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“Sou um tubarão no fundo do mar.” Esta é metáfora que François Bayrou usa para definir o seu calculismo político. O francês de 73 anos reconheceu, esta quinta-feira à revista Le Point, que tinha um “plano arquitetado e estruturado” na sua “cabeça” para o futuro da sua carreira. Com uma bagagem valiosa — passou pelo Ministério da Educação, da Justiça e pelo poder local — tem a reputação de ser um autêntico veterano nos bastidores da política francesa. E soube usar essa experiência e as circunstâncias a seu favor para ser nomeado, esta sexta-feira, novo primeiro-ministro de França, num momento em que o país enfrenta um cenário de instabilidade.
Fundador do partido Movimento Democrático (MoDem), François Bayrou é um centrista, que mantém relações cordiais com a maioria dos partidos políticos; até Marine Le Pen, da União Nacional (RN), já lhe deixou alguns elogios. Essa capacidade de formar pontes — à direita e à esquerda — é um trunfo que vai ser preciso para uma Assembleia Nacional altamente fragmentada. Nunca tendo pertencido a nenhum dos campos ideológicos, o veterano político foi elogiado pela sua capacidade de gerar consensos. Mas também foi criticado por, muitas vezes, entrar em contradição e mudar de opinião consoante a conjuntura.
Uma dessas mudanças de opinião mais drásticas na sua carreira política ocorreu com Emmanuel Macron. Quando o atual Presidente francês começou a fazer contactos no centro político para apoiarem a sua candidatura ao Palácio do Eliseu, em 2017, François Bayrou foi particularmente crítico. Lembrando a carreira de banqueiro na Rothschild, o novo primeiro-ministro disse estar “cético” sobre as possibilidades de Emmanuel Macron vencer as eleições, acusando as “forças do dinheiro” e os “grandes interesses financeiros” de estarem por trás da plataforma que apoiava o ex-ministro da Economia de François Hollande.
Cedo mudou de opinião e, em fevereiro de 2017, acabou por apoiar o atual Presidente. E não foi apenas um apoio tácito: François Bayrou colocou a máquina do seu partido ativamente na campanha ao lado de Emmanuel Macron. O bloco centrista Republique en Marche! — em que estava incluído o MoDem e o Renascença — venceu não só as presidenciais, como também as legislativas e obteve uma sólida maioria na Assembleia Nacional. A recompensa do centrista? Foi nomeado ministro da Justiça.
Porém, apenas exerceu funções no Ministério da Justiça durante um mês. Um escândalo envolvendo um alegado desvio de fundos do Parlamento Europeu para pagar salários a assistentes do MoDem levou François Bayrou a sair prematuramente do governo. Foi um duro golpe na carreira do político, num processo que apenas terminou em fevereiro de 2024, quando a Justiça francesa o absolveu (ainda que o Ministério Público tenha recorrido da decisão).
Numa carreira política marcada por altos e baixos, François Bayrou nunca desistiu da sua plataforma centrista. Um dos grandes objetivos da sua carreira seria tornar-se Presidente de França. Em 2020, até se chegou a comparar com o Presidente demissionário norte-americano, que se candidatou pela primeira vez à Casa Branca aos 77 anos. “Viram a idade de Joe Biden? 77 anos é a idade que terei em 2028”, sugeriu, no que pode ser interpretado como uma vontade de, na altura, concorrer ao cargo de Chefe de Estado.
Nos próximos tempos — Emmanuel Macron espera que pelo menos até 2027 — o futuro de François Bayrou não passará pelo Palácio de Eliseu, mas sim pelo de Matignon. A sua tarefa não será nada fácil. Ainda assim, este “centrista incansável”, como lhe chama o Le Figaro, preparou-se durante anos para um cargo de relevo. Esteve sempre lá, no “fundo do mar”. Agora é tempo para o novo primeiro-ministro navegar em águas turbulentas.
Aliados? Relação entre Macron e Bayrou está longe de ser linear
No plano teórico, são aliados: são dois rostos que representam o centro político em França. Na prática, a relação entre Emmanuel Macron e François Bayrou está longe de ser perfeita. Os dois homens têm uma personalidade forte e nem sempre estão de acordo. Com uma agravante. Contrariamente a muitos aliados, o político de 73 anos não tem qualquer problemas em criticar o Presidente na imprensa, algo que irrita o campo macronista. “A relação deles é única e singular. Nunca houve qualquer intermediário entre eles”, conta fonte do Eliseu à Le Point.
