Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Esta é uma daquelas ideias que prevalece no debate público: o Serviço Nacional de Saúde (SNS) português está entre os melhores do mundo, se não for mesmo o melhor do mundo. Dito assim, soa logo a exagero. E, de facto, é. Mas, em bom rigor, esta percepção acerca do SNS não vive apenas em debates televisivos, em discursos políticos mais inflamados ou em alguns elogios dirigidos a António Arnaut, o falecido fundador do SNS. São, por vezes, os próprios agentes do sector da saúde a disseminar esta percepção – como fez, há tempos, o antigo bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, em artigo de opinião no Público, onde apresentava precisamente a tese de que tínhamos o melhor serviço nacional de saúde do mundo.
Para sustentar esta ideia, José Manuel Silva apresentou algumas comparações entre países conhecidos por terem bons sistemas de saúde e os resultados que alcançavam, medidos em indicadores de saúde, e comparou com Portugal. Comparou, por exemplo, a relação entre a esperança de vida média à nascença, que nos diz quantos anos viverá, em média, uma pessoa que nasça hoje, e a despesa em saúde, o que dá uma possível métrica da relação custo-benefício dos sistemas de saúde. Para ilustrar essa dicotomia usou o caso da Suíça: pese embora a Suíça registar melhores resultados na esperança de vida média à nascença (83 anos contra 81.2 em Portugal), fá-lo a um custo acrescido, dado que o sistema português custa cerca de 2.514 dólares per capita, enquanto o suíço custa quase o triplo, cerca de 6.325 dólares per capita (valores ajustados para os diferentes custos de vida). Particularizando na esperança de vida com saúde aos 65 anos, o antigo bastonário refere também que Portugal está acima da média da OCDE, da Holanda, da Alemanha, e só apenas ligeiramente abaixo da Suíça.
Nesse mesmo artigo, José Manuel Silva evidencia também a superioridade do sistema português no que concerne a outro indicador de saúde muito relevante, a mortalidade infantil. Nesse indicador, Portugal alcança um número mais baixo (2,9 por 1000 crianças/ano) do que a Suíça (3,3 por 1000 crianças/ano) ou do que a Holanda (4,0 por 1000 crianças/ano), o que é inegavelmente positivo, pois indica que menos crianças estão a morrer. Com base nestes dados conclui “que, até à imposição dos excessivos cortes no SNS, cujo impacto negativo nestes indicadores poderá fazer-se sentir nos próximos anos, Portugal tinha/tem o melhor SNS do mundo, na relação acessibilidade/qualidade/custo per capita. Devendo ainda melhorar, naturalmente”.
Ora, a veracidade dos dados é indelével, mas a hipótese construída sobre os mesmos é questionável. Afinal, Portugal, com os seus parcos recursos e historicamente na cauda da Europa em quase todos os indicadores económicos e sociais, havia então encontrado uma receita que lhe teria permitido bater todos os outros países, incluindo aqueles que são manifestamente mais eficientes do que nós em vários sectores? À semelhança de todas as teorias que são demasiado boas para serem verdade, a hipótese levantada é mesmo demasiado boa para ser verdade. Como a seguir veremos, Portugal tem um bom SNS, mas está longe, por vezes muito longe, de ter o melhor SNS do mundo.
O que nos dizem os indicadores de saúde?
Comecemos pela esperança de vida. Desde 1900 que a esperança de vida média global mais do que duplicou, aproximando-se dos 70 anos. No caso dos países desenvolvidos, onde se inclui Portugal, já ultrapassou mesmo os 80 anos. O impacto desta evolução não é de somenos importância: se, em 1841, uma criança de 5 anos podia esperar viver até aos 55, uma criança que tenha hoje 5 deverá viver até aos 82.
A nível europeu, Portugal está perfeitamente em linha com os valores alcançados por países ocidentais (esperança de vida média combinada, homens e mulheres, de 81.2 anos), e ligeiramente atrás de outros países mediterrânicos, como Espanha, França ou Itália (83, 82.4 e 82.6 anos, respectivamente). A nível mundial, Portugal aparece em 21.º lugar, atrás de quase todos os países desenvolvidos, superando apenas a Alemanha, Grécia, Eslovénia ou Dinamarca. Em 1.º lugar está o Japão, seguido da Suíça.
Um outro indicador também usado para comparar sistemas de saúde é a mortalidade infantil. Em 2015, Portugal registava 2.9 óbitos por 1000 crianças, sendo que esse valor aumentou em 2016, para 3.2 óbitos, e voltou a cair em 2017, fixando-se em 2.6 óbitos por 1000 crianças. Este valor compara bem com a maior parte dos países da OCDE, estando, inclusivamente, abaixo da mortalidade registada em países como a Alemanha, Holanda, Suíça ou Dinamarca, assim como abaixo da média de todos os países da OCDE (35 países) e abaixo da média dos países desenvolvidos.
