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“Nunca vimos uma cena assim em toda a História presidencial.” Foi assim que o historiador norte-americano Michael Beschloss — especialista no percurso dos vários Presidentes dos Estados Unidos e que ostenta orgulhosamente na sua descrição no Twitter o epíteto de “normalmente sóbrio” que lhe foi atribuído pelo Financial Times — descreveu os eventos do último dia.
Geoffrey Kabaservice concorda: “Sou historiador e não consigo lembrar-me de nenhum precedente”, confessa ao Observador este especialista no Partido Republicano, ao telefone a partir de Washington D.C. “Mas Donald Trump foi um Presidente sem precedentes”, acrescenta.
Ao final da tarde desta segunda-feira, dezenas de agentes do FBI entraram no resort Mar-a-Lago, que pertence a Donald Trump, e fizeram buscas nos aposentos privados do antigo Presidente. “Eles até abriram o meu cofre!”, queixou-se o visado no comunicado que enviou à CNN e que serviria para confirmar publicamente as buscas judiciais, já que o FBI e o Departamento da Justiça mantêm-se, até ao momento, em silêncio.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre “Que documentos esconde Donald Trump?”
Segundo o que revelaram pessoas próximas do milionário, como o filho Eric Trump, e fontes judiciais, em causa poderá estar a investigação aberta ao antigo Presidente por suspeitas de não ter entregado toda a documentação oficial da sua presidência ao organismo responsável por ela, os National Archives.
Mas os especialistas são unânimes: uma operação de tal dimensão a um antigo titular do cargo político mais importante do país indicia que em causa estarão suspeitas de crimes relevantes: “Duvido que isto seja por causa de uns quantos menus da Casa Branca que deviam ter sido devolvidos”, comenta com o Observador John Q. Barrett, professor especialista em História e Direito da Universidade de St. John’s. Mas que crimes podem ser esses?
Mais: pode esta investigação influenciar as ambições de Trump de se recandidatar ao cargo de Presidente? Possivelmente sim, mas talvez não da forma mais óbvia. Se o palpite de Barrett não se cumprir e a investigação for pífia, uma nova candidatura sai reforçada.
E, mesmo que as buscas produzam acusações formais ao antigo Presidente, isso não significa que Trump está politicamente acabado. Por um lado, muito provavelmente não é impedido de se candidatar à presidência. Por outro, pode até galvanizar parte dos seus eleitores. “Um dos efeitos interessantes disto é que pode criar uma certa solidariedade com Trump, que até estava em queda dentro do Partido Republicano”, resume Thomas Schwarz, historiador presidencial da Universidade de Vanderbilt. Em inglês chamam a isto “a blessing in disguise” — uma “bênção disfarçada”. Mas será mesmo assim tão simples?
Trump diz ser vítima de um Watergate “ao contrário”. Mas semelhanças podem ser outras
No comunicado de reação às buscas a Mar-a-Lago, que se prolongaram ao longo de todo o dia de terça-feira, Donald Trump partiu para acusações graves de “instrumentalização” da Justiça norte-americana, dando a entender que a administração de Joe Biden estaria a usar o Departamento da Justiça para o perseguir por razões políticas. “Qual é a diferença entre isto e o Watergate, quando operativos entraram no Comité Nacional Democrata? Aqui, ao contrário, os democratas entraram na casa do 45.º Presidente dos Estados Unidos”, afirmou.
“Watergate” é um nome pesado na História presidencial norte-americana. O assalto ao edifício dos democratas, ordenado a partir da Casa Branca, levaria a que, perante um processo de destituição em curso no Congresso, o Presidente Richard Nixon apresentasse a demissão. Curiosamente, esse anúncio aconteceu precisamente a 8 de agosto, o mesmo dia em que tiveram agora lugar as buscas em Mar-a-Lago — mas ocorreu 48 anos antes, em 1974.
As semelhanças com o processo maldito da política norte-americana podem não se ficar por aí, mas não são aquelas que Trump apontou. “A referência de Trump ao Watergate não faz sentido, a não ser que ele queira dizer que no Watergate houve uma investigação a um Presidente que revelou ser um criminoso e que, agora, o Departamento da Justiça está a investigar um antigo Presidente. E, se é esse o caso, é estranho ele comparar-se a Nixon…”, aponta o professor Barrett.
