André Gomes Pereira já sabia, em meados do ano passado, quando apresentou a candidatura aos apoios comunitários para agricultura biológica, que iria receber menos do que antes — na Quinta do Montalto, que administra, a redução rondaria os 10%, mas noutra exploração no interior de Castelo Branco chegaria aos 25%. Isso era “assumido e ficou claro“, à luz do novo desenho da Política Agrícola Comum (PAC) que lhe iria retirar, por exemplo, apoios específicos para a manutenção do “subcoberto vegetal” — a vegetação no solo entre as vinhas.
O que não tinha ficado, para si, claro foi o que acabou por acontecer na semana passada: é que mesmo já se tendo candidatado a um valor inferior ao do quadro anterior, foi notificado pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) de um montante de apoio 35% abaixo do que aquilo a que se propôs. “Foi com grande surpresa, isto nas vésperas do final do mês, em que temos o fluxo de caixa planeado a contar com esse dinheiro para ordenados. E de um momento para o outro não chega tudo”, refere, ao Observador. O produtor de 44 anos lamenta que aos agricultores não tivesse sido dada uma estimativa mais aproximada do valor de apoios que viriam a receber — muitas decisões são tomadas com meses, anos, de antecedência a contar com verbas que, afinal, não vão chegar.
As regras da PAC mudaram e a lógica de atribuição dos apoios para a agricultura biológica também, passando os agricultores a ser informados sobre um intervalo mínimo e máximo de apoio potencial, assim como um médio. O valor final a atribuir está dependente do volume de candidaturas, que aumentou muito acima do previsto. Resultado: há mais agricultores a ser apoiados, mas muitos apoios unitários foram inferiores ao previsto — os valores que têm sido revelados pelas confederações apontam para menos 35% na agricultura biológica e 25% na produção integrada. “Acho que há aqui uma falta de planeamento, de bom senso, um amadorismo do Ministério. Isto sabia-se desde meados do ano passado, quando foram feitas as candidaturas. Já devia ter sido comunicada há muito tempo para os agricultores se puderem preparar”, critica.
O administrador da Quinta do Montalto, em Ourém, de 44 anos, tomou conta dos destinos do negócio familiar quando saiu da universidade. O vinho biológico era, na altura, ainda um nicho, mas de lá para cá o crescimento não tem parado, como mostram os números da feira em Montpellier, em França, onde esteve esta semana — em 2005, quando começou, eram 120 mesas, agora foram mais de 1.700, “algumas com dois produtores”, diz, lamentando: “O grande problema foi não nos terem dado uma previsão orçamental inicial adequada. Não perceberem que a agricultura biológica está em crescimento acelerado”.
Na quinta-feira, quando regressava da feira em França esbarrou na fronteira do Caia, em Elvas, com a manifestação dos agricultores com quem partilha o descontentamento. “O Governo parece um avestruz que mete a cabeça na terra e espera que o problema desapareça. Não desaparece. E tiveram azar porque acaba por acontecer num período em que há um início de uma revolta pela Europa muito grande. Os agricultores estão a agir.”
Um passa-culpas para o IFAP. Onde falhou a comunicação?
O descontentamento já vinha de trás. Seis meses após a entrada em vigor do PEPAC, a Confederação Nacional dos Agricultores (CNA) já alertava para as dificuldades com que os agricultores se deparavam na formalização de pedidos de ajuda comunitária, que evidenciavam “as péssimas consequências de uma apressada e má reforma” da PAC. Já aí antecipava “grandes perdas nas ajudas, particularmente para as pequenas e médias explorações da agricultura familiar, para as zonas de minifúndio e para os baldios” e criticava as “perdas nas ajudas diretas, a não elegibilidade ou redução de áreas de baldio, a extrema complexidade e exigências no acesso às medidas ambientais”.
Os “cortes” já eram, portanto, antecipados por alguns agricultores, mas não na dimensão que se verificaram. A ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, reconheceu que houve um “problema de comunicação“, e que o IFAP se limitou a seguir os regulamentos em vigor, à luz das novas regras aprovadas pelo Governo. Mas ao mesmo tempo atirou culpas à instituição tutelada pelo próprio ministério por ter feito uma “comunicação” dos valores a pagamento “menos feliz” e antes de tempo. Na conferência de imprensa de quarta-feira, disse que não só o PEPAC permite a realocação de verbas como o pacote de apoio ao rendimento dos agricultores decidido pelo Governo ainda não estava fechado.
