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Quando Maria Callas aterrou em Lisboa, em março de 1958, já era uma cantora de ópera consagrada. O país era cinzento, mas a cantora trouxe um brilho que ainda hoje dura. Tinha-se estreado nos Estados Unidos da América, em Chicago, em 1954, com a “Norma” de Bellini, e tinha reconstruído a sua imagem física. Era uma verdadeira diva. Começou por conquistar a audiência logo no aeroporto, e depois também num teatro de São Carlos que, por duas noites, se encheu de gente para a ver cantar e representar em “La Traviata”.
Foi “excecional” e “extraordinária”, veredicto do maestro António Victorino de Almeida, que esteve entre a assistência num desses momentos. “A Callas foi a pessoa que marcou o momento histórico ímpar”, sublinha ainda Elisabete Matos, atual diretora criativa do teatro, confirmando que a capital parou com a sua presença. Passados 65 anos recordamos a sua passagem por Lisboa.
Uma diva trazida por um vendaval
“Enfim Lisboa!” terá exclamado Callas quando aterrou na capital, segundo relata a revista O Século Ilustrado. A cantora de ópera aterrou no aeroporto da Portela vinda de Madrid e no meio de um grande vendaval. Antes, tinha estado em tournée pelos Estados Unidos da América. O Diário de Notícias de 26 de março de 1958 dedicou ao momento uma grande parte da sua primeira página com o título “Um vendaval trouxe-nos Maria Callas. Simpática e sorridente e sem ‘incidentes’”. Callas chegou com o marido, Giovanni Battista Meneghini, e com o seu cão, um caniche chamado Toy. A expectativa era grande e o jornal descreve a agitação antes da sua chegada. “Havia um desejo irreprimível de ver Maria Meneghini em carne e osso, de observar as suas reações, de verificar como se comportava. Discutia-se a voz, o físico, a fortuna e o temperamento da famosa soprano. Sobretudo o temperamento.”
Maria Callas era precedida pela fama de algum mau feitio. Em janeiro desse mesmo ano, durante uma atuação da “Norma” de Bellini em Roma, e perante não só toda a alta sociedade da época como também do Presidente de Itália, a cantora abandonou o palco depois do primeiro ato. Alegou que se sentia doente, mas foi muito criticada o ficou no ar a ansiedade de que o caso se pudesse repetir, nomeadamente, em Lisboa. Quando Maria Callas saiu, sorridente, do avião as dúvidas dissiparam-se com o vendaval. “Um desmentido total para os anti-Callas. A ‘toilette’, essa, simples, mas chique: casaco cor de cereja ‘cardinal’, com gola de pele; um chapelinho ‘mignon’, da mesma cor; sapatos e luvas pretas; nas orelhas, belíssimas pérolas. Um lenço de seda, de bom gosto, a defender a garganta. O penteado, com franja a cair a testa, recordava a adorável Audrey, e dava-lhe um azougado, ‘gavroche’”, escreveu o Diário de Notícias.
A diva foi recebida pelo diretor do Teatro de São Carlos, José de Figueiredo, com um ramo de flores, mas também lá estava o cônsul da Grécia, bem como admiradores e “mirones”. Perguntaram-lhe se estava “contente por se apresentar em Portugal”, ao que respondeu: “Sem dúvida. Só faço o que me dá prazer. De contrário não teria vindo… De resto, conheço bem a magnífica tradição do vosso teatro de S. Carlos”.
O jornalista do DN não resistiu a questioná-la sobre uma certa rivalidade que seria alimentada na época entre Maria Callas e Renata Tebaldi. À primeira chamavam Diabo e à segunda Anjo. Mas Callas não cedeu à provocação. “Não parece o tal ‘diabo’ de que se fala nos jornais italianos”, dá conta a revista O Século Ilustrado. “Elegantíssima, talvez um pouco alta de mais para mulher, é o tipo grego definido: enormes olhos azuis, boca rasgada, dentes corretos e alvíssimos. O nariz é que foge a esse classicismo. É um pouco pronunciado em demasia e parece afilar-se terrivelmente quando Maria Callas manifesta o seu mau humor.” A RTP também marcou presença. À televisão, Callas disse, em francês, que esperava que os portugueses ficassem felizes consigo e que estava em Lisboa para “os fazer felizes”.