Finalmente, um outro indicador frequentemente analisado para avaliar os resultados produzidos pelo sistema de saúde é a esperança de vida aos 65 anos, isto é, quantos anos mais é que, em média, a pessoa viverá a partir dos 65 anos. O país no topo da lista é, novamente, o Japão, que no caso das mulheres chega aos 24 anos de vida e no caso dos homens aos 19.5 (refira-se, a despropósito, que a esperança de vida parece ser imune à igualdade de género). Portugal figura bem na comparação internacional, com 21.7 anos para as mulheres e 18 para os homens, atrás de países como a Suíça, Espanha, França ou Itália.
E quanto nos custa esta saúde?
Quando tentamos aferir qual é o melhor sistema de saúde do mundo não o fazemos de forma absoluta, isto é, olhando apenas para aquilo que ele consegue produzir. Melhor, neste contexto, significa mais eficiente, no sentido de eficiência económica: dado um conjunto de recursos (humanos e físicos) e de tecnologias, o que é o melhor que conseguimos fazer? Ou, de forma inversa, para atingirmos um determinado objectivo em termos de esperança de vida ou de mortalidade, qual é a combinação mínima de recursos de que necessitamos?
Significa isto que, para avaliarmos se um sistema de saúde é eficiente, e desta forma seriarmos os países, precisamos de olhar não apenas para os indicadores de saúde, isto é, aquilo que o sistema de saúde produz, mas também para o seu custo. Entre dois países que atinjam rigorosamente os mesmos resultados, aquele que usar menos recursos é mais eficiente, logo melhor.
O sistema de saúde português (público e privado) não é, de todo, um sistema de saúde caro, pelo menos quando comparado com os sistemas de saúde dos restantes países desenvolvidos. Com efeito, em valores per capita e já ajustados aos diferentes custos de vida, Portugal regista um custo anual de 2.423 euros, o que fica bem abaixo da média da OCDE a 35, que regista 3.554 euros. Com a excepção da Itália e da Espanha, fica mesmo abaixo de todos os países da Europa ocidental. Este valor engloba os salários de todos os profissionais de saúde, custos com medicamentos, exames e diagnósticos, não incluindo apenas as despesas de capital, como investimentos em novas unidades hospitalares, por exemplo.
Estes dados não reflectem, contudo, uma realidade que afecta particularmente o sistema de saúde português: as extensas listas de espera — matéria que já mereceu, aliás, um ensaio. As listas de espera representam cuidados de saúde adiados, cuidados que ficaram por prestar. Em muitos casos durante semanas, meses e até anos. Reduzir drasticamente as listas de espera implicaria, salvo um surpreendente salto tecnológico, um aumento da capacidade produtiva do sistema de saúde, isto é, implicaria contratar mais profissionais, mais meios de diagnóstico e mais camas de hospital. Não existem estimativas dos recursos adicionais que seriam necessários para o fazer, mas é indubitável que isso implicaria um aumento da despesa em saúde. Como tal, este valor baixo deve ser interpretado com a devida cautela.
Quão eficiente é o sistema de saúde português?
A questão que se segue é então cruzar os indicadores de saúde, isto é, aquilo que o sistema é capaz de produzir, com o custo do sistema de saúde, isto é, o custo de os produzir. Tanto a OCDE como a Organização Mundial de Saúde fazem uma análise de eficiência já datada (2010), pelo que vamos recorrer a uma análise da Comissão Europeia, da autoria de João Medeiros e Christoph Schwierz, que é de 2015. Neste trabalho procura-se encontrar os países que, para um dado nível de recursos, alcançam os melhores indicadores em saúde, ou seja, que são mais eficientes. Estes recursos, ou inputs, são geralmente medidos em despesa em saúde, que é um cômputo de todos os recursos canalizados para a saúde, e os resultados alcançados são aproximados pelos indicadores em saúde referidos anteriormente, como a esperança de vida à nascença, esperança de vida aos 65 anos, mortalidade infantil, mortalidade evitável, entre outros.
De acordo com o estudo, dos países europeus, República Checa, Lituânia e Eslováquia são os menos eficientes, isto é, ou gastam demasiados recursos para os níveis de saúde que conseguem alcançar, ou, para um dado nível de despesa, alcançam resultados sofríveis comparativamente a outros países. No topo da lista estão Bélgica, Chipre, Espanha, França, Luxemburgo, Suécia e Holanda. Isto significa que, pese embora países como a Holanda apresentarem uma despesa em saúde manifestamente superior à de países vizinhos, essa despesa materializa-se em ganhos em saúde. Ou seja, é um investimento com retorno.
