Enviado especial do Observador em Paris, França

Há um pequeno toque de irracionalidade em qualquer jornalista de um país como Portugal quando se depara com todo o estado de sítio em que está a cidade de Paris esta sexta-feira. Sim, pode ser informado. Sim, pode perceber tudo o que está em causa e o contexto específico em que iria ser realizada a cerimónia de abertura. Não, por mais que conheça tudo não consegue ter aquela perceção de “risco” que os parisienses podem ter. Para nós, portugueses, um concerto do rapper sul-coreano I.M, da banda Monsta X, este domingo à noite é apenas isso, um concerto. Para os franceses, por mais que se queira olhar para a frente, é um espectáculo na sala onde se viveu um dos piores ataques terroristas do século. Tal como os Jogos se adaptaram à cidade onde estão a ser realizados, também nós fazemos uma adaptação natural à cidade onde estamos. Medo? Não, não passa por aí. Noção do que está em causa, isso sim. E era neste contexto que chegava a cerimónia.

Não se pode dizer que o ataque às linhas Atlantique, Nord e Est do TGV durante a noite, fosse com incêndios, fosse com cortes nas ligações, se tenha “sentido” em Paris. Houve muita conversa sobre o que se passou na zona central da cidade e no Media Centre pelo impacto causou, afetando 250 a 800 mil pessoas pelo menos até à próxima segunda-feira, percebeu-se que foi feito com uma intenção coordenada de sabotagem, não foi muito além disso. Foi quase como se todos os meios estivessem concentrados apenas na cerimónia de abertura e ninguém tivesse pensado nesta possibilidade. Apesar de tudo, foi longe do “coração”. Ninguém gostou mas o melhor é virar a página porque todo o foco estava concentrado junto à torre Eiffel… e não só.

Depois de um dia de sala cheia no Media Centre, a ponto de algumas salas extra terem de ser abertas por não haver mais mesas e cadeiras, foi aí que começámos a sentir o aumento da tensão pela segurança. Como? Os últimos autocarros para a cerimónia iriam partir às 16h30 (hora local, menos uma em Portugal) mas, antes das 15h30, começou a ser montado um cerco com fitas onde ninguém poderia entrar ou passar. Porquê? Se a cerimónia não seria ali e todas as atenções estavam centradas no rio Sena, ninguém percebeu ao certo. Explicação? Durante mais de quatro horas o foco era noutro local mas depois voltaria a vida habitual de um Media Centre e dezenas de polícias ficaram a garantir que ninguém poderia ter acesso pela entrada principal (de lado, num outro local do Palais des Congrès. A malha da segurança começava a apertar como nunca.

Na zona dos autocarros da organização, uma separação por cores. Além da acreditação, do bilhete para a cerimónia e do Cartão de Cidadão para qualquer eventualidade, foi adotado um segundo sistema para melhor controlo das entradas que passava por um autocolante que era colado na acreditação. O branco dava acesso ao autocarro 9 que seguia até o mais próximo possível do Trocadéro, com uma passagem quase final pela rotunda do Arco do Triunfo já completamente vedada e uma paragem um pouco mais à frente. Estávamos na Place d’Iena, toda ela vedada também, estávamos a começar uma autêntica odisseia com três paragens ao longo de mais de uma hora. Ponto de arranque: uma fila com mais de 100 pessoas que só não seguia para a Avenue du president Wilson porque havia mais barreiras e caras de preocupação com o tempo.

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“Duas horas”. Com aquela cara de quem não gosta de dar a notícia mas não quer ser fuzilada enquanto mera mensageira, uma voluntária ia trazendo as más notícias. Não seria tanto mas a confusão ainda ia aumentar: a certa altura, ao perceberem que na fila havia jornalistas e meros espectadores (que não pagavam bilhete, a não ser que fossem para determinadas bancadas), houve uma brilhante ideia de juntar duas filas numa só. Começavam as ultrapassagens qual arranque após entrada de safety car na pista: uns sem querer, outros de propósito a arriscar a chico espertice, uma maioria a perceber que não era por estar uma posição mais à frente ou atrás que o cenário mudava. Chegava a primeira revista, neste caso para confirmação da cor do autocolante na acreditação, o bilhete e a identidade antes da verificação minuciosa das mochilas de todos.

