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“Oiça, só quero fazer isto: só quero encontrar 11,780 votos, que é mais do que os que temos. Porque nós ganhámos neste estado.”
Era o dia 2 de janeiro de 2021. A eleição presidencial dos Estados Unidos tinha ocorrido há dois meses e Donald Trump continuava a não reconhecer a vitória do adversário Joe Biden. Naquele dia, o ainda Presidente decidiu telefonar a Brad Raffensperger, secretário de estado da Geórgia, o homem que tinha como responsabilidade garantir que as eleições naquele estado decorrem dentro das regras.
Em causa estava o conjunto de mais de dez mil votos que Trump e a sua equipa continuavam a dizer terem “desaparecido” na Geórgia, embora não houvesse nenhuma prova concreta nesse sentido.
“As pessoas da Geórgia estão zangadas, as pessoas deste país estão zangadas. E não há nada de errado com dizeres que fizeste novamente as contas”, acrescentou Trump. Raffensperger, que fora eleito pelo Partido Republicano e era insuspeito de ser próximo de Biden, respondeu: “Senhor Presidente, o desafio aqui está no facto de que os dados que tem estão errados.”
“Não é possível eu ter perdido a Geórgia, não é possível”, foi repetindo Trump ao longo de toda a chamada, de cerca de uma hora, enquanto insistia para que o secretário de estado continuasse “à procura” desses votos. Um dia depois, uma gravação da chamada era publicada pelo Washington Post. Os democratas pediram investigações; os republicanos mantiveram-se em silêncio.
Agora, dois anos e meio depois, este telefonema é uma das principais provas incluídas no novo processo judicial que foi aberto contra Donald Trump. E que é o mais grave dos vários processos que o antigo Presidente enfrenta.
O caso “mais duradouro e ameaçador” até agora
A bomba explodiu na noite desta segunda-feira. A procuradora Fani Willis comunicou que vai acusar o antigo Presidente de 13 crimes e 18 pessoas próximas dele — como o advogado Rudy Giuliani e o antigo chefe de gabinete da Casa Branca Mark Meadows — de uma série de outros delitos. E a acusação principal é séria: conspiração para tentar alterar os resultados eleitorais das eleições presidenciais no estado da Geórgia.
Para isso, os procuradores terão de provar que Trump e os co-conspiradores criaram uma organização entre si com o objetivo de alterar os resultados da eleição de 2020. Muitas das provas que serão apresentadas em julgamento já são conhecidas: o telefonema do Presidente a Raffensperger e a vários outros responsáveis, a conferência de imprensa de Giuliani onde denunciou uma fraude eleitoral, a cópia de dados de urnas eletrónicas por parte de membros da equipa de Trump e o envio de eleitores do Colégio Eleitoral para aquele estado (muito embora ali só pudessem estar eleitores pró-Biden, por este ter vencido naquele estado).
Não é certo que as provas convençam em tribunal, mas formaram indícios suficientemente fortes para que um grande júri do estado decidisse avançar com a acusação formal.
Este é a quarta investigação judicial a surgir sobre Donald Trump. Há ainda o caso do ataque ao Capitólio, no qual foi formalmente acusado a 1 de agosto; as acusações de desvio de material classificado, que serão julgadas a partir de maio de 2024; e o caso do pagamento à estrela porno Stormy Daniels, que vai a tribunal a partir de março do próximo ano.
A defesa de Trump no caso do ataque ao Capitólio tem assentado na ideia de que as declarações do Presidente se enquadram no princípio da liberdade de expressão, o que indica que essa pode ser também uma defesa que virá a ser usada neste caso. Mas, como aponta a revista Time, o caso da Geórgia pode vir a ser “o mais duradouro, mais ameaçador e a dor de cabeça mais importante que Trump enfrenta”. Por uma razão simples: é um caso onde a pena, caso seja condenado, não se limita a uma multa, podendo ir de cinco a 20 anos de prisão.
Julgamento rápido pode ser transmitido na televisão
Trump terá de se apresentar até 25 de agosto junto das autoridades, para declarar-se inocente ou culpado. O xerife local já declarou que, até indicações em contrário do FBI, tenciona que Trump seja tratado como todos os outros arguidos, e portanto sujeito a algemas e a tirar fotografia para o cadastro.
Os especialistas apontam como este caso pode ser particularmente danoso para o ex-Presidente. O antigo procurador Harry Litman lembrou, numa coluna de opinião publicada no LA Times, que o estado da Georgia tem uma série de características pouco favoráveis a Trump. Uma delas é o facto de tender a manter suspeitos que podem intimidar testemunhas em prisão preventiva. A outra está relacionada com os julgamentos rápidos que permite, o que pode significar um julgamento ainda antes das eleições presidenciais de 2024, a que Trump é candidato.
