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Um dia, a tia de Jorge Vaz Gomes diz-lhe que tem uma fotografia do bisavô. Mas é uma foto de um grupo de soldados e ninguém na aldeia consegue identificá-lo. A imagem tornou-se o "labirinto" do realizador
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Um dia, a tia de Jorge Vaz Gomes diz-lhe que tem uma fotografia do bisavô. Mas é uma foto de um grupo de soldados e ninguém na aldeia consegue identificá-lo. A imagem tornou-se o "labirinto" do realizador

Um dia, a tia de Jorge Vaz Gomes diz-lhe que tem uma fotografia do bisavô. Mas é uma foto de um grupo de soldados e ninguém na aldeia consegue identificá-lo. A imagem tornou-se o "labirinto" do realizador

Um bisneto em busca do “Soldado Nobre” da I Guerra: "É só mais um nome esquecido numa lista, agora tem um filme"

Com uma foto de grupo na mão, Jorge Vaz Gomes partiu em busca do bisavô, um soldado do Corpo Expedicionário Português durante a I Grande Guerra. O documentário chega quinta-feira aos cinemas.

Jorge Vaz Gomes procurou, ao longo de quatro anos, saber quem era o seu bisavô, um soldado do Corpo Expedicionário Português durante a Primeira Grande Guerra. “Soldado Nobre” é um documentário encantado e apaixonante de um bisneto à procura da história de um soldado esquecido. O documentário estreia nos cinemas na próxima quinta-feira, 13 de abril.

Homem de alguns ofícios, Jorge Vaz Gomes tem dado a cara e corpo a personagens de diversas séries de televisão, como “Madre Paula”, “3 Mulheres” ou a recente “Motel Valkirias”. Também é um realizador apaixonado por explorar a imagem, “Jean-Claude”, “Mapa-Esquisito” e agora “Soldado Nobre”. Quando o vir vestido como soldado, é possível que o reconheça. O realizador e ator tem a qualidade de se tornar familiar. E a família em “Soldado Nobre” importa bastante.

Um documentário sobre muitas coisas, mas parte de uma ideia básica: Jorge Vaz Gomes não tem uma fotografia do seu bisavô e quer uma imagem, algo que possa colocar na árvore genealógica da sua família. No processo de procurar a imagem, descobre mais sobre o seu avô, sobre a aldeia [Alfaiates], sobre a família, Portugal – de ontem e de hoje – e sobre a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial.

Eis o ponto de partida: uma fotografia de grupo. A tia de Jorge Vaz Gomes um dia diz-lhe que tem uma fotografia do bisavô. Mas é uma fotografia de um grupo de soldados e nem a tia, nem ninguém na aldeia, sabe quem é o bisavô de Jorge. Há suspeitas, por detalhes fisiológicos ou por semelhanças que a memória de alguns de entrevistados buscam nas filhas, nas netas. Como Jorge Vaz Gomes diz a dado momento nesta entrevista, aquela fotografia tornou-se “o labirinto onde ando à procura dele.”

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[O trailer do documentário “Soldado Nobre”]

O realizador começou neste projeto em 2013 e o que se vê em “Soldado Nobre” é o resultado de filmagens entre 2014-2018, onde Vaz Gomes entrevista pessoas da aldeia, militares, acompanha a cerimónia dos cem anos da Batalha de La Lys ou visita regiões francesas à procura de pistas. O “labirinto” leva-o a muitos lados, a muitos caminhos que esbarram em muros. Contudo, e essa é uma das belezas de “Soldado Nobre”, em nenhum momento se sente falta de esperança ou desilusão com qualquer que seja o resultado. No ato de Jorge Vaz Gomes – e o próprio sabe-o – há um movimento pela eternidade, de como uma foto sem legenda cria uma história em volta de Francisco Nobre, bisavô do realizador, que estava condenado a ser “só mais um soldado esquecido.” “Soldado Nobre” resgata-o desse esquecimento e cria a possibilidade de o fazer a muitos mais soldados.

Voltando à aldeia. No início do filme são dadas três hipóteses de bisavô a Jorge Vaz Gomes. Ele amplia aquelas caras, emoldura-as e anda à procura de uma história daqueles rostos, noutras fotografias, noutras memórias, noutras pistas que afinem a procura. O início da procura tem alguma ingenuidade e desarma o espectador: afinal, por onde se começa? E quando se começa, como se valida a memória da memória de outros? Não há ninguém vivo que tenha conhecido o bisavô do realizador, que morreu jovem, em 1923, vítima de mazelas da guerra.