Uma passagem à frente do Shangri-la Palace, um hotel de todas as estrelas imagináveis que tinha um Ferrari à porta, mais uns passos até à embaixada do Irão, mais uns metros até à embaixada da Coreia do Sul, a chegada à Avenue Albert de Mun, perto da Cidade da Arquitetura e do Património. Era aí que estava um segundo ponto de controlo, neste caso mais rápido (espera de 15 minutos, até menos) mas com essa breve oportunidade de olhar um pouco à volta a perceber como há zonas nobres nesta cidade da luz, com um complexo onde cada habitação tem aspeto de custar um prédio em Lisboa ou no Porto e uma pequena fila de adeptos que se preparam para chegar às bancadas muito antes do tempo enquanto iam passando viaturas a fio da Gendarmerie Nationale. Mais segurança, mais revistas, mais bloqueios de estradas, mais controlos. Aqui, foi rápido: mostrar o bilhete, confirmar o autocolante, seguir em frente. Nova fila com cerca de 70/80 pessoas, agora mais demorada, outra espera até chegar à revista do detetor de metais. À terceira foi de vez.

A partir daí, não tinha muito que enganar: era seguir em frente, virar à direita, subir uma das bancadas que estavam montadas na zona do Trocadéro para a imprensa, encontrar um lugar com mesa como estava escrito no bilhete. Em cima da mesa, uma capa impermeável. Uma capa não para vestir mas para construir quase uma tenda de improviso. Uns minutos depois, começou a chover. A chover a ponto de termos de ir para as escadas por baixo das bancadas durante um tempo. Ainda antes do arranque da cerimónia o filme voltou a repetir-se mas, entre o computador ao colo e a ajuda de um jornalista norte-americano que trazia uma toalha na mochila que serviu para limpar todas as mesas ali à volta (a capa não servia para nada porque debaixo dela não se via nada…), as coisas foram normalizando. Tudo pronto para o início da cerimónia.

Entre notícias que iam saindo e conversas que se tinham para fazer tempo, começavam a ser conhecidos já alguns pormenores do que estava para chegar. O início na ponte de Austerlitz para todos os barcos que iriam levar os atletas, seis quilómetros de viagem com passagem por Notre Dame, Louvre e Eiffel, mais de 300 mil pessoas na margem do percurso, a presença quase confirmada de Lady Gaga (que se verificou), a parte final na zona do Trocadéro, tudo com cláusulas de confidencialidade para que aguentasse até ao dia. Tudo certo… com um pequeno pormenor: quem estava no Trocadéro tinha a Torre Eiffel bem perto do lado esquerdo, a bancada onde se encontravam Emmanel Macron, Thomas Bach e todos os chefes de Estado do lado direito, ecrãs gigantes em frente mas Sena e barcos, nem vê-los. Ali era só mesmo para a parte do fim.

Enquanto se esperava, viam-se entrevistas de figuras tão diferentes como Carl Lewis, rei Alberto do Mónaco, princesa Charlene (ambos antigos atletas olímpicos), Drogba, Tony Parker. Minutos antes do arranque, uma mensagem da nadadora síria Yusra Mardini para que a equipa de refugiados fosse acolhida por todos e mais uma mensagem do secretário-geral da ONU, António Guterres, que veria toda a cerimónia ao lado de Thomas Bach e Macron. Tudo a postos para algo que, visto de cima, começou sem chuva (só no início).

Um primeiro vídeo com Zinedine Zidane, campeão europeu e mundial de futebol pela França, a transportar a pira, três crianças a agarrar na mesma, uma figura misteriosa a ficar depois no comando das operações. Um primeiro show de fumos, neste caso a azul, branco e vermelho tal como a bandeira gaulesa na ponte d’Austerlitz. Uuuuaaaaauuuu, ouvia-se de quem podia apenas acompanhar esse momento pelos ecrãs. O primeiro de 85 barcos a sair, neste caso o da Grécia, às 19h39. Entre tantas coisas novas, a tradição de serem os helénicos os primeiros a desfilar mantém-se, sendo seguidos pela equipa de refugiados. Thomas Bach, presidente do COI, estava de lágrimas nos olhos. Era um momento especial de um conjunto de atletas que nunca deveria existir como um grupo mas que é cada vez maior com o passar dos anos.

