Será um problema de todos os setores do país que ainda ninguém consegue prever com certeza, mas Luís Meira já antecipa que, depois de controlada a pandemia, venham “tempos difíceis” para o Instituto Nacional de Emergência Médica. O presidente do INEM prevê uma quebra nas receitas que pode pôr em causa alguns investimentos, ainda que seja “cedo para perceber exatamente”. Mas acredita que poderão ser encontradas boas soluções para manter a mesma assistência à população, que considera “excelente”.
No programa Sob Escuta da Rádio Observador (que pode ouvir na íntegra aqui), Luís Meira responde às críticas por causa da reutilização de algum material de proteção dos operacionais do INEM, que normalmente seria usado apenas uma vez. “Não estamos numa situação normal”, lembra, sublinhando que alguns dos componentes de proteção podem ser reutilizados “com toda a segurança” e que isso “pode e deve ser feito” sempre que possível. Uma necessidade tendo em conta a escassez deste tipo de material. Depois da dificuldade em conseguir fornecimento no mercado — mesmo ainda em fevereiro, quando começaram a ser feitas algumas aquisições — o INEM tem, nesta altura, stock de máscaras, viseiras, luvas e fatos, por exemplo, mas não eterno: “Estamos, eu diria, confortáveis — por alguns dias”, assume o presidente.
Parte do trabalho do Instituto tem sido, nesta altura, a recolha de amostras para testes em populações específicas, como lares ou hostels, por exemplo. Luís Meira revela que isso também começará a ser feito a guardas prisionais e outros funcionários das cadeias, numa medida que está a ser preparada entre os ministérios da Saúde e da Justiça.
Na entrevista, o presidente conta também que ainda não foram concluídos os processos disciplinares abertos na sequência da morte do psicanalista Carlos Amaral Dias, enquanto esperava por socorro. Garante que o caso serviu para melhorar os procedimentos e que isso acontece sempre quando alguma coisa corre mal.
Do Governo espera agora que cumpra a promessa de abertura da Delegação Regional do Algarve e diz que o processo de revisão da Lei Orgânica do INEM, que está “muito bem encaminhado”, tem de ser concluído o mais rapidamente possível.
[O essencial da entrevista ao presidente do INEM:]
Na semana passada, soube-se do caso de um doente que chamou o INEM e não informou que estava infetado com a Covid-19, pondo os técnicos em risco. Acha que as pessoas ainda não perceberam a gravidade daquilo que está a acontecer?
Eu acredito que são casos pontuais, excecionais, mas são essas situações que lembram todos os profissionais — sejam do INEM, sejam outros profissionais de saúde nos hospitais ou noutras entidades a dar esta resposta coletiva à Covid-19 — que aquilo que fazemos tem sempre um risco. Por mais medidas que seja possível implementar, reduzir o risco a zero é impossível. Estas situações vão acontecendo, felizmente de forma pontual — tão pontual que, inclusivamente, acabam por ser notícia, quando o grosso da atividade que nós fazemos passa perfeitamente despercebido naquilo que é a comunicação neste momento. E se calhar bem, porque eu diria que a maior parte daquilo que são as intervenções do INEM e de outras entidades na área da saúde são efetivamente bem feitas.
Mesmo sendo casos específicos, não faria sentido tratar todos os doentes como potenciais infetados, sobretudo tendo em conta os estudos que mostram que, potencialmente, há muitas pessoas assintomáticas que podem não saber que estão doentes?
Estamos a viver um contexto muito particular relativamente a uma nova doença que tem um impacto brutal na nossa vida, mas esta questão do risco entre os profissionais de saúde não começou agora no início do ano, com esta pandemia. Quem trabalha no apoio hospitalar e nos hospitais tem essa noção há muito tempo. Nós temos situações eventualmente até mais graves do que propriamente a provocada por este novo coronavírus que já colocavam os profissionais de saúde em risco. É por isso que há uma questão que é fundamental para quem escolheu esta profissão, este modo de vida, que é garantir os cuidados básicos e as medidas básicas de controlo de infeção. Como é evidente, nesta altura será cada vez mais frequente podermos ser confrontados com um doente que é Covid positivo. É verdade que, neste contexto, nós poderíamos ter uma tomada de medidas que fossem maximizando a proteção, mas não podemos nunca esquecer — aliás, várias entidades, não apenas em Portugal, têm chamado a atenção para essa questão — que a utilização dos equipamentos de proteção individual tem que ser feita de forma muito judiciosa. Porque, neste momento, em Portugal e nos outros países, ainda não temos condições para garantir que todos os profissionais têm o nível máximo de proteção que é possível, perante um risco que cada vez é maior, mas que ainda não justifica que todo e qualquer doente que é abordado justifique a colocação de um EPI completo.
