Dois minutos e 20 segundos. Esta foi a duração dos aplausos que Volodymyr Zelensky recebeu, quando chegou à Câmara dos Representantes. Senadores e congressistas reuniram-se para ouvir o discurso de pouco mais de 20 minutos do Presidente ucraniano, que trazia uma camisola verde tropa vestida — à semelhança das que os militares usam. O chefe de Estado, que fazia a sua primeira visita oficial desde o início do conflito com a Rússia, procurava assegurar o apoio do povo norte-americano para o próximo ano, assim como agradecer aos Estados Unidos da América (EUA) por toda a ajuda prestada nos dez meses de guerra com a a Rússia.
Foi um discurso marcado pela emoção. O Presidente da Ucrânia esteve à beira das lágrimas algumas vezes, tendo de parar de falar quando cumprimentava a diáspora ucraniana presente no Capitólio. E não foi o único a comover-se. A presidente demissionária da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, também se emocionou no final da intervenção. Aliás, a responsável norte-americana demonstrou ser uma das maiores simpatizantes de Volodymyr Zelensky, chegando-o a comparar com o ex-primeiro-ministro britânico, Winston Churchill.
“Contrariamente às expectativas e aos cenários mais negros, a Ucrânia não caiu, está viva e recomenda-se”, declarou Volodymyr Zelensky perante congressistas e senadores, acrescentando que o país “perdeu o medo” de Moscovo. “Nós derrotámos a Rússia na batalha pelas mentes do mundo”, disse. Apesar de ter ressalvado que os ucranianos revelaram uma “coragem que inspirou” todos, o certo é que o conflito “continua” e Kiev vai ter de “derrotar o Kremlin no campo de batalha”. Por isso, continua a ser relevante galvanizar o apoio dos Estados Unidos. E sim, os ucranianos vão “celebrar o Natal”. Talvez “à luz de velas”, anteviu Zelensky, “não por ser mais romântico, mas porque não haverá eletricidade, milhões não terão aquecimento ou sequer água corrente”. “Celebraremos o Natal, mesmo sem eletricidade, a luz da nossa fé em nós próprios não será apagada, e se o nosso povo tiver de ir para abrigos anti-bombas na véspera de Natal, os ucranianos continuarão a sentar-se à mesa de família e animar-se-ão”, garantiu. E, continuou, “não terão de adivinhar” os desejos uns dos outros, pois sabem que todos desejam o mesmo: “A vitória”.
Antes de chegar ao Capitólio, o Presidente da Ucrânia encontrou-se com o seu homólogo norte-americano, Joe Biden, na Casa Branca (nas imagens divulgadas da conversa, junto a uma lareira, vê-se o Presidente dos EUA a ler de um papel pousado nos joelhos o que diz ao líder ucraniano). Numa conferência de imprensa, os dois líderes mostraram estar em sintonia e preparados para o início do próximo ano, em que se espera uma intensificação das operações militares russas. O chefe de Estado norte-americano oficializou um novo pacote de ajuda militar e financeira à Ucrânia. Zelensky agradeceu e sublinhou que a Ucrânia não está a lutar apenas por si — mas também pela democracia no “mundo livre”.
O que leva a Ucrânia dos Estados Unidos (e o que ainda continua a pedir)?
Um dos objetivos da visita do Presidente ucraniano passava por conseguir mais armas para lutar contra a Rússia e aumentar a defesa aérea do país. “Precisamos de sobreviver a este inverno e proteger o nosso povo”, indicou Volodymyr Zelensky durante a conferência de imprensa conjunta com Joe Biden, numa alusão aos ataques russos às infraestruturas civis ucranianas, que deixam milhões de pessoas sem eletricidade num momento em que o país é assolado por temperaturas negativas.
Na opinião de Volodymyr Zelensky houve “boas notícias”, sendo a principal conquista dos diplomatas ucranianos o facto de os EUA concederem o sistema de defesa aéreo Patriot, que permite intercetar ataques aéreos e abater aeronaves, mísseis balísticos de curto alcance, mísseis cruzeiro e até drones. “Os vossos patriots são capazes de parar o terror russo”, disse Volodymyr Zelensky perante o Congresso.
Joe Biden enfatizou igualmente que o sistema de defesa aéreo Patriot “ajudará a Ucrânia a defender-se da Rússia”, sendo mesmo descrito como um “ativo crítico”. No entanto, não foi o único armamento que o Presidente norte-americano entregou à Ucrânia — serão enviados também mais HIMARS, drones e tanques. No total, a ajuda militar rondará os 1,85 mil milhões de dólares (cerca de 1,75 milhões de euros).
Ainda assim, esta é apenas uma parcela do pacote de apoio que o Congresso norte-americano aprovou recentemente. Na globalidade, Washington investirá mais de 45 mil milhões de dólares (aproximadamente 42 mil milhões de euros) no reforço de segurança não só da Ucrânia, como também dos países da NATO no leste europeu.