Inevitável pensar nisto como um resgate da memória do “Soldado Nobre”. O heroísmo está nas mãos do realizador por conseguir tanto através de uma imagem enquanto, em simultâneo, mostra ao espectador o poder da imagem e de como ela pode ser o princípio de uma grande história, daquela que salva os esquecidos e lhes reescreve as memórias. Jorge Vaz Gomes tem razão quando diz que o seu bisavô, Francisco Nobre, é só mais um soldado esquecido. Um de muitos, que não têm uma história e que provavelmente nem deixaram uma fotografia para mostrar aos bisnetos. Ou uma memória viva para contar a sua história. “Soldado Nobre” é essa história, a de Francisco Nobre, do bisneto e de como podemos encontrar o que julgávamos perdido.

"Acabei por me familiarizar bastante com estas caras (...) Tenho esperança, à medida que o filme chegue a mais gente, que haja pessoas que saibam quem são alguns daqueles soldados."

Desculpe começar de forma abrupta, creio que irá perceber a razão. Está feliz com o resultado?
Boa pergunta… Penso que teria sido mais frustrante se não tivesse chegado a qualquer conclusão. Ter conseguido pôr um ponto final nesta procura foi bom.

A fotografia de grupo onde está o seu bisavô diz coisas diferentes a pessoas diferentes. Começa por ser algo ingénuo, mais para o final, quando entrevista militares saltam à vista pormenores interessantes. Foi também essa a relação do Jorge com aquela imagem?
Tudo começou porque eu andava à procura de uma fotografia do meu bisavô. Alguém disse que havia uma e, passado algum tempo, a minha tia disse-me: “Já tenho aqui a fotografia, quando vieres à aldeia [Alfaiates, no Sabugal], mostro-te”. Eu fui na expectativa de ver a fotografia do meu bisavô: ela não me tinha explicado que era uma fotografia de grupo. Quando a vejo, pergunto qual deles é o bisavô?: “Não sei, não faço ideia”.

Isso gerou um problema?
Sim, porque eu queria fazer um filme sobre o meu bisavô. Agrada-me esta ideia de misturar história com o passado familiar, o lado privado e o universal: gosto de literatura, cinema e ideias que cruzam estas duas escalas. Mas como é que faço um filme sobre o meu bisavô sem uma fotografia dele? No cinema a unidade fundamental é a imagem. A ideia de um filme sobre uma pessoa sem um desenho, uma fotografia, é algo complicado.

Jorge não quis fazer um filme que se tornasse num documentário sobre a Guerra, antes resgatar a informação e a vida de alguém votado ao esquecimento

jorge vaz gomes

Sobretudo porque não iria fazer ficção.
Exacto, se fosse fazer, iria buscar um ator e pronto.

Mas não podia. Como deu a volta à situação?
Trouxe a fotografia para Lisboa e meti-a no scanner. A fotografia tem 10x15cm. Tirei um scan de alta resolução e, a partir daí, comecei a viajar pela fotografia. Nessa altura foi também quando encontrei a ficha militar dele e uma do CEP [Corpo Expedicionário Português]. Comecei a cruzar a informação. Diz que ele tem uma cicatriz e começo a viajar pela fotografia. Apercebo-me de que a fotografia poderia ser a personagem do filme. Que seria o labirinto onde ando à procura dele [do bisavô].

Com isso nas mãos, sente-se tentado a procurar outras coisas?
Sim, aquele tempo, o passado, como era viver naquela altura. Quem são estas pessoas. E, também, a dificuldade deste gesto de tentar recuperar um passado que vive do plano do indivíduo e das pessoas que são esquecidas pela história. A grande história, por uma questão de ortodoxia, tradição clássica, deixa de fora a visão microscópica dos eventos. Só se vê as coisas de cima, de forma resumida, em grandes ideias. Estas pequenas vidas acabam por desaparecer por completo.

