O vídeo que mostra os momentos que se seguem a um alegado episódio de insultos racistas contra os filhos dos atores brasileiros Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso apenas revela uma parte: a parte em que a mãe das crianças confronta uma mulher portuguesa de 57 anos que terá insultado Titi e Bless, de 9 e 7 anos . O que aconteceu antes e depois não ficou registado pelo menos neste vídeo. Na investigação aberta apenas as testemunhas podem esclarecer ao certo o que se passou — assim como as imagens de videovigilância que o restaurante de praia da Costa da Caparica onde tudo aconteceu já se disponibilizou a facultar.
Face às pontas soltas que existem, algumas dúvidas ainda subsistem. Por exemplo, se a suspeita dos insultos racistas estava alcoolizada, como anunciou a GNR, a responsabilidade no crime poderá ser diminuída? As pessoas que estavam no restaurante podiam ter retido a mulher de 57 anos até à chegada da polícia? E a mãe das crianças pode ser alvo de uma queixa por ter batido e cuspido na suspeita — como a própria admitiu ter feito numa entrevista à TV Globo?
Mulher que insultou crianças estava alcoolizada, mas o álcool só atenua crimes em casos extremos
No final de tarde de sábado, 30 de julho, os atores Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso estavam no restaurante de praia Clássico Beach Club, na Costa da Caparica quando “uma mulher branca, que passava em frente ao restaurante”, terá proferido insultos racistas não só contra os filhos dos atores, mas também contra “uma família de turistas angolanos que estavam no local — cerca de 15 pessoas negras”, segundo se lê no comunicado emitido pela família. “Pretos imundos”, “voltem para África”, “voltem para o Brasil”, “Portugal não é lugar para vocês”, terão sido alguns dos insultos proferidos, pelo que adiantou a atriz numa entrevista ao programa “Fantástico” da TV Globo.
A suspeita acabou por ser detida pela Guarda Nacional Republicana, tendo mesmo ofendido os militares que se deslocaram ao restaurante — e que rapidamente perceberam que a mulher se encontrava alcoolizada, segundo confirmou ao Observador fonte desta força policial militarizada.
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O facto de estar alcoolizada muda alguma coisa na responsabilidade que terá no crime? À partida, não. Para uma pena ser atenuada ou uma pessoa ser declarada inimputável, teria de se provar que não só estava num estado de embriaguez extremo, que não a permitia avaliar as suas ações ou sequer lembrar-se delas, mas também que tinha ficado alcoolizada involuntariamente — por exemplo, sendo enganada com a bebida que estava a consumir.
“Se ficar provado que a pessoa bebeu e ficou [involuntariamente] em condições tais que ficou incapacitada de avaliar as consequências da conduta, pode haver atenuação da pena e, no limite, ser declarada inimputável para aquele ato, naquele momento”, explicou um juiz, que preferiu não se identificar, ao Observador, acrescentando: “Mas há uma norma que diz que, se a pessoa se colocar voluntariamente na situação de embriaguez e vier a cometer um crime nessa situação, há a possibilidade de ser condenada ainda assim”.
“Pode haver uma situação de incapacidade acidental que determine a inimputabilidade”, reforça o advogado Magalhães e Silva, lembrando que, no entanto, “é preciso saber em que medida ou não a pessoa contribuiu para o alcoolismo, para se saber se atenua ou agrava a responsabilidade”. Assim, o álcool não é uma atenuante nos casos em que as pessoas beberam, mas “sabem o que fizeram”. Ou seja, se “encontram uma explicação para aquilo, em princípio estavam com consciência do que estavam a fazer, apesar de terem a capacidade de avaliação de ilicitude de alguma maneira diminuída”, explica o mesmo juiz.
Caso contrário, o crime de condução sob efeito do álcool não faria sentido: “Não há ninguém que cometa esse crime sem estar alcoolizado. Muitos arguidos vêm evocar que estavam sob efeito de álcool, que não avaliaram bem. Os tribunais não são sensíveis a essa argumentação, porque o que está em causa é que a pessoa que sabe que vai conduzir, não tem de beber”, adianta o magistrado.