Já o colega Schwarz encontra outro paralelismo: “Nixon não queria entregar material classificado como secreto, em concreto as suas cassetes. Neste caso, o Departamento da Justiça parece ter obtido um mandado porque Trump terá levado consigo material considerado secreto para Mar-a-Lago — e é isso que está a ser investigado.”
Sem confirmação oficial das autoridades, continua por esclarecer se é essa a razão pela qual se realizaram as buscas. Mas a equipa de Trump tem dado a entender que sim: “Aquilo que eles disseram é que o objetivo da busca era o de os National Archives confirmarem se Donald Trump tinha ou não quaisquer documentos na sua posse”, afirmou à Fox News um dos filhos do antigo Presidente, Eric Trump.
Segundo a Lei de Registos Presidenciais, a Casa Branca deve preservar toda a documentação que passou pelas mãos (ou email) de cada Presidente e entregá-la no final do seu mandato aos National Archives. Este organismo define depois que documentação pode ou não ser tornada pública e quando. Se Trump não tiver entregado todos os registos que deixou, pode incorrer num crime — ou vários, caso esteja em causa informação sensível do ponto de vista da segurança nacional, por exemplo.
Wendy Olson, que trabalhou vários anos como procuradora no Idaho, explica ao Observador como se terá desenrolado todo o processo que levou às buscas: “Embora um mandado de busca a um ex-presidente nunca tenha acontecido, o uso de mandados de busca federais é muito comum”, diz. “Os agentes tiveram de entregar um documento onde juraram, perante um juiz, que consideram haver uma causa provável de que foi cometido um crime e de que poderá haver provas desse crime no local das buscas.”
Mas a antiga procuradora também aponta que, quer os agentes, quer o juiz, tinham noção do impacto político que as buscas a um antigo Presidente teriam. “Em crimes deste tipo, muitas vezes o juiz faz uma intimação para que os suspeitos entreguem os documentos procurados. É uma forma menos intrusiva de obter as provas. O facto de terem recorrido às buscas sugere que achavam que não haveria outra forma de obter estes documentos.”
Por outras palavras: isso pode indiciar que os investigadores acreditam que Donald Trump estava disposto a esconder esses documentos. Isso mesmo confirmou uma fonte ligada ao processo ao Miami Herald: “Os agentes federais conseguiram estabelecer que havia causa provável para o mandado porque Trump e os seus advogados já tinham entregado alguns documentos classificados como secretos que os National Archives pediram”, escreve o jornal da Florida, o estado onde ficar Mar-a-Lago. “Os agentes suspeitaram que Trump estava a guardar de forma ilegal outros documentos classificados como secretos da sua presidência.”
Os papéis rasgados “como confetti” e as possíveis ligações ao ataque ao Capitólio
Os documentos já entregues no passado a que essa fonte se refere são resmas de papéis que estavam guardados em 15 caixas e que foram devolvidas em janeiro deste ano. Para além de pequenos souvenirs da Casa Branca e prendas que foram oferecidas ao antigo Presidente enquanto estava no cargo, Trump tinha também levado consigo para Mar-a-Lago cartas oficiais, como as que lhe foram escritas pelo chefe de Estado norte-coreano, Kim Jong-un.
E a displicência do à altura Presidente com documentos oficiais já não é nova. Apesar de no passado ter criticado a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, por ter rasgado um documento oficial em público, há várias provas de que o Presidente Trump tinha o mesmo comportamento de forma recorrente. Em 2018, um funcionário dos registos da Casa Branca, Solomon Lartey, confirmou ao Politico que várias vezes usou fita adesiva para reconstituir documentos oficiais que lhe foram enviados da Casa Branca. “Às vezes os papéis estavam apenas rasgados ao meio, mas outras vezes estavam em pedaços tão pequenos que pareciam confetti”, pode ler-se no artigo.
Esta terça-feira, a coincidir com as buscas a Mar-a-Lago, mais detalhes sobre este tema: a correspondente do New York Times na Casa Branca, Maggie Haberman, revela no livro que vai publicar em breve sobre a presidência Trump que os funcionários da Casa Branca encontravam frequentemente papéis rasgados pelo Presidente na sanita — informação acompanhada de fotografias já divulgadas pelo site Axios.