Portugal, por sua vez, e quando ponderados todos os modelos de eficiência (isto é, considerando uma média dos vários indicadores de saúde), aparece em 17.º lugar de um ranking de 28 países. Não é um resultado mau, mas está longe, muito longe, de ter o melhor serviço nacional de saúde do mundo, não estando, inclusive, na fronteira de eficiência para o seu nível de despesa — há países que com os mesmos recursos alcançam melhores resultados. É o caso, por exemplo, do Chipre, que usando até menos recursos ultrapassa Portugal em indicadores de saúde como a esperança de vida.
As limitações dos indicadores de saúde e das análises de eficiência
Se acha que um serviço nacional de saúde não pode ser apenas avaliado a partir deste tipo de indicadores, tem alguma razão. Não é preciso ser-se um epidemiologista ou um economista da saúde para pôr em questão aquilo que é usado para medir os resultados produzidos pelo sistema de saúde. Na verdade, este é um problema amplamente conhecido, e limita as análises de eficiência dos sistemas de saúde.
Consideremos, por exemplo, a esperança de vida média. Se por um lado há forte evidência de que existe uma correlação positiva e não linear entre despesa em saúde e esperança de vida média, também é imediato perceber que a sua evolução não é o resultado, pelo menos de forma isolada, da eficácia do sistema de saúde. Se assim fosse, então a evolução significativa da esperança de vida média coincidiria com a criação dos sistemas de saúde organizados, que possibilitaram a prestação de cuidados de saúde em larga escala. Ora, sabemos que assim não é. Na verdade, e segundo Joseph Newhouse, economista da saúde em Harvard, “os cuidados médicos são um dos determinantes menos importantes da esperança de vida”.
O nosso exemplo é paradigmático: o Serviço Nacional de Saúde foi criado em 1979, tendo sido pensado e implementado à imagem do National Health Service britânico, que por sua vez foi criado em 1948. No entanto, foi a partir do século XIX que se começaram a registar ganhos notáveis na esperança de vida em todos os países a nível mundial. Como facilmente se conclui, a existência e a eficácia de um sistema de saúde é apenas uma pequena parcela da equação que explica os ganhos em saúde, até porque já havia melhorias significativas nos indicadores antes mesmo de existirem sistemas de saúde de acesso universal.
Com efeito, a maior parte dos ganhos em saúde foram alcançados de forma não clínica. No caso do Reino Unido, a mortalidade, que está inversamente correlacionada com a esperança de vida média, começou a diminuir a partir do Iluminismo. Este período histórico trouxe novas perspectivas sobre a saúde e higiene pessoais. Adicionalmente, o crescimento económico que se iniciara na Revolução Industrial permitiu uma melhor nutrição, melhor habitação e melhor saneamento público. Finalmente, a teoria dos germes permitiu uma autêntica revolução nas unidades de saúde, transformando em hábito o que era um acto inusitado, frequentemente ridicularizado, de meia dúzia de excêntricos: lavar as mãos entre procedimentos médicos. Só esta medida foi responsável pela redução drástica das infecções adquiridas nos hospitais, e, por conseguinte, pela redução da mortalidade.
De forma análoga, também a mortalidade infantil não decorre estritamente da eficácia ou até da existência de um serviço nacional de saúde. Historicamente, a mortalidade infantil em Portugal começou a decrescer abruptamente a partir do início dos anos 60 (já vinha em queda, mas a série mais rigorosa só começou a ser construída por volta dos anos 60), ainda Portugal estava sujeito a uma ditadura e o Serviço Nacional de Saúde estava a 20 anos de ser criado. Com efeito, a criação do SNS, em 1979, não produziu nenhum efeito notável na redução da mortalidade infantil, mantendo a tendência de redução.
Uma pergunta pertinente será, então, porque é que se usam estes indicadores para comparar sistemas de saúde? Por outra, porque é que se usam resultados em saúde, ou outcomes, quando a comparação deveria ser feita com base naquilo que o sistema produz, ou seja, nos outputs? A resposta é simples: não existem alternativas melhores. Ao contrário dos outputs, que é aquilo que o sistema de saúde efectivamente produz, como consultas externas, cirurgias, cuidados de enfermagem, exames e diagnósticos, os outcomes são facilmente mensuráveis e existem para muitos países. No caso de Portugal, por exemplo, estes dados só existem para internamentos hospitalares e cirurgias, sendo desconhecida a quantidade de cuidados prestados fora deste âmbito, como por exemplo em ambulatório ou em pequenas clínicas fora do SNS. Torna-se assim impossível, pelo menos para já, usar esses dados para efectuar uma comparação mais fidedigna.