Caberá ao juiz ou juíza “avaliar se a pessoa, pese embora a embriaguez, ainda tinha condições de evitar o comportamento”, explica ainda. Neste caso, o auto elaborado pela GNR vai ser uma importante prova para o tribunal: “Uma coisa é a pessoa ter dito aquelas palavras e depois ter sido repreendida e não ter sequer reagido ou não estar dizer coisa com coisa. Se o auto dizer que tentaram falar com a senhora e ela não conseguia responder, esses elementos serão tidos em conta para o tribunal. Outra coisa diferente é ter um diálogo com alguém com algum sentido”.
“Qualquer pessoa” pode deter outra em casos de flagrante delito até a polícia chegar?
A mulher de 57 anos acabou por ficar no restaurante na Costa da Caparica até à chegada da polícia. A lei prevê que “qualquer pessoa” possa deter outra, em flagrante delito, se as autoridades não estiverem presentes, nem puderem ser chamadas “em tempo útil”, como se lê no artigo 255.º do Código Penal. Mas não em todos os casos: é preciso que o crime em questão seja punível com pena de prisão e que não dependa de acusação particular. Neste caso em concreto a retenção de um cidadão até à chegada da polícia não é legal.
Por um lado, no episódio de insultos racistas da Costa da Caparica, poderão estar em causa crimes — discriminação racial e injúrias — que preveem uma pena de prisão. Por outro, esses crimes dependem de uma acusação particular, ou seja, têm de depender da vontade da vítima. E, por isso, neste caso, a mulher não podia ser detida por “qualquer pessoa” até à chegada da polícia.
Mas o que se considera ser uma detenção de alguém? “Tudo depende do que fizeram” para manter a mulher de 57 anos no restaurante — pelo que se vê no vídeo, não terá configurado uma detenção. “Eu até posso tocar-lhe no ombro e dizer: ‘Sente-se aí. Não vai a lado nenhum até a polícia chegar’. Isto não é suficiente para dizer que há ali detenção“, explica o mesmo juiz ao Observador. Mas, se a pessoa tiver de ser forçada ou amarrada, pode configurar um crime de ofensas corporais, coação ou até privação de liberdade — crimes cuja investigação dependem sempre da queixa da vítima.
Suspeita pode apresentar queixa porque atriz lhe deu um estalo? Sim, mas tribunal pode entender que mãe das crianças apenas reagiu
Numa entrevista que os atores brasileiros deram ao programa “Fantástico” da TV Globo, a atriz Giovanna Ewbank admitiu que deu um estalo à mulher de 57 anos que antes teria proferido insultos racistas:
— Houve algum confronto físico? Fala-se que bateu na moça, que deu um tapa na mulher racista. Isso ocorreu? — questiona a entrevistadora.
— Ocorreu — responderam os atores em uníssono.
— A verdade é que ela não agrediu. A minha mulher reagiu. Não confunda a reação do oprimido com a ação do opressor — rematou o ator Bruno Gagliasso.
Por causa desta reação, a atriz Giovanna Ewbank pode incorrer num crime de ofensas corporais? “Sem queixa, não se pode abrir inquérito. A outra senhora tem de se queixar, mesmo que a atriz tenha vindo para a televisão admitir isso”, explicou o juiz ao Observador. No entanto, “há uma figura no Código Penal que permite desculpar quando há retorsão, ou seja, há dispensa da pena quando é uma mera retorsão”, adianta o mesmo juiz. No ponto 3 do artigo 143.º do Código Penal — referente ao crime de ofensa à integridade física simples — lê-se que “o tribunal pode dispensar de pena quando o agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor”. Portanto, tal como Bruno Gagliasso afirmou, os juízes podem entender que a mãe das crianças apenas reagiu ao crime de que os filhos terão sido alvo.