O material de proteção continua a ser um problema?
Claro que sim e vai continuar a ser.
Continua a ser necessário racionar esse material para assegurar que ele continua a existir para quando é mais necessário?
Esta é uma situação perfeitamente dinâmica, mas, naquilo que diz respeito à capacidade que o INEM tem para conferir o grau de proteção de que os nossos profissionais necessitam para poderem intervir, temos, de um modo geral, conseguido fornecer os equipamentos necessários. Mas houve períodos relativamente curtos — um ou dois dias —, em que praticamente não tínhamos stock para repor alguns desses componentes.
Porque é que isso aconteceu? Porque não havia no mercado? Porque não estava a ser disponibilizado?
Há aqui um conjunto de fatores que justificam isso. Internamente, mal se começou a perceber que esta questão do novo coronavírus podia efetivamente vir a ser um problema, foram dadas indicações expressas para que o departamento responsável pelas aquisições aumentasse as aquisições destes equipamentos de proteção individual. A questão da segurança dos nossos trabalhadores é fundamental para o Instituto e já em fevereiro foram dadas ordens ou indicações para se aumentarem as aquisições. Houve uma tentativa, mas as encomendas que começámos a receber ou não forneciam determinados itens dos equipamentos de proteção que já eram normalmente utilizados pelo INEM, ou então em quantitativos inferiores àquilo que tinham sido as encomendas. Isto em fevereiro.
Estamos a falar de mercado interno ou externo?
No mercado interno, sendo que, para parte dos equipamentos, já começamos a ter alguma capacidade de produção interna, mas parte deles vinham de fora e tínhamos sempre que recorrer a fornecimento exterior.
Mas o mercado não estava a responder porque já havia mais entidades a fazer essas mesmas aquisições?
Havia, sobretudo, muitos países. Um dos problemas com os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) é que um dos grandes produtores era a China. A partir de determinado momento, a China deixou de conseguir garantir o fornecimento do mercado e houve necessidade de encontrar outras origens para esses equipamentos, numa altura em que estava a alastrar a questão, até ser declarada como pandemia. Era um problema global e havia muitos países, eventualmente alguns deles com maior capacidade de aquisição que Portugal, que começaram a desviar parte das existências a nível mundial. A partir de determinado momento, todos os departamentos das várias entidades da saúde, os vários hospitais, passaram a tentar encontrar alternativas ao fornecimento deste equipamento das mais variadas maneiras. Para além de que — também foi algo que também afetou esta questão — houve claramente aqui uma tendência, eu diria especulativa, de um aumento substancial, brutal em termos dos preços de aquisição destes equipamentos. Aquilo que posso garantir é que, internamente e ainda antes de se começar a falar e de ter sido declarada a emergência de saúde internacional, foram dadas indicações para se fazerem estas aquisições. E desde fevereiro que já se começavam a notar estes constrangimentos em termos de acesso a estes equipamentos.
E agora que stock existe, por exemplo, de máscaras ou de EPI?
O próprio INEM tem um stock para garantir o fornecimento para os nossos operacionais. Neste momento, nenhum dos itens que constitui esse stock está a zero, portanto estamos eu diria confortáveis — por alguns dias. Porque a verdade também é esta: para garantir a proteção dos que estão na linha da frente — e, claramente, os nossos profissionais estão na linha da frente — temos de garantir o fornecimento em quantidades que sejam adequadas aos consumos que, entretanto, obviamente dispararam. Os motivos são do conhecimento de todos.
Mas estão a conseguir repor melhor do que nesses outros dias?