Tal limitação não invalida metodologicamente as comparações actuais, que usam resultados em saúde ao invés de produção de cuidados de saúde, mas dá conta da cautela que é devida aquando da interpretação destas análises. Este problema pode ser minorado se compararmos os países que são semelhantes entre si a vários níveis, incluindo estilos de vida, dietas nutricionais, meteorologia, antecedentes genéticos, etc., mas não resolve o problema por completo.
Um índice de qualidade dos sistemas de saúde
Então, haverá alguma forma mais fiável de medir a qualidade dos sistemas de saúde? Há iniciativas nesse sentido. Abordagens mais recentes recorrem a um outro conjunto de indicadores, a denominada mortalidade evitável (amenable mortality), que têm uma ligação mais próxima àquilo que é a produção dos sistemas de saúde. Estes indicadores medem a taxa de mortalidade de várias doenças que não são necessariamente fatais, caso estejam a ser prestados os devidos cuidados de saúde. Destaque-se um estudo que analisa 195 países entre 1990 e 2015 para um conjunto vasto de doenças e factores de risco. Pese embora não devolver uma análise de eficiência, pois não tem em conta os custos dos sistemas de saúde, este estudo escalpeliza com um detalhe inédito a eficácia observável dos sistemas de saúde, elaborando um índice de acesso e de qualidade.
De acordo com este estudo, publicado na revista The Lancet, o país que apresenta um índice de acesso e qualidade superior é Andorra, seguido da Islândia, Suíça, Suécia, Noruega, Austrália, Finlândia e Espanha, que surge em 8.º lugar. Portugal aparece em 31.º lugar, à frente do Kuwait e da Croácia, sendo que a sua posição é fundamentalmente devida aos maus resultados alcançados na mortalidade evitável por infecções respiratórias, por cancros da pele (não-melanomas), por leucemias e pelo linfoma de Hodgkin. Este estudo nada nos diz da eficiência do sistema de saúde, mas é claro quanto à eficácia do mesmo: há ainda muito a ser feito.
Conclusão: quatro ideias principais e o muito trabalho a ser feito
Uma das principais conclusões de quase todos os estudos que analisam a eficiência dos sistemas de saúde é de que há enormes ineficiências em quase todos. Portugal não é excepção, e é, aliás, um dos principais beneficiários de um sistema de saúde mais eficiente do que o actual, especialmente para a redução das listas de espera. O estudo da Comissão Europeia estima que existe um potencial de redução de quase 50% na mortalidade evitável em Portugal e de um aumento entre 1 e 5 anos na esperança de vida com saúde caso consigamos tirar partido de um sistema mais eficiente. Em jeito de súmula, sintetizamos as principais ideias veiculadas neste ensaio.
Primeira ideia. Portugal apresenta bons indicadores de saúde à escala mundial, razoáveis no contexto europeu. É incontornável que os resultados alcançados por Portugal são muito positivos quando vistos à escala global (31º lugar de 195 países num índice de acesso e de qualidade). Mas, no contexto europeu, em que os contextos nacionais são mais semelhantes, há vários países que alcançam resultados melhores do que Portugal.
Segunda ideia. O sistema de saúde português não é caro. Para os resultados alcançados em termos de indicadores de saúde, o sistema de saúde português, e em particular o SNS, não é caro, sendo um dos mais baratos da União Europeia, e estando bem abaixo da média da OCDE.
Terceira ideia. Embora não seja caro, o SNS não é particularmente eficiente: tudo considerado, há países que fazem um melhor uso dos recursos. Pese embora o custo reduzido do sistema de saúde e os bons resultados alcançados em termos de indicadores de saúde, há países que, usando até menos recursos, alcançam resultados melhores. Portugal não tem, sob nenhuma perspectiva, o melhor SNS do mundo.
Quarta ideia. Há muito trabalho a ser feito. O melhor serviço de saúde do mundo não deixa pacientes meses, e até anos, à espera de tratamento. Todos os ganhos de eficiência que possam ser alcançados no âmbito do sistema de saúde português, que, uma vez mais, não está circunscrito ao SNS, são fundamentais para prestar mais e melhores cuidados de saúde.
Espero um dia poder rever este ensaio, explicando como é que chegamos ao topo. Mas esse dia ainda está para chegar.
Mário Amorim Lopes é Professor Auxiliar Convidado na Universidade do Porto, Assistente Convidado na Católica Porto Business School, Investigador no INESC-TEC, membro do Parlamento da Saúde, doutoramento na área de Gestão e Economia da Saúde.