Nem tudo, porém, terá ido pela sanita abaixo. De acordo com as informações que têm surgido nos media norte-americanos, o FBI suspeita que Trump não terá entregado todos os documentos oficiais e que ainda os guardava consigo. E isso abre a porta à especulação. Que documentos pode estar Trump a guardar que sejam tão sensíveis ao ponto de não se querer desfazer deles? Thomas Schwarz tem uma suspeita: “A minha suposição é que podem ser materiais possivelmente incriminatórios para Trump, relacionados com a investigação ao que aconteceu a 6 de janeiro.”
A 6 de janeiro de 2021, após uma manifestação onde Donald Trump esteve presente e classificou as eleições presidenciais em que foi derrotado como “fraudulentas”, uma multidão invadiu o Capitólio (edifício do Congresso) para protestar contra a confirmação da eleição do democrata Joe Biden como Presidente. Muitos estavam armados. O Congresso está agora a investigar se o antigo Presidente pode ter tido um papel nos motins — bem como o Departamento da Justiça.
“A não ser que o Departamento da Justiça dê mais informação sobre esta investigação, é razoável suspeitarmos de que eles podem estar à procura de coisas mais importantes do que documentos classificados como secretos”, acrescenta o professor da Universidade de Vanderbilt. “Uma vez mais, veja-se o exemplo de Nixon: o antigo Presidente não foi autorizado a levar nenhuma documentação da Casa Branca consigo quando saiu, precisamente porque os investigadores suspeitavam que poderiam ali encontrar provas de mais crimes relacionados com o Watergate.”
Quando o comité do Congresso pediu documentação aos National Archives sobre o 6 de janeiro, descobriu que alguns dos documentos tinham sido precisamente rasgados — e depois reconstituídos pelos funcionários do organismo, que colaram pacientemente todos os pedaços. Em causa estavam sobretudo documentos relativos às tentativas de Trump de pressionar o seu vice-presidente, Mike Pence, a não reconhecer a eleição de Biden no Senado, escreve o Washington Post. Pence, contudo, votou a favor da certificação dos resultados que deram a vitória a Biden. E esta terça-feira voltou a surgir em cena, mas agora ao lado de Trump: “As ações de ontem minam a confiança pública no nosso sistema judicial e o Procurador-Geral Garland deve dar uma explicação completa ao povo americano sobre porque foi tomada esta ação”, escreveu no Twitter.
Buscas não devem beliscar ambições presidenciais de Trump — até podem reforçá-las
Independentemente dos hábitos arquivistas de Donald Trump, certo é que buscas desta natureza têm inevitavelmente um impacto político — ainda mais quando as eleições intercalares para o Congresso são daqui a três meses e o próprio Trump tem deixado no ar a possibilidade de se voltar a candidatar à presidência em 2024.
Porém, mesmo que venha a confirmar-se que Donald Trump não cumpriu a lei em relação à entrega de documentação pública, uma condenação desse tipo não deve proibi-lo de concorrer a eleições. É verdade que a lei em causa — a secção 2071 do artigo 18 do Código dos Estados Unidos — prevê que tal possa acontecer se um responsável público “esconder, remover, mutilar, obliterar, falsificar ou destruir” documentação oficial.
Porém, a Constituição não impõe limitações de cadastro aos candidatos presidenciais e esse tem sido o entendimento dos especialistas norte-americanos — veja-se o caso de Hillary Clinton, que em 2016 não foi impedida de concorrer depois de se ter sabido que tinha usado um email não-seguro para comunicações oficiais quando era secretária de Estado. É claro que os instrumentos legais para o impedir de chegar à presidência em caso de condenação continuam a existir (a decisão caberia a cada Estado) e poderia mesmo depois de eleito ser alvo de impeachment. Mas, aponta o professor Barrett, “toda essa sequência é fantasiosa e difícil de imaginar que viesse mesmo a acontecer”.
Assim sendo, como podem estas notícias recentes influenciar uma nova candidatura à presidência de Donald J. Trump? O especialista no Partido Republicano Geoffrey Kabaservice crê que as buscas aos aposentos privados de um antigo Presidente como Trump até podem fazer mais bem do que mal às suas ambições: “Acho que isto o pode ajudar politicamente, porque para os seus apoiantes isto é a prova de que ele está a ser perseguido pelos democratas e pelo Deep State”, diz, referindo-se ao termo utilizado por muitos trumpistas para se referirem ao que consideram de autoridades obscuras que controlam o que se pode definir como “o sistema”. “As buscas não vão mudar o voto de nenhum republicano, aqueles que o apoiam vão continuar a apoiar. Isto até se encaixa na visão do mundo que já têm.”