Por um lado, Emmanuel Macron terá sempre uma espécie de dívida de gratidão em relação ao veterano político. Foi ele que lhe prestou um inequívoco apoio na plataforma centrista que o levou ao Palácio do Eliseu, sendo que o apoio do MoDem (principalmente na Assembleia) ainda é vital para o Presidente. Por outro, François Bayrou “realiza o seu sonho político por procuração” com o líder francês. Esta aliança serve para concretizar, segundo a Le Point, um propósito de vida do homem de 73 anos: o de ver os dois partidos de centro — os socialistas e Os Republicanos — colapsarem.
Os interesses ideológicos e políticos nem sempre são suficientes para assegurar uma boa relação entre os dois homens. Desde as últimas remodelações, o nome de François Bayrou aparecia como um dos favoritos para ser primeiro-ministro. Porém, Emmanuel Macron resistia em nomeá-lo, sabendo que a presença do seu aliado no Palácio Matignon podia dar-lhe dores de cabeça. O líder do MoDem também desabafava aos apoiantes, segundo o Le Parisien, que o Presidente “nunca o nomearia, a não ser em circunstâncias excecionais”.
Essa conjuntura excecional chegou com a queda do governo de Michel Barnier, a primeira escolha de Emmanuel Macron para ser primeiro-ministro, após as eleições legislativas de julho, em que a Nova Frente Popular (NFP) acabou vencedora, mas muito longe de uma maioria. Já nessa altura François Bayrou vaticinava que o executivo duraria pouco e preparou terreno para chegar ao Matignon. Um dos seus aliados resume ao Le Parisien como Bayrou viu a situação, realçando que o Presidente francês tentou com Os Republicanos — o partido de Michel Barnier — e “não resultou”, para além de que alguém do Renascença também não iria funcionar, dado que as restantes forças partidárias (principalmente os socialistas) não iam aceitar esse cenário.
Neste contexto, François Bayrou, por causa da sua boa relação com o PS e com o centro-direita, era o homem certo na hora certa. Porém, a escolha não foi fácil para Emmanuel Macron. O Presidente francês adiou o anúncio por algumas horas, ultrapassando o prazo estipulado na passada terça-feira, de 48 horas — que terminaria na quinta-feira à noite. E a reunião decisiva que manteve com o político de 73 anos no Palácio do Eliseu, esta sexta-feira de manhã, não correu particularmente bem. À BFMTV, o deputado Bruno Fuchs, do MoDem, admitiu que houve “tensões” no encontro, mas que mostram a “independência e liberdade de François Bayrou”.
Nem à esquerda, nem à direita. Macron nomeia centrista François Bayrou para primeiro-ministro
A imprensa francesa apurou que Emmanuel Macron comunicou inicialmente a François Bayrou que não seria o próximo primeiro-ministro, sendo que Roland Lescure seria o sucessor de Michel Barnier. Convidou o líder do MoDem, ainda assim, para ser o número dois do executivo. O centrista de 73 anos recusou de imediato essa proposta. Mais: chegou mesmo a ameaçar retirar o seu partido da coligação centrista, deixando o Renascença sozinho na coligação na Assembleia Nacional.
A reunião foi, por isso, tensa. François Bayrou saiu do Eliseu convencido de que não seria eleito primeiro-ministro. No entanto, segundo a BFMTV, conselheiros de Emmanuel Macron apontaram-lhe que o presidente do MoDem seria a melhor opção para o cargo do chefe do governo. A contragosto, o Presidente francês cedeu. No Renascença, alguns membros não ficaram contentes. “E no final foi Bayrou quem vence”, comentou fonte do partido do Chefe de Estado à Le Point.
Os próximos tempos da relação entre o Presidente e o primeiro-ministro não se avizinham fáceis. “Ele não será facilmente disciplinado. E vai aproximar-se da esquerda”, avisa o comentador político Alain Duhamel à BBC. Em declarações ao canal de televisão Public Sénat, o historiador Jean Garrigues recorda que François Bayrou não deverá ser um “primeiro-ministro colaborador”, uma vez que “tem uma identidade política própria”. “Eles convergiram, mas sempre na crítica.”
“Talvez tenha sido isso que explica as dificuldades de negociação esta manhã com Emmanuel Macron”, conjetura Jean Garrigues, acrescentando que o “projeto de François Bayrou sempre foi fazer com que pessoas de diferentes ideologias trabalhassem juntos, sem que nenhuma perdesse a identidade, tentando que convirjam”. O historiador diz que Emmanuel Macron é diferente, preferindo impor a sua visão e mostrando pouca flexibilidade a ceder.
Porém, no que toca à nomeação de François Bayrou como primeiro-ministro, o Presidente francês cedeu. Mas foi quase obrigado a isso, sendo que o seu aliado o colocou entre a espada e parede. “Não teve outra escolha”, comenta-se no MoDem. Do Palácio do Eliseu, segundo a Le Point, olha-se com resignação para a nomeação: “Ver-se-á como um salvador. É o seu momento Cristo”.