[Pode ouvir aqui o quarto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio e aqui o terceiro episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África]

Que vidas apareceram?
Sempre me fascinou a ideia de saber mais do passado da minha família. Fascina-me o passado, de uma forma geral, e, em particular, de saber de onde venho. Quão pobres eram as pessoas, ou os meus familiares, há duzentos anos. Houve pessoas na minha família que tiveram uma vida melhor, houve artistas, houve quem quis sair da aldeia, houve até quem viesse de outros países. O que tem graça é que este antepassado tem mais informação sobre ele do que todos os outros. Participou num evento histórico tão marcante que tem ficha, o nome dele está em arquivos. E isso não deve acontecer com mais nenhum antepassado meu.

"[O meu bisavô] foi gaseado e voltou bastante traumatizado com o que aconteceu. Bebia muito, tinha ataques de falta de ar, pesadelos à noite, ia para debaixo da cama com afrontamentos. Isto era o que a minha bisavó contava à minha mãe e à família"

Nunca conheceu alguém que o tivesse conhecido?
É dramático, todas as pessoas que o conheceram estão mortas há muitos anos. Não há ninguém. Quando eu era novo ainda havia pessoas vivas que se poderiam lembrar dele, mas quando comecei o filme já não. Há um fosso no meio, mas há histórias que ficam. E isso era importante para mim, resgatar no seio da minha família e da aldeia o máximo que conseguisse de história, da memória, por oposição à escrita da história. Queria resgatar a memória que existe na aldeia dos descendentes dos soldados: quem foram aquelas pessoas e o que aconteceu. Ainda há pessoas com memórias fortes desses soldados, falei com várias pessoas que não são bisnetos ou netos, mas sim filhos ou filhas desses soldados.

Isso é extraordinário.
A maior parte das pessoas que entrevisto são filhos ou filhas. O meu bisavô morreu em 1923, cinco anos depois do fim da guerra. Há pessoas que estão no “Soldado Nobre” que tiveram os pais soldados vivos até aos anos 1970. Quem quisesse fazer um filme como este nos anos 60 ainda teria conseguido falar com uma data de pessoas sobre aquela altura. Dou um exemplo que acho interessante: se pensarmos na Segunda Guerra, ainda há pessoas vivas, testemunhas, pessoas que participaram. Há cada vez menos, muitas tinham 5, 6 anos na altura. Por exemplo, na cerimónia que há todos os anos da libertação de Auschwitz, mostram sempre os sobreviventes: neste ano já eram pessoas que tinham 5, 6 anos na altura. Estão a desaparecer, mas ainda existem pessoas vivas. Outro exemplo, o das guerras napoleónicas não tens pessoas que viveram naquela altura, nem descendentes diretos. Não tens nenhuma memória viva na cabeça. Tudo o que sabes daquela altura está nos livros de história. Mas há uma pequena exceção a isto, a minha tia, a que aparece no filme, diz que quando era nova as pessoas velhinhas da aldeia se lembravam e um soldados francês que tinha ficado para trás e encontrou abrigo numa vila do Sabugal e ficou lá o resto da vida. Isto é o exemplo de uma memória muito fina que passou. A Primeira Guerra Mundial está a meio caminho entre estas duas guerra, está agora ali, a pouco e pouco, de deixar de viver na memória das pessoas para passar a existir apenas nos livros de história. Eu quis resgatar essas memórias antes que desapareçam por completo.

A foto de grupo que é tanto um enigma quanto força motriz de uma longa busca, que deu origem ao documentário que chega agora às salas

Alguma vez equacionou que o bisavô poderia ter sido um herói?
Procurei, andei a ver a lista dos condecorados. O livro que mostro no final do filme tem a lista de todos os condecorados do regime de infantaria dele, que era a número 12. Andei a ver as listas todas… há um lado meu que tinha vontade desse desfecho clássico, de que foi condecorado, por feitos na Batalha de La Lys. Mas se tivesse sido, teria sabido algo sobre isso, porque o nome dele aparecia noutras listas. É só mais um soldado esquecido. Agora, contudo, não o será porque irá estrear um filme nos cinemas sobre ele. Esta minha empreitada tem esse lado de subverter esta ideia de um soldado votado ao esquecimento.