Durante as intervenções desta quarta-feira, Volodymyr Zelensky mostrou-se sempre “agradecido”, mas não escondeu que no futuro a Ucrânia poderá precisar de mais armamento e apoio financeiro. Não obstante, o Presidente dos EUA fechou a porta a estender a lista de armamento mais eficaz e moderno entregue à Ucrânia.
Por um lado, Joe Biden insistiu que quer garantir o “sucesso” de Kiev “no campo de batalha” — assegurando que vai apoiar a Ucrânia “o tempo que for preciso” —, por outro sublinhou que armas de longo alcance poderiam criar uma crise ainda maior na Europa: “Os nossos parceiros europeus não querem uma terceira guerra mundial, nem querem uma guerra com a Rússia.”
Os recados ao povo norte-americano
Ciente de que o pacote de ajuda representa um esforço para os cofres norte-americanos, Volodymyr Zelensky tentou passar a mensagem de que este apoio “não é caridade”. Em vez disso, o dinheiro dos Estados Unidos representa um “investimento na segurança global e na democracia” que a Ucrânia usará “de forma o mais responsável possível”.
O Presidente ucraniano focou-se na unanimidade em torno da ajuda à Ucrânia. Primeiro, porque este pacote de ajuda foi aprovado quer pela presidência, quer pelo Congresso. Depois, porque foi apoiado por democratas e republicanos. “Agradeço a Joe Biden e ambos os partidos a assistência inquebrável aos cidadãos ucranianos”, sublinhou no discurso do Congresso.
Além disso, Volodymyr Zelensky referiu que “nunca pediu aos soldados norte-americanos” para lutar na Ucrânia, afastando a possibilidade de uma possível guerra mundial. Porém, o Presidente da Ucrânia salientou logo a seguir que os militares ucranianos também “podem aprender a conduzir tanques e aviões” dos EUA.
O “ponto de viragem” da guerra
O inverno será “duro” e a “Rússia está a usar o frio como arma de guerra”, denunciou o Presidente ucraniano. Joe Biden falou mesmo numa “escalada” do conflito, no que concerne à destruição das infraestruturas críticas um pouco por todo o território ucraniano. “Escandaloso”, caracterizou o líder norte-americano, que destacou também a “determinação inquebrável” com que o povo ucraniano luta e como é forte o suficiente para resistir a “atitudes imperialistas”.
No discurso ao Congresso, Volodymyr Zelensky lembrou várias vezes Bakhmut, a cidade que visitou na terça-feira e que é, atualmente, uma dos pontos mais quentes do conflito. “Antes de vir para Washington estive na frente da guerra em Bakhumt, no leste da Ucrânia, onde as tropas russas e os mercenários contratados pela Rússia lutam desde maio.”
A cidade, localizada na província de Donetsk e que integra o Donbass, tem sido alvo de múltiplos ataques da Moscovo. Segundo o Presidente ucraniano, os “russos usam tudo o que podem contra Bakhmut”. “Viviam lá 70 mil pessoas e agora só restam alguns civis. Grande parte daquele território está coberto de sangue e está ocupado por trincheiras e tanques”, lamentou Volodymyr Zelensky, dizendo depois que as forças ucranianas têm “prevalecido” e que ainda não deram parte fraca.
Bakhmut pode tornar-se, assim, um símbolo de resistência — e um “ponto de viragem” no conflito. “O apoio [norte-americano] é crucial para ganhar no campo de batalha. Temos de realmente assegurar Bakhmut, que pode mudar a trajetória [da guerra] e pode ser uma cura para conseguir a liberdade”, afirmou o chefe de Estado da Ucrânia.
Num sentido mais amplo, Volodymyr Zelensky focou inúmeras vezes, durante os seus discursos, que quer que 2023 seja um ano “vitorioso” para a Ucrânia. Aliás, chegou mesmo a prometer que visitará os Estados Unidos daqui a um ano. Desta feita, sem uma guerra no seu território e com a “liberdade” conquistada para o povo do país.
As farpas à Rússia (e ao Irão)
Muitas das críticas endereçadas quer por Joe Biden, quer por Volodymyr Zelensky dirigiram-se à Rússia, mais concretamente ao Kremlin. O chefe de Estado da Ucrânia pareceu dissociar os membros próximos de Vladimir Putin da generalidade da população russa, a quem mandou um recado. “Os russos terão uma oportunidade para serem livres, quando derrotarem o Kremlin nas suas mentes”, assinalou, frisando que a população da Rússia está “envenenada”.
Reprovando as “táticas primitivas” que as forças russas empregam no campo de batalha, Volodymyr Zelensky acusou a Rússia de gostar de ser um “Estado terrorista”, daí não parar o conflito e continuar a combater na Ucrânia.
Joe Biden personalizou as críticas no seu homólogo russo. “Putin achava que ia dividir o Ocidente, ia dividir a aliança transatlântica e seria recebido com louvor na Rússia. Estava enganado, enganado e enganado”, atirou o Presidente dos Estados Unidos da América, vincando que o chefe de Estado russo vai “falhar” nos seus objetivos. “Esta guerra deveria acabar com Putin a ter dignidade suficiente para retirar as tropas, mas isso não vai acontecer.”