Do aeroporto partiu para o hotel onde ficou hospedada por esses dias, o Aviz. Para a diva da ópera nada menos do que a unidade de alojamento estrela de Lisboa, que a revista Life descreveu como o “mais sumptuoso hotel do mundo”. A observação foi feita na edição de 27 de novembro de 1950, num grande artigo sobre Calouste Gulbenkian, que fez deste endereço a sua morada permanente, desde a primavera de 1942 até à sua morte, em 1955. Entre 1933 e 1961, o Aviz foi o destino de ilustres figuras dessas décadas quando passavam pela capital portuguesa, tratando mesmo do serviço de residência no Palácio de Queluz, aquando da visita de Isabel II, em 1957.
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Na primeira noite em Lisboa, Maria Callas teve ensaio em São Carlos. No Diário Popular de 27 de março antevia-se o primeiro espetáculo da soprano, marcado para essa mesma noite. O jornal conta que a artista terá dado um exemplo de profissionalismo e levado muito a sério o ensaio geral, com caracterização e mudanças de figurinos, como se do verdadeiro espetáculo se tratasse. Quem assistiu disse que “não se poupou a voz no ensaio, como fazem quase todos os artistas: cantou a plenos pulmões…”, escreve.
Uma produção, duas noites e a maior ovação de sempre
Interesse e vontade de trazer Maria Callas a Lisboa não faltava. Mas havia também um senão, o cachê da diva, que estaria um pouco longe das possibilidades de São Carlos. Contudo, os astros alinharam-se e Maria Callas também manifestou interesse em vir a Portugal. Na verdade, a cantora lírica queria conhecer o Rei Humberto de Itália, que na altura estava por cá exilado. A marquesa de Cadaval foi a intermediária, tanto no encontro com o Rei como com o diretor do Teatro de São Carlos na altura, José de Figueiredo. Talvez tenha sido mesmo a fada madrinha, que permitiu realizar os desejos de todas as partes. Ou seja, São Carlos recebeu a diva para duas noites inesquecíveis e Maria Callas esteve com o monarca italiano como desejava.
Organizou-se então uma produção de “La Traviata”, propositadamente para Lisboa. “Ela veio com muito entusiasmo para esta produção”, conta Elisabete Matos, atual diretora criativa do teatro. A ópera de Verdi era bem conhecida da cantora, só entre 1951 e 1958 deu voz à protagonista, Violetta Valéry, mais de 60 vezes em teatros de diferentes países. “Era um papel em que se distinguia o talento e a grandiosidade da Maria Callas”, afirma a responsável ao Observador. Explica-nos que “La Traviata” é “uma ópera que quase precisa de três sopranos para ser encarnada com o melhor dos resultados. É preciso no primeiro ato ter toda esta capacidade da ligeireza dentro do dramatismo, ou seja, a facilidade vocal para atingir notas absolutamente estratosféricas”, contudo “o segundo ato e o terceiro são de um peso e de um dramatismo que exigem quase outro tipo de cantor, ou de vocalidade. E ela tinha”.
Foi escolhido um elenco à altura da diva, que não só encarnava a protagonista, como ela própria também o era. Em palco foi acompanhada pelos cantores Alfredo Kraus, Mario Seremi, Laura Zanini, Piero de Palma, Vito Susca e os portugueses Álvaro Malta e Maria Cristina de Castro. Coube ao maestro Franco Ghione dirigir. “Especulou-se muito sobre a dificuldade de lidar com Maria Callas, mas há um testemunho das pessoas que com ela trabalharam, a Maria Cristina de Castro e o Álvaro Malta, que disseram que foi uma pessoa absolutamente acessível”, conta Elisabete Matos.