Visão essa que foi amplamente explorada pelo próprio Trump no comunicado em que confirmou as buscas. “Isto é a instrumentalização do Sistema Judicial e um ataque dos Democratas da Esquerda Radical que querem desesperadamente que eu não concorra à presidência em 2024, sobretudo depois das sondagens mais recentes, e que farão tudo o que puderem para travar os Republicanos e os Conservadores nas próximas Eleições Intercalares”, escreveu o magnata. “Um ataque destes só poderia ter lugar em países de Terceiro Mundo. Infelizmente, a América tornou-se agora num desses países, corrupta a um nível como nunca tínhamos visto.”
Para além da linguagem semelhante à que usou nas duas campanhas presidenciais, Trump deu mais sinais de que deverá mesmo avançar para 2024: perante as buscas em Mar-a-Lago, pediu aos seus apoiantes que aumentem os donativos para combater “esta caça às bruxas”.
Trump pede aos seus apoiantes que lhe deem dinheiro para enfrentar “a caça às bruxas”
Perante a popularidade que Trump mantém nas sondagens — em caso de nova eleição obteria 40% dos votos, segundo um estudo recente da Universidade de Monmouth —, o Partido Republicano cerra fileiras em torno do antigo chefe de Estado. À beira das eleições intercalares, vários membros da Câmara dos Representantes defenderam vigorosamente Trump esta terça-feira: foi o caso do líder do partido naquele órgão, Kevin McCarthy, que prometeu inclusivamente investigações parlamentares à atuação da Justiça caso os republicanos reconquistem a câmara baixa do Congresso nas intercalares de novembro.
Até Ron DeSantis, o governador da Florida que é visto por muitos como uma possível alternativa republicana a Trump em 2024, saiu em defesa do ex-Presidente: “Uma República das Bananas”, escreveu no Twitter, sobre o que classificou de “instrumentalização das agências federais contra os opositores políticos do Regime”.
The raid of MAL is another escalation in the weaponization of federal agencies against the Regime’s political opponents, while people like Hunter Biden get treated with kid gloves. Now the Regime is getting another 87k IRS agents to wield against its adversaries? Banana Republic.
— Ron DeSantis (@RonDeSantis) August 9, 2022
“Nem sequer é claro que DeSantis possa concorrer nas primárias do partido contra Trump, porque ele vem do mesmo ramo de populismo e autoritarismo”, acrescenta Kabaservice. “E o facto de ele vir apoiar a ideia de Trump de que o antigo Presidente está acima da lei indicia que pode mesmo não querer desafiá-lo.”
O analista político considera que, a ter algum efeito, o mais provável é que estas buscas até antecipem o anúncio oficial da candidatura de Trump — uma decisão cujos efeitos nas próprias eleições intercalares ainda estão por apurar. Gary O’Donaghue, correspondente da BBC na Casa Branca, antecipa que “o Trump show está na estrada novamente” e que poderemos em breve esperar mais declarações sobre “caças às bruxas, farsas e perseguições políticas”.
Foi assim com a investigação às ligações da sua campanha à Rússia (que resultou na abertura de um processo de impeachment), com o caso do alegado quid pro quo com a Ucrânia (outro processo de destituição não concretizado) e agora com a investigação aos motins de 6 de janeiro — Trump diz-se vítima de um ataque político e muitos americanos concordam, com o antigo Presidente a nunca perder popularidade.
Kabaservice concorda que todo este processo “incentiva a vitimização de Trump”, mas desvaloriza o fator novidade — “tudo isto já estava em evidência, independentemente das buscas em Mar-a-Lago”. Já John Q. Barrett, por seu turno, diz que é impossível prever se este assunto vai “aquecer ou arrefecer” até à campanha de 2024. O que é certo, diz, é que tudo estará nas mãos dos eleitores: “Vai caber-lhes a eles avaliar tudo aquilo que Trump foi como Presidente, o que fez, os seus dois impeachments, a sua conduta depois de ter perdido contra Biden e o que fez desde aí até ao dia 6 de janeiro”, diz. “Até a forma como ele faz batota no golfe podem avaliar.” O tempo da Justiça e o tempo da política correm agora em paralelo.