Acaba por contar a história da Primeira Guerra Mundial e da memória desse tempo.
Foi algo que não procurei inicialmente. Não quis fazer um filme que se tornasse num documentário sobre a Guerra. Para mim era mais importante esta ideia, quão possível é resgatar a informação e a vida de alguém votada ao esquecimento há tantos anos. Sendo a Primeira Guerra o contexto que permite este filme, e que haja informação sobre o meu bisavô, acaba por se tornar numa plataforma, um contexto que define este passado. Agora, há um lado da Grande Guerra que a torna historicamente importante e relevante, que é o facto de ter sido o cenário de uma das piores experiências humanas dos últimos 100, 150 anos. A experiência das trincheiras, a vida que aqueles homens levaram nas trincheiras… é uma coisa, bom, ia dizer inimaginável hoje, mas está a acontecer o mesmo na Ucrânia.

E, tal como a Grande Guerra, criou-se a expectativa de que iria durar pouco tempo.
Aconteceu esta coisa estranha de termos uma guerra de trincheiras na Europa em 2023. É inacreditável. A única diferença militar em relação à guerra de 1914-18 é que agora existem drones. Todas as outras armas militares acima das que estão a usar, são tão devastadoras que, felizmente, há a sensatez de não as usar e acabar-se a ter uma guerra parecida com a que existiu. Não sei… espero que os soldados que estão a ser sacrificados nessa frente tenham melhores condições do que a que existia na guerra de 1914-18. No caso dos soldados portugueses, estiveram ali alguns meses. Os navios ingleses deixaram de patrulhar os navios que chegaram e os portugueses chegavam a ficar 5/7 meses nas trincheiras sem serem rendidos. As tropas inglesas, as francesas, rodavam ao fim de dois meses. Isto há de ter sido uma violência cruel, ficar tantos meses numa trincheira com bombardeamentos constantes, com gaseamentos, com as condições de salubridade que aquilo deveria ter… Não deviam ter sítio para se deitar, deviam dormir a pé, os problemas de alimentação, doenças… é inimaginável, deve ter sido das piores experiências que um ser humano pode sofrer.

Algumas imagens de "Soldado Nobre"

Que consequências sofreu o seu bisavô?
Foi gaseado e voltou bastante traumatizado com o que aconteceu. Bebia muito, tinha ataques de falta de ar, pesadelos à noite, ia para debaixo da cama com afrontamentos. Isto era o que a minha bisavó contava à minha mãe e à família.

Ele chegou a ter algum ofício?
Ele foi para o exército aos 17 anos, por isso não tinha uma profissão. Ficou órfão aos 16 anos e, nessa altura, escreve ao administrador do concelho de Sabugal a pedir alistamento no exército. Alguém atestou que ele vivia num estado de pobreza extrema. Isto são informações que estão na ficha dele, no arquivo histórico militar. Só que ele não fazia ideia que Portugal iria declarar guerra à Alemanha. Deveria estar à espera de algo sossegado, no Quartel da Guarda, para onde foi mandado. Portugal declara guerra em 1916 e em março de 1917 ele embarca para França. Na descrição dele aparece como primeiro tenente, ou segundo tenente granadeiro. Era uma posição que tinha a ver com a gestão de artilharia, bombas e coisas assim.

Há aquele momento em que lê um papel em que diz que irão ter uma folga. Encontrou informação do género que não tenha usado?
Encontrei muita coisa sobre castigos. E sobre punições. E era tudo muito violento, não era muito violento mas doloroso… porque eram pessoas que já estavam a sofrer tanto e, por qualquer insubordinação, eram logo castigados. Imagino que os castigos eram mais na ficha do que outra coisa, porque não havia castigo maior do que ali estar. Iam tirá-los das trincheiras e metê-los a trabalhar mais? Acho isso difícil. As folgas foi mais uma reivindicação minha, um momento em que eu recrio aquilo que eu gostava que eles tivessem tido: uns dias de folga, para irem passear um bocadinho.

É um bonito gesto. Desde o início do filme, há três hipóteses na fotografia de grupo que dizem que pode ser o seu bisavô. Como foi ter estranhos como bisavôs imaginários?
Acabei por me familiarizar bastante com estas caras [mostra as fotografias emolduradas]. Se eu vir uma fotografia onde eles apareçam, reconheço de imediato.

Pondera procurar os que não são o seu bisavô?
Ainda não consegui nada, mas estou na esperança. Como ando a seguir os grupos de Facebook da Primeira Guerra e andam sempre a aparecer fotografias novas, estou na esperança de saber mais sobre eles. Mesmo sobre a fotografia de grupo do “Soldado Nobre”, tenho esperança, à medida que o filme chegue a mais gente, que haja pessoas que saibam quem são alguns daqueles soldados.

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