E o julgamento pode ser uma dor de cabeça para o candidato Trump se acontecer antes das eleições, porque, ao contrário dos restantes, este pode ser transmitido na televisão. “Há uma diferença entre a acusação e o momento em que o réu está ali sentado no tribunal e em como isso tem impacto nos eleitores”, lembrou à CNN o antigo chefe de gabinete de Mike Pence, Marc Short.
RICO, o instrumento que Giuliani usou para apanhar “Fat Tony” e é agora usado contra Trump
O caso da Geórgia, porém, assenta numa estratégia ousada por parte da acusação. Trump não está apenas acusado de tentar interferir nas eleições, está acusado de conspiração. Isto graças a um instrumento conhecido por RICO, sigla para Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act, que é usado por vários procuradores para acusar um grupo de um crime grave que engloba várias atividades ilegais, em vez de vários pequenos crimes — e garantindo assim uma pena mais pesada em caso de condenação.
A procuradora encarregue deste caso, Fani Willis, já recorreu ao RICO para conseguir algumas condenações, incluindo contra um grupo de diretores escolares que conspiraram para alterar notas. E o mesmo fez o próprio Rudy Giuliani, como lembra o New York Times: quando era procurador em Nova Iorque, Giuliani conseguiu condenar assim vários grupos mafiosos e padrinhos do crime como “Fat Tony” Salerno e “Tony Ducks” Corallo.
Mas como apontou ao jornal o antigo procurador da Geórgia Michael J. Moore, a estratégia de recorrer ao RICO traz riscos: “Quando se pesca com uma rede tão grande, corre-se o risco de se ficar enredado nela”, disse. Por outras palavras: quanto mais complexa a acusação, mais difícil é os jurados compreenderem toda a teia.
Republicanos ao lado de Trump. Pelo menos por agora
Todo este processo vai decorrer em paralelo com a campanha presidencial na qual Donald Trump, candidato às primárias do Partido Republicano, participa.
Não é de todo certo que o caso judicial — e um possível julgamento — prejudiquem Trump, nem mesmo no caso de ele ficar a aguardar julgamento em prisão preventiva. Isto porque a Constituição norte-americana não impede um candidato de estar na prisão. Isso, aliás, aconteceu em 1920, quando o socialista Eugene Debs concorreu à presidência atrás das grades. Mas a concorrer pelo Partido Socialista, não era um favorito à vitória, como no caso de Trump. O que significa que esta será uma campanha inédita.
As sondagens também têm revelado que os casos judiciais não perturbam a popularidade de Donald Trump. Um estudo de opinião do mês passado do Times mostra que 71% dos eleitores republicanos consideram que o partido devia apoiar Trump — a mesma percentagem que acha que ele não cometeu nenhum crime.
A maioria desses eleitores concorda com a resposta do ex-Presidente, que diz que tudo não passa de uma “caça às bruxas” por parte de um “sistema” que o quer derrubar. E não é de esperar que seja diferente com este caso, como disse ao New York Times a consultora republicana Sarah Longwell: “Eles não conseguem distinguir o caso da Geórgia dos do Jack Smith [procurador que investiga o ataque ao Capitólio e o desvio de materiais classificados] porque tudo se mistura numa longa cobertura noticiosa sobre os problemas de Trump.”
O julgamento televisivo, porém, pode alterar essa dinâmica, com este caso a ganhar destaque. E o veredito pode ser decisivo para todo o futuro de Trump, prevê ao mesmo jornal Whit Ayres, especialista em sondagens do Partido Republicano: “Uma condenação por um crime grave pode mudar a opinião no partido, pelo menos de alguns indecisos. Por outro lado, se for ilibado isso praticamente garante que ele será o candidato à presidência.”
Uma coisa é certa: Donald Trump não vai recuar. Na mesma noite em que a procuradora Fani Willis anunciou a acusação, a campanha do ex-Presidente enviou um email aos apoiantes a pedir donativos contra o “QUARTO ATO da Interferência Eleitoral em nome dos Democratas”, nota o The Guardian.
Pouco depois, Trump anunciava uma conferência de imprensa para a próxima segunda-feira. Ali irá revelar toda a “Fraude Eleitoral” que diz ter acontecido no estado da Geórgia a favor de Joe Biden, prometeu. Quatro dias depois, Donald Trump terá de se apresentar às autoridades judiciais.