Elevando o tom contra Vladimir Putin, o Presidente dos Estados Unidos alegou que o seu homólogo russo “está a perseguir alvos civis, mulheres e crianças” e que, mais tarde ou mais cedo, terá de admitir que “não há forma de ocupar a Ucrânia toda”. “A Ucrânia ganhou a guerra de Kiev, Kharkiv e Kherson. A Ucrânia derrubou as expectativas da Rússia em todos os domínios”, completou Joe Biden.
Noutra frente diplomática, Volodymyr Zelensky apontou os holofotes para um dos maiores aliados da Rússia durante este conflito: o Irão. No discurso ao Congresso, o Presidente ucraniano acusou as autoridades de Teerão de compactuar com a “política genocida” de Moscovo. “Os drones iranianos mortíferos ameaçam a nossa infraestrutura”, apontou Zelensky, que deixou um aviso aos EUA: “Ou se para já o Irão, ou eles vão virar-se contra os vossos aliados”.
A paz? É uma “questão filosófica”
Apesar de um cessar-fogo parecer estar longe de se tornar realidade, Volodymyr Zelensky adiantou que discutiu com o seu homólogo norte-americano a sua proposta de paz de dez pontos, que o Presidente ucraniano tem vindo a divulgar à comunidade internacional, mas que a Rússia já rejeitou.
Admitindo que a Europa e o mundo “precisam de paz”, o líder ucraniano sublinhou que esta só é possível se se mantiver a “soberania e integridade territorial” da Ucrânia, isto é, um regresso às fronteiras antes de 2014, data em que rebentou uma guerra no leste do território ucraniano e a Crimeia foi anexada. Adicionalmente, Volodymyr Zelensky considera que devem ser tomadas em consideração as “reparações de guerra” — que a Rússia terá de eventualmente pagar.
Para Zelensky, a paz é uma “questão filosófica”, principalmente após persistir uma espécie de “sentimento de animosidade e de vingança” contra os russos na sociedade ucraniana. “Como é que vai um pai reagir a uma proposta de paz quando perdeu o filho após um ataque russo?”, questionou.
Nesta questão, o Presidente norte-americano mantém uma opinião idêntica. A Ucrânia tem de ser “livre, independente” e tem de se garantir a sua “segurança”. Assim, é necessário que os ucranianos tenham “sucesso no campo de batalha” e Joe Biden vincou que não se deve “subvalorizar o impacto da guerra e as perdas infligidas na Rússia”.
Para mais, Joe Biden insistiu que a Rússia não pode ganhar a guerra e que é Zelensky quem “tem de decidir” quando é que o conflito acaba, mas apenas quando a Ucrânia obtiver uma posição confortável para assumir as negociações e evitar, por isso, perder parte do seu território.
As trocas de símbolos
Volodymyr Zelensky deixou vários presentes aos seus anfitriões norte-americanos. O primeiro consistiu numa medalha de honra e uma carta oferecida a Joe Biden, que pertence a Pavlo, um militar ucraniano capitão de um batalhão que está na linha na frente da guerra em Bakhmut — e que lida diretamente com o armamento HIMARS, que os EUA enviaram para a Ucrânia se proteger da invasão.
Pavlo: o “herói” na linha da frente que pediu a Zelensky para entregar a sua condecoração a Biden
Como uma espécie de troca de “presentes”, esse mesmo militar vai receber uma moeda de comando que pertenceu a Beau Biden, filho de Joe Biden que morreu em 2015, anunciou o Presidente dos EUA.
No Congresso, o Presidente ucraniano voltou a oferecer uma espécie de lembrança de Bakhmut a Nancy Pelosi e à vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris. Desta feita, Zelensky deu uma bandeira ucraniana assinada por todos aqueles que defendem a localidade da província de Donetsk. Após esta última doação, o chefe de Estado recebeu uma bandeira norte-americana.
As comparações históricas
Durante a visita de Volodymyr Zelensky, foram várias as referências históricas, principalmente relacionadas com a Segunda Guerra Mundial. A própria líder da Câmara dos Representantes comparou a ida do ex-primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, a Washington em 1941, com a de Volodymyr Zelensky 81 anos depois. Segundo Nancy Pelosi, os dois são um símbolo da “luta contra a tirania”.
Já o Presidente ucraniano, evocou o ano de 1944 e comparou o líder da Alemanha nazi ao chefe de Estado russo. No seu discurso ao Congresso, Zelensky disse que os soldados norte-americanos lutaram, naquele ano, contra as tropas de Adolf Hitler, durante o Natal. Este ano, acontecerá o mesmo — só que serão as forças ucranianos a combaterem as “forças de Putin”.
Por fim, Volodymyr Zelensky também lembrou Franklin D. Roosevelt, Presidente norte-americano durante a Segunda Guerra Mundial, e a Batalha das Ardenas, que aconteceu entre 1944 e 1945 e ditou uma pesada derrota para as tropas da Alemanha nazi.