No discurso de transição de poder, François Bayrou puxou dos galões e demonstrou esse “momento Cristo”. “Ninguém conhece a dificuldade da situação melhor do que eu”, afirmou. “Todos conhecem a situação difícil em que nos encontramos. Mas há um caminho que temos de encontrar, o da unidade em vez da divisão”, continuou, enfatizando o seu “papel” neste período complexo para França e para a Europa. É necessário, por isso, “enfrentar sem timidez a situação que é resultado de décadas inteiras à procura de equilíbrio”.
As raízes do experiente político que admira Henrique IV
Foi em Bordères, no departamento dos Pirenéus Atlânticos, que François Bayrou nasceu, a 25 de maio de 1951. A política entrou cedo na sua vida, já que o seu pai era presidente da câmara da localidade em que cresceu. Agricultor de profissão, Calixte Bayrou interessava-se por política e pertencia ao partido Movimento Republicano Popular (MRP), de centro-direita e com uma matriz democrata-cristã.
Do pai herdou muitas das suas ideias políticas. E também o facto de ser um católico praticante. Quando esteve em campanha, segundo a BBC, encarregou a sua equipa de localizar a igreja mais próxima, de forma a poder assistir à missa. Como escreve a Le Point, acredita na “presença de quem já não está presente fisicamente”. De Bordères também ficou a herança da língua bearnesa, um dialeto do occitano, que François Bayrou ainda consegue falar.
Na universidade, estudou literatura e tornou-se depois professor de História durante alguns anos. Ao longo da carreira enquanto docente, François Bayrou teve sempre uma obsessão: pelo reinado de Henrique IV. Nascido em Pau, localidade em que o veterano político é atualmente autarca, o monarca que ganhou o cognome O Grande foi o primeiro membro da dinastia dos Bourbon a governar França (entre 1589 e 1610).
No primeiro discurso enquanto primeiro-ministro esta sexta-feira, François Bayrou não esqueceu esse detalhe. “Como todo o mundo sabe, hoje é o aniversário do nascimento do Henrique IV. Como sabem, eu trato-o como um amigo”, contou o centrista. “Foi um amigo durante toda a vida. Escrevi um livro sobre ele”, indicou, lembrando que, tal como monarca, vai tentar levar a cabo a “reconciliação necessária” em França. “É o único caminho possível para o sucesso.”
Da Assembleia Nacional ao autarca de Pau: a carreira política de François Bayrou
A carreira política de novo primeiro-ministro começou na região dos Pirenéus Atlânticos e esteve intrinsecamente ligada à União pela Democracia Francesa (UDF), um movimento centrista, federalista e com correntes democratas-cristãs, sucessora do Movimento Republicano Popular, o partido do pai, e que se afastava, no centro-direita, do gaullismo. Em 1986, após uma passagem pelo poder local, foi eleito deputado para a Assembleia Nacional.
Após a vitória do bloco do centro-direita nas eleições legislativas de 1993, François Bayrou foi nomeado ministro da Educação no governo de Édouard Balladur, cumprindo um mandato de quatro anos. Quando saiu do cargo, passou a presidente da União pela Democracia Francesa e, em 1999, foi eleito eurodeputado.
Três anos depois, assumiu o maior desafio da sua vida: concorreu pela primeira vez a umas eleições presidenciais como candidato da UDF. Ficou em quarto lugar com 6,84% dos votos, sendo que, na segunda volta, declarou o apoio a Jacques Chirac. Durante essa campanha, ficou célebre um episódio em que François Bayrou deu um estalo a uma criança de 11 anos, que lhe “estava a mexer nos bolsos”.
François Bayrou não desistiu de chegar ao Eliseu. Em 2007, concorreu novamente, representando a mesma plataforma centrista. Ficou em terceiro lugar (18,57%) e não conseguiu passar à segunda volta, ainda que tenha vencido a região de que é originário — os Pirenéus Atlânticos — e tenha tido um bom resultado para o centro político.
Numa corrida entre o candidato da direita Nicolas Sarkozy e a socialista Ségolène Royal, François Bayrou deixou uma garantia, após um debate entre aqueles dos candidatos: não votaria em Sarkozy. Em público, o candidato centrista criticou por várias vezes as promessas da União por um Movimento Popular (UMP); mais tarde, em 2010, admitiu que votou em branco.