Permita-me dar daqui uma nota que é importante: para além de, obviamente, termos de garantir o fornecimento dos EPI, temos também de garantir que são utilizados — sobretudo alguns componentes deste equipamento de proteção — de forma adequada, e isso também faz parte da preocupação do instituto. Garantindo que os trabalhadores estão devidamente protegidos, temos também de garantir que não é utilizado equipamento quando não se justifica utilizar. É por isso que é necessário perceber o tipo de intervenção que é feita, o grau de risco que essas intervenções representam, para se poder adequar o nível de proteção a esse risco. Sendo certo, e todos os operacionais sabem isto, que o risco nunca será zero, mas os nossos trabalhadores não têm virado a cara a esta luta. Também temos alguns dos nossos trabalhadores infetados com Covid-19. Neste momento, são oito, sem que nenhum deles levante ou inspire cuidados de maior, até porque tivemos o cuidado de preparar devidamente esta nossa intervenção. Mas estes oito e os cerca de 40 que estão, neste momento, em isolamento são a demonstração de que não é possível resumir o risco a zero e que às vezes, mais do que ter disponibilidade para ter os EPI prontos para serem usados, é a forma como se utilizam. É preciso formação e é preciso que os nossos trabalhadores estejam conscientes do risco, porque é a única forma de se poder minimizar esse risco.
Foi por causa dessa escassez no fornecimento e também para evitar o desperdício que começou a ser pedido, segundo os sindicatos, que determinados elementos que são usados na proteção dos profissionais do INEM passassem a ser desinfetados e não deitados fora, para serem reutilizados?
Sinceramente, isso é um não assunto. Vou dar um exemplo que aconteceu num número grande de hospitais: desde o início da disponibilização destes EPI estes procedimentos eram executados…
Mas é desejável que seja assim?
Claro que sim.
Seria assim numa situação normal?
Nós não estamos numa situação normal, por várias questões. Já falámos numa, que é a escassez deste tipo de equipamentos, a dificuldade que temos tido no acesso ao fornecimento de alguns destes componentes. Além disso, havendo esta possibilidade de reutilização destes equipamentos — até porque não é apenas a área da saúde que precisa destes equipamentos, a necessidade de EPI vai crescer à medida que for sendo levantado o estado de emergência, que se afigura que será brevemente —, temos de estar preparados para isso. Temos de ter esta noção clara: tudo aquilo que os nossos trabalhadores puderem fazer para reduzir o consumo de EPI, pela utilização criteriosa e pela reutilização de alguns componentes que podem ser reutilizados com toda a segurança, pode e deve ser feito.
Bombeiros. “O INEM está disponível para reavaliar alguns pagamentos e subsídios”
Esta questão da falta de material tem sido uma das mais debatidas nas reuniões da Estrutura de Monitorização do Estado de Emergência, um grupo de trabalho criado na dependência do Ministério da Administração Interna. Porque é que o INEM não está nesta estrutura?
O INEM é uma das entidades do Ministério da Saúde. Mais do que ter de estar nas várias comissões e nos vários níveis de acompanhamento e monitorização de toda a atividade, queremos garantir que estamos onde é necessário. Isso significa, dentro de um contexto em que os nossos recursos são também finitos, que teremos representantes nas reuniões e comissões sempre que for necessário. Sobre a estrutura que indicou, há representantes do Ministério da Saúde e, sendo necessário, o INEM será chamado a dar os seus contributos. Até porque, neste momento, o acompanhamento é feito numa base diária dentro do Ministério da Saúde, com uma articulação entre todas as entidades do Ministério, cada uma delas nas suas áreas mais concretas e específicas de atuação. Também interage com outras áreas governativas, dentro do que é um trabalho muito grande de acompanhamento e monitorização da situação. Estamos perante algo que nunca enfrentámos antes. É necessário preencher muitas lacunas em relação àquilo que se conhece sobre o vírus, sobre a doença, sobre a reação dos doentes a este vírus — apesar de nunca se ter sabido tanto e tão rapidamente sobre determinada situação. Mas continua a haver muitas perguntas por responder.
Por causa da gravidade desse problema, o INEM ativou a sala de situação nacional, mas só fez dez dias depois de o primeiro caso ser registado em Portugal. Porquê?
Ativamos a sala de situação nacional quando é necessário, o que não quer dizer que não acompanhemos desde o primeiro momento. Ainda em fevereiro iniciámos medidas para nos prepararmos o melhor possível para esta matéria. Temos estruturas, que são os Centros de Orientação de Doentes Urgentes, que todos os dias acompanham aquilo que acontece de forma muito próxima, até porque são responsáveis por parte da resposta que é necessária dar relativamente a uma situação de emergência.