Embora as duas atuações de Maria Callas tenham sido marcantes, pouco espólio resta da sua passagem no São Carlos. Pelos bastidores, por onde seguimos, o coordenador do arquivo do teatro partilhou algumas imagens que testemunham as atuações da diva e a sua chegada a Lisboa e estivemos também no camarim que a diva terá usado quando atuou, atualmente despido de glamour. Callas “teria as suas exigências, mas não é do meu conhecimento terem sido postas condições que não fossem possíveis de lhe oferecer”, garante a atual diretora do teatro. As paredes num suave tom de amarelo são hoje o oposto do ambiente que foi criado para receber a cantora. “O camarim do Teatro de São Carlos, destinado a Maria Callas, foi decorado propositadamente com um gosto requintado, para lhe permitir ambiente confortável. Um espelho de estilo e flores, muitas flores”, descreve O Século Ilustrado. “Foi forrado especialmente a veludo e ornamentado com gravuras”, especifica o Diário Popular, e o acesso era muito restrito.
A produção teve duas noites de espetáculo, 27 e 30 de março de 1958, e foi na segunda que aconteceu a maior ovação de sempre do teatro de São Carlos. Os aplausos prolongaram-se durante muito tempo e, manda a tradição, que a protagonista saia do palco e, perante o som das palmas, regresse para agradecer. Maria Callas foi chamada ao palco, nada mais nada menos, que 42 vezes. “Outras grandes figuras passaram por São Carlos, mas a Callas foi a pessoa que marcou o momento histórico ímpar”, conclui Elisabete Matos.
650 escudos por um bilhete para ver Maria Callas
Na primeira noite, o general Craveiro Lopes e a mulher assistiram no camarote presidencial. Também estiveram presentes Marcelo Caetano “e toda a sociedade daquela época, mas também os grandes admiradores da ópera e de Maria Callas. Um misto de público diferenciado. Se calhar, como acontece sempre na primeira récita, foram muito mais os convidados e pessoas ilustres daquela altura”, descreve Elisabete Matos. Naquela altura a ópera movia bastante público e algum quereria, certamente, ver o mito e participar desse acontecimento. O Rei Humberto de Itália também assistiu à performance de Maria Callas, de acordo com a revista Flama.
O teatro não terá sido suficiente para todos os que a queriam ver. “Lembro-me de ter lido que os camarotes, onde normalmente estão quatro ou cinco pessoas, naquela altura passaram a ter 10 pessoas. O teatro estava a abarrotar. Agora tem cerca de 820 bilhetes, na altura eram mais. Ao terem aumentado todos os camarotes com o dobro das pessoas, teríamos talvez 1200 ou 1400 pessoas.”
Do lado de fora do edifício, no coração do Chiado, procuravam-se bilhetes (quase) a qualquer preço e com anúncio nos jornais. Haveria pessoas disponíveis para pagar um valor dez ou vinte vezes superior ao de um bilhete habitual. Uma das ofertas citadas pelo Diário Popular é de 650 escudos. A quantia seria bastante avultada para a época, mas nem assim se abdicaria de ir ver a diva da ópera.
O dress code para as duas noites de récita pedia fraque para os homens e vestido comprido para as mulheres. Numa reportagem de arquivo da RTP é possível ver a azáfama nos corredores do teatro nas noites de espetáculo. As senhoras, com cintura apertada e em ricos tecidos, como mandava a moda da década de 1950. E, além das clutches, saltavam à vista jóias brilhantes.