Esta animosidade em relação a Nicolas Sarkozy faz com que, ainda hoje, vários membros d’Os Republicanos (o partido sucessor do União por um Movimento Popular) olhem com muita desconfiança para François Bayrou, acusando-o de ter “traído” o centro-direita ao não revelar o sentido de voto. Mas o antigo primeiro-ministro ainda foi mais longe em 2012.
Pelo meio, após as presidenciais de 2007, decidiu fundar o Movimento Democrático, terminado com a União pela Democracia Francesa (UDF). Foi com esta plataforma que François Bayrou se candidata às eleições de 2012; ficou apenas em quinto lugar com 9,13%, num resultado tido como desapontante. Para a segunda volta, ainda assim, decide declarar o seu apoio ao socialista François Hollande, em vez de Nicolas Sarkozy, que se recandidatava.
Derrotado na segunda volta, Nicolas Sarkozy nunca lhe perdoou, bem como grande parte dos aliados que agora estão n’Os Republicanos. Num livro de memórias publicado em 2020, o antigo Presidente chamou “traidor” a François Bayrou. “Sempre traiu aqueles que o escolheram”, lamentava, preconizando que Emmanuel Macron teria essa “amarga experiência” — de ser traído por Bayrou — antes do final do seu mandato.
Se o centro-direita ficou ressentido, os socialistas olharam para François Bayrou com alguém independente e com sentido de Estado. Após o anúncio do novo primeiro-ministro, François Hollande considerou que a sua escolha não era uma afronta à esquerda. Ainda que admitisse que a sua nomeação não era “necessariamente o que esperava” — declarando a preferência por Bernard Cazeneuve —, o antigo Presidente considerou que a “questão está resolvida”.
Após 2012, o MoDem atravessou uma verdadeira travessia no deserto. Nas eleições legislativas daquele ano, obteve apenas dois lugares na Assembleia Nacional, um duro golpe para o partido. François Bayrou viu-se obrigado a retornar à política local. Já tinha tentado, no passado, candidatar-se a presidente da câmara de Pau, mas não tinha conseguido. A sua sorte mudou em 2014 e conseguiu governar aquela cidade localizada no departamento dos Pirenéus Atlânticos. Foi reeleito em 2020 e teria um mandato até daqui a dois anos.
Na primeira campanha de Emmanuel Macron para o Palácio do Eliseu, desempenhou um papel fundamental. Foi nomeado ministro da Justiça, mas uma investigação sobre um alegado desvio de fundos do Parlamento Europeu para pagar a assistentes do MoDem acabou por manchar a sua imagem. Em 2020, o Presidente francês atribuiu a François Bayrou o cargo de alto comissário do Planeamento, numa função criada pelo Chefe de Estado e que tinha funções apenas de aconselhamento e formulação de estratégias na economia, tecnologia e meio ambiente.
Ainda que tenha havido algumas tentativas tímidas de se candidatar à presidência da República em 2022, o novo primeiro-ministro voltou novamente a apoiar Emmanuel Macron. O seu nome foi sempre apontado para o Palácio de Matignon, mas as divergências (sempre longe do público) com o líder francês afastavam essa possibilidade. Porém, os maus resultados nas eleições legislativas da coligação centrista de 2024 mudaram o jogo.
Numa Assembleia Nacional com três grandes blocos — o da esquerda (numa coligação entre socialistas, França Insubmissa, ecologistas e comunistas), o do centro e da extrema-direita —, Emmanuel Macron está a ter várias dificuldades em obter uma maioria. Tentou obter o apoio inicialmente à sua direita, mas a União Nacional votou a favor de uma moção de censura para deixar cair o executivo de Michel Barnier.
O ex-porta-voz do MoDem na Assembleia Nacional, Bruno Millienne, indicou ao Le Monde que François Bayrou “passou o verão a trabalhar” neste cenário de quase ingovernabilidade, que considerava bastante provável que ocorresse: “O pós-dissolução do pós-primeiro-ministro”. Ao Le Figaro, o novo chefe do governo indicou que o “único caminho possível não é um governo de um lado a opôr-se aos outros”. É antes uma “equipa unida para enfrentar os gravíssimos problemas” que França e o mundo atravessam.
Aliado do centro-direita mas também próximo de socialistas, François Bayrou preparou-se para este cargo durante décadas. Conhecedor dos corredores do poder e das dinâmicas partidárias, o novo primeiro-ministro francês admitiu ter à sua frente uma missão “do tamanho dos Himalaias” para a qual assumiu contudo estar preparado. O antigo eurodeputado do MoDem, Jean-Louis Bourlanges, confirmou ao Le Monde que “François Bayrou tem uma profunda autoconfiança”. E nota que essa convicção em si mesmo vem da experiência e de alguém que “atingiu os seus objetivos após inúmeras provações”.