Não faria sentido ter sido mais cedo?
Para nós, não. Foi acionada no momento exato em que devia ser acionada, face àquilo que é uma mais-valia da sala, que nós conhecemos melhor do que ninguém, e à necessidade de controlo de alguns processos e de alguma informação.
Ainda esta semana, os bombeiros queixaram-se de o INEM não cobrir as despesas de socorro, porque os gastos nos casos de Covid-19 são maiores do que estava protocolado, por causa dos equipamentos. Quem é que deve fornecer estes equipamentos que os bombeiros têm agora de usar e que antes não tinham?
Os corpos de bombeiros, e estamos a falar de um universo muito grande de estruturas, têm um trabalho fundamental naquilo que é a urgência pré-hospitalar. A sua capacidade de estarem próximos e de integrarem as populações que servem é fundamental, mesmo no âmbito daquilo que é o sistema integrado de emergência médica, que garante esta resposta a situações de acidente e doença súbita. No fundo, esta é a missão do Instituto Nacional de Emergência Médica, que coordena o tal sistema integrado de emergência médica, sendo que os corpos de bombeiros são atores fundamentais. Mas chamaria a atenção para alguns aspetos: o estatuto jurídico dos corpos de bombeiros define como fazendo parte da sua missão a emergência hospitalar e o transporte de doentes. Significa que, dentro daquilo que é a sua missão, têm uma responsabilidade com as populações que servem, nomeadamente dentro da sua área de intervenção, para garantirem esta atividade. Referiu os protocolos com o INEM. É verdade, temos protocolos com os bombeiros. Não temos prestação de serviços, temos protocolos de colaboração, porque faz parte da nossa missão e da missão dos corpos de bombeiros esta assistência às populações em termos de emergência pré-hospitalar.
Mas protocolos que implicam um pagamento.
Claro que sim, na forma de um subsídio para esta atividade, dentro daquilo que são as capacidades financeiras do Instituto e de um quadro onde temos de garantir a sustentabilidade nesta matéria. Para ter uma ideia, cerca de 40% do orçamento do INEM é utilizado em transferências para corpos de bombeiros e uma fração menor para a Cruz Vermelha, para garantir esta atividade de emergência pré-hospitalar. Dito isto, os corpos de bombeiros acabam por prestar um serviço às populações que recebem os serviços de que tanto necessitam. Sou o primeiro a reconhecer que aquilo que nós conseguimos transferir para os bombeiros não cobre as despesas que existem, embora os bombeiros tenham outras fontes de rendimentos. É uma matéria que me preocupa. No trabalho que temos vindo a desenvolver com a Liga dos Bombeiros Portugueses, já foi assumido por mim que é necessário rever o protocolo que garante e justifica a tabela de subsídios que atribuímos aos bombeiros. Estamos disponíveis para fazer esse caminho, tem vindo a ser feito. O relacionamento entre o INEM e os corpos de bombeiros tem sido excelente, a grande maioria ou a totalidade dos corpos de bombeiros sabem que faz parte do seu ADN o serviço às populações. Agora, é verdade que têm de garantir a sua própria sustentabilidade. O INEM está disponível para reavaliar esta matéria e reavaliar alguns pagamentos e subsídios, mas não teremos capacidade para suportar integralmente os custos desta atividade.
Prisões. “Seremos responsáveis por garantir as colheitas dos guardas prisionais e de outros trabalhadores”
Parte da tarefa do INEM neste momento que vivemos é também a recolha de amostras e os testes feitos à população. Sobretudo nas primeiras semanas de pandemia, percebeu-se que havia dificuldades e que era preciso fazer uma gestão muito sensível e cuidada dos testes, escolhendo quem era ou não testado. Está completamente resolvido?