Entre a audiência, encontrava-se o maestro António Victorino de Almeida. Aceitou um convite que lhe foi feito e sentou-se num camarote para assistir a uma das récitas. “Era excecional, era extraordinária, e foi uma cantora que trouxe à ópera um elemento que não era comum, que era a representação”, conta o maestro. “No final da “Traviata” a figura principal morre, e a última ária é antes dela morrer. Praticamente todas as cantoras cantavam de pé e atiravam-se para o chão no final. A Maria Callas estava deitada num sofá com a cabeça pendente”, conta o maestro, lembrando um comentário feito à época. “Uma crítica bastante infeliz que lhe foi feita em Lisboa dizia: ‘pena a última nota ter saído engasgada’. Saiu porque ela quis que saísse engasgada. Uma pessoa a morrer não dá uma uahhhh [nota alta]!”. O maestro recorda que o Coliseu era também uma sala de grande prestígio em Lisboa e que, na altura, tanto lá como em São Carlos, havia temporadas de espetáculos de ópera diários. “As pessoas estavam habituadas a ir à ópera. O ambiente de que me lembro era normal. De entusiasmo, porque a Maria Callas era especial. Mas não havia pessoas embasbacadas por ir à ópera pela primeira vez.”
A cantora que se tornou lenda
Além de diretora criativa do Teatro Nacional de São Carlos Elisabete Matos é cantora lírica e uma admiradora de Maria Callas, não só pelas suas capacidades vocais, mas também pela entrega em palco a cada personagem. “Tenho todos os discos da Maria Callas, principalmente os que são gravações ao vivo. Era aí que aparecia toda essa vulnerabilidade e grandeza, tudo o que dava no palco”, afirma, destacando o lado teatral do trabalho da diva. “Não era dada a grandes gestos, dizia que era importante fazer só o que estava na partitura e só o que era realmente interessante e importante, até as respirações. Tudo isso era absolutamente pensado e estudado.” Elisabete Matos diz que “foi uma cantora que viveu para a sua profissão”.
Quando Maria Callas visitou Lisboa tinha 34 anos e estava no auge da sua carreira. Nasceu em Nova Iorque a 2 de dezembro de 1923, filha de imigrantes gregos. A relação com a mãe foi difícil desde o nascimento, porque esta queria um rapaz e mais tarde obrigou Maria a cantar, fazendo com que os primeiros passos na música não tenham sido felizes. Aos 13 anos, a jovem foi para Atenas estudar canto lírico com a soprano Elvira de Hidalgo e foi em Itália que começou a construir a sua carreira. A aparência física tornou-se uma questão importante para Callas, que entre 1953 e 1954 perdeu cerca de 40 quilos com uma rigorosa dieta. Era uma mulher alta, tinha um rosto marcante, fez do risco preto sobre os olhos uma assinatura e tornou-se uma mulher muito sofisticada. Maria Callas junta ao seu talento para a música o papel de ícone de estilo da segunda metade do século XX.
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Casou-se em 1949 com o comendador Giovanni Battista Meneghini, que haveria de ser uma presença assídua e determinante na ascensão estelar da cantora. Contudo, a vida amorosa da diva viria a tornar-se de interesse público quando começou uma relação com o rico armador grego Aristóteles Onassis, que a levou a deixar o marido em 1959. Uns anos mais tarde, foi Onassis que deixou Callas para se casar com Jackie Kennedy, a viúva do presidente norte-americano, em 1968. Na década de 1970, a carreira do soprano entrou em declínio. Maria Callas viria a morrer em 1977 em Paris, de um ataque cardíaco. Tinha 53 anos.
A passagem de Maria Callas por Lisboa foi não só impactante como marcante. E prova disso mesmo é o facto de ser constantemente revisitada. Em 2008 o Museu da Eletricidade foi palco de “Maria Callas – A Exposição de Lisboa”, uma grande mostra que marcou os 50 anos da vinda da diva a Portugal. Em 2018 a editora discográfica francesa Warner editou um CD com a gravação da primeira noite de récita em Lisboa. “Verdi: La traviata (1958 – Lisbon) – Callas Live Remastered”.