O PEPAC (Plano Estratégico da Política Agrícola Comum), um documento complexo com 2.000 páginas, foi aprovado pela Comissão Europeia em 2022. Trata-se, no fundo, do plano que orienta para o período 2023-2027 a aplicação em Portugal da PAC, que é revista de sete em sete anos. O primeiro ano de aplicação foi, portanto, o passado, e logo no arranque levantou críticas de atrasos na abertura das candidaturas e burocracia excessiva e complexa.
Este plano trouxe alterações relevantes em várias áreas, mas a que tem sido mais mencionada pelos agricultores foi aquela que levou a que sentissem um “corte” de 35% nas ajudas à agricultura biológica e 25% no caso da produção integrada.
Desde logo, os compromissos passaram a ser assumidos anualmente, e não a cada cinco anos como até aqui. Ou seja, os agricultores passam a ter de se comprometer a manter a agricultura biológica e produção integrada durante um ano, em vez de cinco, o que atraiu mais candidaturas do que o esperado. “É mais fácil comprometerem-se com um ano do que com cinco, dada a incerteza”, resume Luís Mira, secretário-geral da CAP, ao Observador.
Além disso, o modelo de pagamento mudou face àquele a que os agricultores destas áreas estavam habituados. O Governo tem explicado que, ao contrário do que acontecia antes, o modelo passou a ser igual ao que se aplicava noutros pagamentos do chamado Primeiro Pilar da PAC, para onde foram transferidas a agricultura biológica e a produção integrada: os agricultores são informados de um valor médio e de um máximo e um mínimo, ou seja, um intervalo acima do qual e abaixo do qual não podem receber apoios. O apoio final é atribuído consoante a procura. Segundo a tabela de pagamentos divulgada pelo IFAP, a diferença entre o valor mínimo e máximo pode chegar a várias centenas de euros, o que cria uma imprevisibilidade acrescida.
Por exemplo, relativamente a 2023, “o tomate de indústria vai receber o mínimo enquanto o arroz ou o milho, que vai receber pela primeira vez, recebe o valor máximo, porque o ajuste é feito em função da procura. Nunca esteve em cima da mesa fazer um corte. Iria, sim, ser ajustado o valor [do apoio] em função desse máximo e mínimo”, argumentou Maria do Céu Antunes.
Esta nova lógica criou expectativas que, sabe-se agora, não terão sido realistas. “Há um valor médio e um máximo e as pessoas olham sempre para o valor máximo“, explica Jaime Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Agricultura Biológica (Agrobio), que vê o “problema de fundo” no que diz ser a falta de realismo do Governo no pressuposto que inscreveu no PEPAC relacionado com a agricultura biológica — e que permitiu um desajuste entre a procura prevista e a procura real.
“Avisámos o Governo de que a expectativa de pessoas candidatas era bem maior do que estariam a imaginar. O Governo não ligou nenhuma a isso. O ponto de partida que está no PEPAC era 9% da superfície útil em agricultura biológica. Mas quando submeteram o PEPAC para aprovação da Comissão Europeia já estava nos 18%”, aponta.
Nas regras anteriores, era destinado à agricultura biológica um determinado bolo para os agricultores, que uma vez esgotado não permitia mais candidaturas. No último quadro, esse bolo esgotou-se rapidamente, e só voltou a abrir nova ronda de candidaturas fora da PAC, ao abrigo do Next Generation EU. Já as novas regras, por outro lado, permitem todos os anos a ‘entrada’ de novos agricultores no sistema de apoios, o que a Agrobio considera importante.
A associação também salienta que com a transferência do Segundo para o Primeiro Pilar, os apoios passam a ser financiados apenas pela UE, sem necessidade de dependência do Orçamento do Estado, como acontecia antes. Mas havendo mais agricultores para apoiar, a verba total, embora superior, tem de ser distribuída por mais beneficiários, logo o montante a cada um baixa. Por isso, e por reconhecer que os produtores criaram a expectativa de receber um valor que não era o correto, a ministra da Agricultura anunciou que o Governo irá mobilizar 60 milhões do Orçamento do Estado para garantir pagamentos de acordo com o esperado, sem cortes, este ano.
A Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) também tem acusado o Governo de ter sido pouco realista na definição da área a beneficiar pelos apoios para reconversão em agricultura biológica, argumentando que ficou muito abaixo da procura que se veio a registar. O Observador pediu estes dados concretos ao Ministério da Agricultura mas não obteve resposta.
Em comunicado, o Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), depois de a notificação dos valores a pagamento ter chegado aos agricultores, reconheceu a procura acima do previsto: no caso da agricultura biológica foi de 715 mil hectares para 640 mil hectares projetados; na produção integrada, foi de 400 mil hectares para 350 mil hectares previstos. O IFAP salientou que os números refletem um aumento da área beneficiada e do número de agricultores abrangidos. E que os valores a atribuir estão “dentro dos intervalos previamente comunicados”.
O problema fica resolvido este ano. Mas e no próximo?
Na véspera do dia marcado para o arranque das manifestações dos agricultores, o Governo anunciou um “pacote de apoio ao rendimento dos agricultores” que inclui a garantia de que os “cortes” sentidos pelos agricultores não são aplicados e que estes recebem o valor que esperavam. A medida custa 60 milhões de euros e como vem do Orçamento do Estado (e não da UE) é catalogada como “auxílio de Estado”, o que requer uma autorização da Comissão Europeia (que o Governo acredita que será concedida).
Governo anuncia pacote para agricultores de 440 milhões que inclui reversão dos cortes contestados
O Governo tem-se comprometido a avançar já com algumas medidas — a linha de crédito de 50 milhões sem juros estará disponível em fevereiro, mesmo mês em que avança o reforço do Segundo Pilar para “assegurar a imediata reprogramação do PEPAC e viabilizar o pagamento das candidaturas às medidas de Ambiente e Clima”, no valor de 60 milhões de euros. Já a redução em 55% do ISP do gasóleo agrícola — e que já estava prevista no Orçamento do Estado para este ano — estará em vigor a partir da próxima semana.
Mas outras — como o apoio de 200 milhões de euros para cobrir as quebras de produção com a seca ou a reversão dos “cortes” sentidos pelos agricultores — têm de aguardar pela Comissão Europeia, o que segundo Maria do Céu Antunes pode demorar, “no melhor cenário”, dois meses, considerado tarde para os agricultores em protesto.
Mas a garantia de que essa ajuda extra vai chegar tem sido reiterada nas reuniões à distância com representantes do Movimento Civil de Agricultores, que é quem tem organizado os bloqueios e marchas lentas dos últimos dois dias, e com associações, como a Agrobio. Em comunicado, a associação, que teve na quinta-feira uma reunião com a ministra Maria do Céu Antunes, diz que a governante reconheceu um “erro na programação” e que a redução das ajudas não vai ocorrer este ano porque “está a ser feita reprogramação”.
Os compromissos com os agricultores serão “cumpridos” e pagos “ao longo do ano”. E para os anos seguintes? Jaime Ferreira indica ao Observador que não foi dada a garantia de que a reprogramação entregue agora vá também incluir mexidas que impeçam o problema deste ano de se repetir a partir de 2025.
A CNA, em comunicado, também considera que as propostas do Executivo, tirando a do ISP, são “um caderno de encargos para o próximo Governo” e que ficam por resolver “todos os problemas relacionados com os preços à produção e a redução brutal nos apoios aos agricultores utilizadores de áreas de pastoreio nos baldios”.
Os agricultores receiam que, se nada mudar, o problema regresse para o ano. “Há que rever os montantes atribuídos nos ecorregimes, como são os da agricultura biológica e da produção integrada. Sabendo que, em teoria, este problema fica resolvido este ano, de acordo com o que veio a lume com a ministra e o IFAP, não está resolvido para o ano nem para o outro”, receia o produtor André Gomes Pereira. “Há uma falta de previsibilidade que nos condiciona imenso, para podermos tomar decisões estratégicas de médio e longo prazo.”
Para já, o agricultor de 44 anos conseguirá cumprir com os compromissos com os fornecedores, os clientes e a banca. Mas admite repercutir a quebra dos apoios nos preços e adiar investimentos previstos, incluindo os que tinha previstos para tornar a adega “mais eficiente e competitiva”. “Vamos andar dois anos sem saber quantas pessoas se vão candidatar? Sem saber quanto vamos receber? Há culturas que se não forem ajudadas não têm racionalidade económica”, aponta. O tema estará em cima da mesa na reunião de segunda-feira entre o Governo e várias confederações do setor.