Não serei a pessoa mais indicada para responder à globalidade das implicações que a sua pergunta acaba por ter… No que diz respeito ao INEM, procurámos desde o início ajudar o Ministério da Saúde a dar uma resposta tão eficaz quanto possível a esta situação. Para além de garantirmos a nossa obrigação primária, que é a assistência adequada às vítimas de acidente e de doença súbita, tentámos colaborar num aspeto importante: numa fase inicial, era preciso garantir muito rapidamente, até em alguns contextos particularmente difíceis, que determinadas situações podiam ser diagnosticadas realizando testes de Covid-19. Neste momento, a nossa preocupação continua a ser colaborar com as autoridades sanitárias e de saúde nesta matéria, mas há um universo que continua a estar no centro das atenções de todos, que são os lares, e ainda continuamos a fazer esse tipo de colheitas em alguns lares onde haverá uma maior dificuldade local para dar uma resposta imediata. Há outro aspeto que tem gerado também alguma preocupação, que tem a ver com os estabelecimentos prisionais, que também iremos rapidamente colaborar nesse processo. Estamos também a colaborar com a questão dos refugiados, que, sendo cidadãos de outros países que Portugal aceitou acolher, carecem de uma resposta. Estamos também a ajudar nesse aspeto das colheitas, a tentar identificar de forma mais precoce as situações de maior risco para desenvolvimento e criação de clusters deste novo coronavírus.
No caso das prisões, tem alguma indicação do que vão fazer? Vão testar estabelecimentos prisionais inteiros ou populações específicas dentro dos estabelecimentos prisionais?
Isso está a ser preparado em articulação com o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça, não envolve apenas o INEM. Naquilo que diz respeito especificamente ao INEM, seremos responsáveis por garantir as colheitas dos guardas prisionais e de outros trabalhadores em estabelecimentos prisionais, até porque já o fazíamos: sempre que houver alguma suspeita, também podemos ser acionados para garantir essa colheita.
Na semana passada esteve na conferência de imprensa da DGS, revelando uma preocupação que passava pela queda do número de chamadas para o 112, podendo apontar para uma clara resistência de algumas pessoas a recorrerem aos serviços de saúde noutras patologias. Houve alguma alteração ou mantém-se esta diminuição acentuada?
Constatámos essa diminuição. Em relação à média das chamadas que recebemos, e se compararmos com o período homólogo do ano passado, recebemos menos 500 a 600 chamadas por dia. Já tínhamos uma procura do 112 de algumas chamadas que acabavam por não corresponder a verdadeiras emergências. Admito que esta situação, na prática, traduziu-se por uma diminuição muito expressiva deste grupo.
Das falsas urgências, tal como nos hospitais…
Das falsas urgências, que poderemos tentar perceber com maior detalhe mais à frente, porque ainda não tenho dados rigorosos para sustentar esta nossa perceção. Mas estamos a trabalhar nesse aspeto, até porque precisamos de preparar o que aí vem e um eventual aumento ou retoma da procura através das chamadas para o 112. Estamos a preparar já, tentando antecipar o que aí vem, a partir do momento em que se vá levantando paulatinamente o estado de emergência e, sobretudo, a partir do momento em que o próprio Ministério da Saúde implementar um plano de recuperação de algumas coisas que, entretanto, foram suspensas e adiadas. A verdade é que esperamos que parte desta diminuição, a maior parte até, seja uma diminuição das procuras indevidas do 112, mas também temos alguns reportes que nos deixam preocupados, situações em que as pessoas, por receio de irem para hospitais, porque neste momento não têm a confiança necessária, podem estar a aguardar mais tempo do que deveriam quando se justificava que o fizessem.
Tem casos de pessoas que esperam mesmo até à última?
