com bons olhos para o arrendamento compulsivo. “É moralmente aceitável”, diz, atirando uma analogia: “Se eu cultivar batatas e deitar tudo para o lixo, isso não é aceitável. Ter casas e não as arrendar não é aceitável.”

Uma forma de “evitar esses efeitos perversos é ter medidas para os compensar” e o Governo, afirma a mesma fonte, “jogou em todo o tabuleiro, foi muito abrangente”. Ainda que admita que o aumento da oferta habitacional que é pretendido com algumas das medidas, nomeadamente o arrendar para subarrendar ou o arrendamento compulsivo, “dê resultado mas só a médio/longo prazo“.

PS quer Estado a dar exemplo

Alexandra Leitão admite ao Observador que a questão da constitucionalidade seja “discutível”, mas pensa não existir problema. No comentário que fez na CNN quis, no entanto, focar noutro ponto: “A mobilização da habitação pública, edifícios públicos que estão fechados… O Estado deve ser o primeiro a dar o exemplo e mobilizá-lo para a habitação“.

“Temos de, uma vez por todas, mexer no património do Estado“, acrescenta um outro deputado do PS em conversa com o Observador sobre o pacote de medidas apresentado pelo Executivo.

E em matéria de constitucionalidade este também pode, de resto, ser um ponto importante para fazer prova da proporcionalidade da medida. “No teste da proporcionalidade temos de ver se a medida é adequada e necessária”, diz Isabel Moreira. “Não faria sentido que o Estado não disponibilizasse o edificado público — dando o exemplo — e começasse por exigir aos privados” que arrendassem propriedades, exemplifica a deputada.

“Os jovens não querem ser só arrendatários”, avisa JS

Além de todas as questões sobre o que existe, no PS há também algumas áreas já identificadas como pouco defendidas, no plano do Governo. O deputado e líder da JS, Miguel Costa Matos, elogia o que foi posto em cima da mesa para responder à oferta — “o plano é ambicioso do lado da oferta” –, mas também aponta ao que falta do ponto de vista da procura.

Miguel Costa Matos: “Queremos procurar que este pacote possa ter novas medidas à habitação jovem”

E fala em duas medidas que considera ficarem aquém: os subsídios às rendas são apenas para contratos que terminam agora e as medidas para créditos à habitação são apenas para os que já existem. “Não terá impacto nos jovens que querem sair da casa dos pais”, argumenta.

Assim, uma das medidas que defende são incentivos à compra de habitação para os jovens, como a isenção do IMT ou empréstimos a 100% para compra de casa por jovens — como já existiram. “Não podemos apoiar quem já tem casa e deixar de fora quem não consegue entrar nesse mercado, os outsiders“.

“O Governo tem resistido porque a linha é de incentivar o arrendamento. É uma opção legítima, mas deixa de fora grande parte do mercado de habitação”, diz o deputado, que insiste que “os jovens não querem ser apenas arrendatários” e que este é um importante no “combate à desigualdade”.

Já no arrendamento, defende que “o subsídio de renda pode ser mais generoso” e que se cumpra o que está no programa do Governo sobre o Porta65 (o sistema de apoio financeiro ao arrendamento por jovens). A intenção é que todos os que sejam elegíveis, possam receber esse apoio e não apenas quem é escolhido. O socialista vai aguardar o período de discussão pública e tentar influenciar a direção parlamentar para que avance com projetos que possam acrescentar ao programa já apresentado pelo Governo.