Quando se fazia mais silêncio, ouvia-se o barulho de um helicóptero. Podia ser da transmissão, tendo em conta a operação gigantesca que a operado oficial construiu, podia ser da segurança, seguindo também essa operação gigantesca supracitada. Os barcos iam passando. De diferentes modelos, com um número aleatório de países. Os primeiros dois iam sozinhos, o segundo já levava Afeganistão, África do Sul, Albânia, Argélia e a sempre grande Alemanha (que parecia maior por estarem todos mais juntos). Estava a chegar o primeiro grande momento da noite, com Lady Gaga a cantar “Mon Truc en Plumes” em francês. “Apesar de não ser francesa, sempre senti uma ligação especial com os franceses e com a música francesa e queria apenas criar uma atuação que pudesse aquecer os seus corações e celebrar a arte e música francesas”, explicou depois.

Houve depois um momento de “homenagem” ao Moulin Rouge e ao cancan francês, seguindo-se um filme sobre como as medalhas para estes Jogos são produzidas com pedaços da Torre Eiffel e “escoltadas” por dois antigos campeões, Michael Phelps e Martin Fourcade. De seguida, mais um momento musical, desta feita nas janelas de outro edifício com o grupo de death metal Gojira a juntar-se à cantora lírica Mariana Viotti para “Ah ça ira” e “Carmen” com a Orquestra de Paris. A cerimónia ia prosseguindo, sempre com propósitos bem definidos que tinham sido apresentados num programa que explicava todas as simbologias.

(A partir daqui, esta crónica pode ter tendências mais parciais, não pelo que se estava a passar mas pelo facto e ter começado a chover torrencialmente sem que existisse um “abrigo” para jornalistas e convidados, sendo que até chefes de Estado e representantes de todos os países tiveram de usar uma espécie de pancho transparente impermeável que para os jornalistas era bem mais escasso e só para quem tivesse direitos. Com isso, a cobertura da cerimónia in loco no Trocadéro foi entre as escadas debaixo das bancadas, o centro de imprensa existente no local e a chuva de pé sem possibilidade de utilizar computador)

A cerimónia foi prosseguindo com vários momentos musicais como o de Aya Nakamura com “Pookie”, muita dança e uma revelação que só mesmo quando apareceu muitos passaram a saber: os famosos minions foram criados por um estúdio de animação francês, de nome Mac Guff, que depois vendeu os direitos à Illumination Entertainment. Também eles apareceram numa animação pelos túneis de Paris para tentarem salvar a Mona Lisa, antes de mais um momento forte da cerimónia que passou pela homenagem a várias mulheres que antecedeu o hino francês. Antes e depois, muita música e dança que seguiu um guião montado por Thomas Jolly: encanto, sincronização, liberdade, igualdade, fraternidade, irmandade, desportivismo, festividade, período negro, solidariedade, eternidade. Assim, com 12 palavras, tudo fez mais sentido.

Portugal, que esteve representado na cerimónia pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e pelo ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte, chegou no barco 60 com um total de 22 atletas, sendo que alguns acabaram por vir apenas para a cerimónia como os da vela (que regressaram depois a Marselha) ou os da canoagem. Assim, além dos porta-estandartes Fernando Pimenta e Ana Cabecinha, foram no barco que levava também o Qatar e a Coreia do Norte João Ribeiro, Messias Baptista, Teresa Portela, Filipa Martins, Gabriel Albuquerque, Duarte Seabra, Manuel Grave, Fu Yu, Jieni Shao, Eduardo Marques, Carolina João, Diogo Costa, Mafalda Pires de Lima, Miguel Nascimento, Taís Pina, Jorge Fonseca, Patrícia Sampaio, Bárbara Timo, Rochele Nunes e João Fernando. Saiu da Ponte d’Austerlitz às 20h51, passou pela zona do Iéna às 21h33. Cerca de 40 minutos, quase sempre à chuva, com a particularidade de terem algumas imagens exclusivas da RTP no início e pouco tempo depois na transmissão feita a nível global.

Houve alguns momentos que não passaram nas imagens mas ficarão para a história também através desse novo mundo das redes sociais. Os chefes de Estado todos vestidos com o poncho impermeável com exceções como o novo primeiro-ministro inglês, Keir Starmer. Os assobios na zona do público que estava nas margens do Sena quando se ouviu o nome de Israel (perante as palmas à delegação da Palestina mais tarde). As flores que a delegação da Argélia atirou para o Sena em homenagem às vítimas do massacre de Paris em 1961. O que passou e ficará para a história foi a forma como se conseguiu construir uma narrativa com a tal figura misteriosa, que chegou a cavalo à zona do Trocadéro para a parte final da cerimónia depois de ter unido todos os momentos da mesma. Seguiram-se os habituais discursos protocolares, o juramento olímpico por Florent Manaudou e Mélina Robert-Michon. O início de todo o trajeto da chama olímpica.