Temos alguns reportes que não consigo dizer se são uma tendência significativa em termos estatísticos em relação a esta matérias. Estamos mais atentos para essas situações, o que às vezes não é bom para perceber se tem ou não valor estatístico. Vou dar um exemplo do que já sabemos em relação à inserção de doentes que é feita pelos CODU [Centro de Orientação de Doentes Urgentes] nas Vias Verdes Coronárias e dos AVC: os dados preliminares neste momento até indicam que não tivemos um decréscimo dos doentes nessas duas vias. Não temos também evidência de que tenha aumentado o tempo desde o início dos sintomas até à chamada para o 112. Mas precisamos de ter mais informação e de cruzar com aquilo que acontece nos hospitais, porque antes da Covid-19 já tínhamos uma maioria de doentes que recorria ao serviço de urgência tendo um enfarte ou tendo um AVC sem recurso ao 112. Precisamos de ter alguma cautela nas análises, mas é uma preocupação que temos e, sobretudo, precisamos de tentar antecipar o que poderá mudar em termos de procura do 112, porque acredito que possa haver algumas mudanças em relação à perceção das pessoas sobre o serviço em si e à utilização do serviço. Até admito que umas possam ser positivas, outras nem por isso. Há uma nota importante: as pessoas precisam de ter toda a confiança quer nas entidades que prestam assistência e socorro pré-hospitalar, quer nos hospitais que recebem os doentes que depois encaminhamos. Os circuitos estão perfeitamente definidos, é perfeitamente seguro recorrer neste momento ao Serviço Nacional de Saúde, os hospitais estão preparados para serem seguros para os profissionais de saúde e para os doentes, porque foi sempre essa a preocupação dos serviços de saúde: funcionar da forma mais segura para os utentes que servem.
Quebra nas receitas. “Ninguém conseguirá quantificar, mas que ela vai acontecer, vai”
Esta situação obrigou a redirecionar investimento para áreas muito específicas dentro do setor da saúde e a fazer também gastos extraordinários, nomeadamente com material, com medicamentos e com contratações. Isto além do lado económico e das consequências que terá no futuro para o país. O INEM tem lidado com várias necessidades de investimento, na renovação da frota, na manutenção de equipamentos e até na substituição de alguns, como os helicópteros que já eram mais antigos, por exemplo. Teme que tudo isto tenha de ficar ainda mais adiado?
Eu acho que, neste momento, ninguém tem dúvidas de que o país não será o mesmo a partir do momento em que fomos afetados por esta situação, como todos os países, europeus ou não, que estão que estão a atravessar momentos mais ou menos complicados e difíceis. Quer num contexto em que nos integramos, quer pelos efeitos diretos sobre a economia nacional, seguramente que vamos ter momentos muito difíceis e complicados pela frente. Naquilo que diz respeito especificamente ao INEM, o Instituto tem uma estrutura de receitas muito própria. Nós não dependemos, em 99 por cento daquilo que é a receita do Instituto, do Orçamento do Estado, porque temos uma fonte de receita própria. Mas é facilmente antecipável que, com os problemas da economia que já começamos a enfrentar, possa vir a haver uma quebra significativa da receita do INEM. Neste momento eu acho que ninguém conseguirá quantificar essa quebra, mas que ela vai acontecer, vai. Para além disso, nós tínhamos, também do ponto de vista económico, algum conforto, alguma almofada para tempos mais difíceis, mas mesmo essa almofada teve de ser direcionada para aquilo que, do ponto de vista da resposta global da saúde, foi a necessidade de adquirir os tais equipamentos de proteção individuais, ventiladores e outros equipamentos fundamentais para podermos dar uma resposta adequada, que eu penso que estamos a dar a esta situação de Covid-19. O que significa que tempos difíceis virão, mas temos de ter a confiança de que saberemos encontrar as soluções necessárias para continuar a fazer aquilo que fazemos, garantindo às populações do nosso país que, do ponto de vista da emergência pré hospitalar, vão continuar a ter um serviço que eu acho que é excelente, quer feito diretamente pelo INEM, quer pelos parceiros no Sistema Integrado de Emergência Médica. Estou convicto de que saberemos sair bem, como sempre fizemos em situações de maior dificuldade. Mas que os tempos serão difíceis, não tenhamos a mais pequena dúvida.
E que obrigarão a adiar estes investimentos?
Ainda é cedo para perceber exatamente o que é que vai acontecer. É preciso, sobretudo, entendermos e conseguirmos quantificar o valor daquilo que se prevê, neste momento, como muito provável, que é uma quebra das receitas do Instituto, e tentar encontrar as soluções necessárias. Alguns desses investimentos eram fundamentais quando foram iniciados e agora não são tão relevantes. Relativamente, por exemplo, à frota de ambulâncias, nós já conseguimos reduzir a idade média da frota de viaturas do Instituto, mas continuamos a ter algumas viaturas que precisam, claramente, de ser substituídas. E, mais uma vez, nós temos de garantir aos nossos operacionais que têm os equipamentos necessários para poderem exercer bem a sua sua missão.
É possível, num contexto como este, avançar, por exemplo, para a contratação de mais técnicos?
Nós contratámos agora muito recentemente mais 125 novos técnicos de emergência pré-hospitalar.
Tem todos de que precisa?
Eu acho que nenhuma entidade no Ministério da Saúde — e outros, se calhar, noutras áreas — dirá que tem todos os recursos de que necessita. Seguramente que o INEM ainda não os tem, até porque, relativamente ao nosso mapa de pessoal, estes 125 vêm preencher uma lacuna importante, mas que não fica completamente resolvida. Nós continuamos a pretender não apenas garantir o dispositivo de meios que temos, mas incrementá-lo. Portanto, há um conjunto de novos meios que pretendemos pôr em atividade logo que seja possível.
Numa entrevista em 2017, dizia que “o que está previsto no mapa de pessoal são cerca de 1.700 trabalhadores, quando temos só 1.364”. Já está mais perto de 1.700?
Esses 1.700, como eu disse, representam o mapa de pessoal previsto e necessário para a totalidade dos meios que deveriam, no fundo, garantir a rede de meios de emergência que está definida.
Nessa mesma entrevista, defendia que o INEM devia ter mais autonomia, admitia até que uma das possibilidades era que fosse transformado uma entidade pública empresarial (EPE). Mantém essa visão?
Nós precisamos, claramente, de ter uma revisão da nossa Lei Orgânica. Não tenho a mais pequena dúvida, por vários motivos. Para ter uma ideia, o conselho diretivo do Instituto tem apenas dois elementos — eu acho que deveria ter pelo menos três. Nós precisamos claramente também de, em sede de lei orgânica, garantir aquilo que é um anseio antigo, e foi inclusivamente uma promessa deste Governo, que é a criação da Delegação Regional do Algarve, isso também carece de tal alteração da Lei Orgânica. E precisamos de fazer uma atualização daquilo que é a própria estrutura interna, tornando-a mais adaptada às necessidades atuais, porque a lei orgânica que temos neste momento é de 2012. Aliás, ela resultou de um processo de redução brutal daquilo que eram as estruturas internas, quer em termos de dirigentes quer em termos de serviços no próprio Instituto. Na altura, nós reduzimos de 42 para 23 dirigentes — o que significa, claramente, que há aqui uma necessidade de, tão rapidamente quanto possível, termos uma lei orgânica e uma estrutura interna mais adaptada àquilo que são as exigências do mundo atual.
Porque é que não tem conseguido convencer os ministros da Saúde a ouvi-lo nesse sentido e começar a discutir uma nova lei orgânica?
Nós já começamos a discutir e eu diria que estará muito bem encaminhado.
E não fica prejudicado com tudo o que está a acontecer agora?
Nós temos de assumir que a emergência nacional que estamos a enfrentar, relativamente à resposta a uma situação muito exigente, vai provavelmente transformar a nossa vida — que vai continuar em frente, mas diferente. Eu não tenho a mais pequena dúvida disso e teremos que nos adaptar às novas realidades e necessidades e encarar também esta situação como uma oportunidade para refletirmos um pouco mais sobre a forma como estávamos a fazer as coisas. Em momentos de crise, também há que agarrar algumas das oportunidades que nos são colocadas para questionar aquilo que estamos a fazer e perceber se, com uma estrutura diferente, se calhar a nossa resposta até poderia ser melhor àquela que nós damos. Até porque esta questão das doenças emergentes, de novas situações, todos os especialistas apontam no sentido de que não vamos ficar pelo novo coronavírus. Isto poderá fazer parte da nossa realidade futura cada vez com mais frequência, assim como outras questões decorrentes das alterações climáticas que, seguramente, vão impor novas realidades e exigir das entidades, neste caso concreto do INEM, uma capacidade de resposta que tem que ser adequada à dimensão dos desafios que se nos vão colocar. Devemos aproveitar esta oportunidade para tentar fazer isso. Até porque — e retomando aquela questão da Lei Orgânica — estas alterações de que eu falei do ponto de vista de uma eventual alteração da Lei Orgânica não representam ruturas completas com o passado. São feitas numa perspetiva de alguma continuidade, adaptando melhor a capacidade do Instituto de lidar com estes novos desafios, mas também não se antecipa que venham a representar um aumento significativo da despesa.