A equipa era de luxo. Começou em Zinedine Zidane, passou para Rafa Nadal, teve também Serena Williams com o espanhol no barco, foi para as mãos de Carl Lewis e Nadia Comaneci, andou por Amélie Mauresmo, Tony Parker, Michaël Guigou, Alain Bernard, Clarisse Agbegnenou, Laure Manaudou e Renaud Lavillenie, acabou em Teddy Riner e Marie-José Perec. Só aí apareceu uma das presenças mais aguardadas da noite, Celine Dion, a cantar “L’Hymne à l’amour” de Édith Piaf num dos patamares da Torre Eiffel que antes mostrara um enorme jogo de luzes. No final, mais um momento único na história das cerimónias de abertura: a chama olímpica, composta neste caso por um anel em chamas com sete metros de diâmetro sob um balão com 30 metros de altura e 22 metros de diâmetro a sobrevoar o solo no Jardim das Tulherias e não no Stade de France, como era previsível, numa homenagem ao primeiro voo de balão que foi feito.

A cerimónia chegava ao fim quatro horas depois. Da nossa parte, ainda haveria mais umas aventuras. Depois de 20 minutos à chuva de regresso ao autocarro destinado à imprensa, com 80% dos presentes na viatura a terem aquele olhar de pena que ninguém gosta de sentir perante alguém a pingar da cabeça aos pés, lá se conseguiu avançar mas não foi por muito tempo: o primeiro autocarro media passou, a partir do segundo todos teriam de ficar pelo menos uma hora parados porque o acesso à rotunda do Arco do Triunfo estava cortado para passagem dos chefes de Estado. Mais umas voltas, mais metros, mais comboios a abarrotar, mais uma chuvada até ao final feliz para um par de horas de descanso antes do início dos Jogos.

(E agora recuperamos o registo de quem já não anda à chuva e pode trabalhar à vontade sem problemas de ter água a escorrer pelas mesas, camisa ensopada e preocupação com tudo o que é eletrónico)

Valeu a pena? Valeu. É uma cerimónia que ficará para a história? Sim. Gostos não se discutem e quem diz que preferiu por exemplo a de Londres-2012 também terá argumentos de defesa. Esta, do rio Sena à questão dos barcos, passando pela própria chama olímpica, quis ser diferente e conseguiu fazer a diferença. Aliás, a satisfação era mais do que evidente entre todos os franceses que iam voltando a casa ainda de cara pintada com as cores gaulesas mas um sorriso nos lábios que dificilmente seria tão rasgado com um evento que fosse circunscrito ao Stade de France. Paris apostou forte, quis arriscar e conseguiu ganhar esse desafio dentro e fora da cerimónia, sem que tenham sido conhecidos quaisquer incidentes no plano da segurança.

No entanto, houve uma outra diferença para as outras cerimónias de abertura até aqui. Por norma, entre as habituais alusões a tradições, rituais e costume da cidade anfitriã, é um momento construído para os atletas, aqueles que na verdade estarão sempre na essência do que representam os Jogos Olímpicos. Neste caso, foi para eles – não para os atletas mas para os franceses (e parisienses). Não está em causa a vontade de fazer o possível para que as delegações gostassem da cerimónia e tivessem o mínimo desgaste possível entre todo o desgaste que iria haver pelas horas de pé que passariam mas, em quatro horas, houve mais.

Ninguém esqueceu uma cerimónia menos “mediática” mas que teve grande impacto em termos locais como foi a dos Jogos da Juventude de 2018 em Buenos Aires, quando a festa saiu também no estádio e foi feita à volta de uma pirâmide. No final, a ideia mais comentada era a capacidade de, através daquele momento, unir o país e as pessoas por umas horas com ambição que perdurasse no tempo. Paris fez o mesmo. Investiu e muito numa operação logística e de segurança sem precedentes, mostrou tudo o que a diferencia enquanto cidade cosmopolita que tenta resgatar o papel central que já teve no mundo mas que foi sendo diluído pelas piores razões. Agora, espera que esse impacto possa ser a semente de algo mais. A forma como correrem os Jogos terá grande influência nesse objetivo mas, para já, a aposta que nunca se desviou do caminho que foi traçado valeu a pena. Para Paris, para França e para um mundo à procura de mais paz.