Mas gostaria, por exemplo, de ter maior autonomia na contratação…
Claro que sim. Quem não gostaria? Temos também de perceber que, dentro daquilo que é um quadro legal existente, há responsabilidades que não estão atribuídas diretamente ao INEM que também têm de ser asseguradas por outras por outras entidades. O importante é nós conseguirmos trabalhar em conjunto para os problemas que vão sendo colocados poderem ser resolvidos. É importante ganhar espaço para que quem também tem, necessariamente, de ter decisões sobre alguns destes processos entenda o racional e a importância de algumas das propostas que fazemos. E se não as aceitarem a todas — está dentro da sua esfera de competências —, é importante que estejam sensíveis aos argumentos que são apresentados e que eles sejam devidamente avaliados. Estou convicto de que temos conseguido trabalhar nesse sentido.
Processos disciplinares atrasados
O INEM instaurou processos disciplinares a dois funcionários e processos de contraordenação a duas corporações de bombeiros por causa da morte do psicanalista Carlos Amaral Dias. Já há algum resultado desses processos?
São processos que estão ainda a decorrer os seus trâmites, sendo que esta situação também vai levar à suspensão de alguns processos, por motivos evidentes — inclusivamente, está definido que alguns prazos poderão ser dilatados. Aquilo que aconteceu, e não fugindo nunca a esta questão, implica uma reflexão profunda por parte do Instituto. Há algo que nós não iremos fazer enquanto eu estiver à frente do INEM, que é deixar de olhar de frente para os problemas. E, sobretudo, perceber bem o que é que aconteceu. Porque a nossa obrigação, além de garantir a missão do INEM, é perceber onde é que podíamos ter feito as coisas de forma diferente e, sobretudo, de uma maneira mais eficaz. É um processo diário, contínuo e exigente, que nos obriga a acompanhar de muito perto aquilo que fazemos, não procurando ignorar o que de menos positivo fazemos, mas tentando aprender e criando condições para que, do ponto de vista da cultura da instituição, nesses momentos menos felizes representem mudança, para que não voltem a acontecer — ou, pelo menos, que a probabilidade de poderem acontecer novamente fique reduzida. Isso é um esforço diário não apenas do presidente, não apenas do conselho diretivo, mas de todos os trabalhadores, todos os que constituem o instituto. E eu gostaria de, relativamente a esta matéria, não deixar de dizer que, frequentemente, procura-se avaliar o trabalho de uma instituição pela exceção. E eu diria que, numa altura em que nós recebemos diariamente — agora um pouco menos — 3.200 a 3.500 chamadas de emergência, a resposta do INEM é excecional. E eu acho que isso também resulta do facto de nós conseguirmos aprender com aquilo que corre menos bem. O nosso objetivo é que os portugueses e as portuguesas confiem na instituição e não tenham receio de ligar o 112. Porque sabem que, quando o fizerem, terão a melhor assistência que é possível dar-lhes. Volto a dizer, isto não é apenas um trabalho do INEM, é um trabalho dos seus parceiros e tem de ser devidamente reconhecido. Mas nós só o conseguiremos fazer bem se também estivermos disponíveis para aprender com aquilo que fazemos menos bem. Pontualmente, também vamos tendo uma ou outra dificuldade em dar a resposta que somos os primeiros a querer que seja perfeita.
Há um outro caso que foi até noticiado pelo Observador, há mais de um ano, que levou o INEM a remeter para a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde e para a Ordem dos Médicos os resultados de um inquérito à atuação de um médico do helicóptero de Évora. Este processo já saiu da alçada do INEM, mas já passou muito tempo. Tem alguma notícia sobre o resultado dos inquéritos que foram instaurados por estas duas entidades?
Não.
Nem será comunicado ao INEM?
Espero que seja. É algo que nos envolve diretamente, que motivou inclusivamente a necessidade de tomar algumas medidas relativamente a um dos colaboradores do Instituto. E, portanto, é da mais elementar justiça. Até para nós podermos — com a capacidade que outras entidades têm de investigar melhor e perceber melhor algumas das questões que foram foram levantadas — implementar medidas que nos permitam fazer cada vez melhor aquilo que eu acho que já fazemos muito bem.
[A entrevista na íntegra:]