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Writer Jose Saramago Leaning on Bookshelf
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José Saramago nasceu a 16 de novembro de 1922, na Azinhaga, e morreu a 18 de junho de 2010, na ilha de Lanzarote

Sygma via Getty Images

José Saramago nasceu a 16 de novembro de 1922, na Azinhaga, e morreu a 18 de junho de 2010, na ilha de Lanzarote

Sygma via Getty Images

Uma história das "7 Vidas de José Saramago": "Ninguém está de acordo com tudo numa biografia"

Durante 2 anos, Miguel Real e Filomena Oliveira mergulharam na vida e obra do Nobel, que os apaixonou desde o início. O resultado é "um trabalho de amor", entre os livros, a política e as polémicas.

Miguel Real era ainda um estudante quando saiu a primeira edição de Memorial do Convento, em 1982. Apesar de ser na altura “muito novo”, lembra-se bem do choque com que o quarto romance de José Saramago foi recebido por todos, sobretudo pelos críticos, que “ficaram completamente boquiabertos com aquele estilo que começaram logo a chamar de ‘saramaguiano’. Em Portugal, nunca se tinha visto nada assim — “a soberania da vírgula em vez do ponto final, os contorcionismos sintáticos do Barroco”, inspirados pelas leituras de Padre António Vieira. “Houve logo uma paixão por este autor”, confessou o escritor e ensaísta ao Observador. Uma paixão que perdura até hoje e que o levou a escrever, juntamente com a dramaturga e encenadora Filomena Oliveira, uma biografia do único Prémio Nobel da Literatura português.

As 7 Vidas de José Saramago percorre os vários momentos da vida do escritor nascido há 100 anos, mas é focado na parte estética e literária e política da sua existência. “São as duas facetas mais vibrantes de Saramago”, destacou Miguel Real, explicando que se tentou conjugar aquilo que ele e Filomena Oliveira pensam acerca do autor “do ponto de vista político, literário, estético de uma geral, da crónica ao romance”. “Tentámos estudar a vida dele nas suas diversas facetas, desde que nasceu até que morreu.” Para isso, recorreram ao espólio da Fundação José Saramago, cujo o acesso lhes foi concedido pela presidente, Pilar Del Río, viúva de Saramago, que consultaram antes de escrever a biografia, publicada este mês de setembro pela Companhia das Letras. “Pedimos autorização à Pilar para a escrever. Não íamos escrever uma coisa de que não gostasse. Ela disse que tínhamos o espólio à nossa disposição e que depois logo se via quando [a biografia saísse]. Penso que ela gostou. Não estará de acordo com tudo. Ninguém está de acordo com tudo numa biografia”, disse Miguel Real.

Os trabalhos de consulta na Fundação José Saramago levaram três meses; a composição da biografia dois anos, que “têm atrás de si uma ou duas décadas de contacto com os romances, com a análise dos mesmos por parte do Miguel Real e, no meu caso concreto, com o trabalho teatral, com a adaptação da obra”, esclareceu Filomena Oliveira em entrevista ao Observador. Um trabalho que tem por base “o gosto literário e estético” de longa data pelo trabalho literário de Saramago. “No fundo, é uma descoberta do Saramago dos romances, da literatura, para a sua própria vida. Consultámos muitos pormenores nos textos do próprio e conseguimos descobrir a sua vida em algumas das suas personagens”, afirmou a encenadora, que levou à cena adaptações de Memorial do Convento e O Ano da Morte de Ricardo Reis.

"As 7 Vidas de José Saramago", a mais recente biografia do Prémio Nobel da Literatura, foi publicada este mês de setembro, pela Companhia das Letras

Saramago foi provavelmente um dos escritores portugueses que mais entrevistas deu (os autores deixaram de contar quando ultrapassaram as 250) e, por isso, não faltam informações sobre a sua vida e a visão que tinha da obra própria. Publicou ainda em 2006 um livro de memórias, As Pequenas Memórias, que Miguel Real e Filomena Oliveira usaram para reconstituir a sua infância e juventude passada entre Lisboa e a Azinhaga, e um conjunto de seis diários, Cadernos de Lanzarote, escritos nos anos 90 e publicados entre 1994 e 2018. “Saramago ajudou muito”, considerou o escritor e ensaísta. “Socorremo-nos das suas próprias palavras. Não dava para averiguar se aquilo que ele disse sobre a Azinhaga correspondia à verdade ou não, porque as pessoas já morreram — os avós, os tios, os primos, José Dinis, que era o maior amigo dele na Azinhaga. A casa onde nasceu e viveu já não existe [foi demolida]. Portanto, tivemos de fazer fé naquilo que ele disse. E aquilo que ele disse é sensato: ia no verão para casa dos avós e ficava lá durante os três meses de férias. Ele, que era um menino da cidade, dos bairros pobres de Lisboa, encontrava uma grande felicidade, uma espécie de pequeno paraíso na Azinhaga, no Rio Almonda, no Tejo, a pescar, atrás dos pequenos animais domésticos, a acarinhar os porcos que eram do avô, a ajudar a avó, por exemplo, a limpar a pocilga dos porcos. Ele conta essas histórias.”

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As férias de verão eram, para Saramago, uma oportunidade de contactar com o mundo rural, tão distante da realidade dos bairros pobres de Lisboa, onde viveu com os pais a partir dos dois anos de idade. Os momentos passados na Azinhaga, a aldeia no concelho da Golegã, no Ribatejo, onde nasceu a 16 de novembro de 1922, representam o primeiro grande momento “campesino” da vida do escritor. O segundo corresponde ao período passado em Lavre, uma vila alentejana. “Quando saiu do Diário de Notícias [onde foi diretor-adjunto no período pós-revolucionário], voltou ao campo. A seguir ao PREC, foi despedido, não encontrava emprego, não queria ter emprego, também. Queria finalmente, aos 58 anos, escrever. Queria ser escritor. Então vai para Lavre, em Montemor-o-Novo, no Alto Alentejo, que é o campo também. Foi para uma cooperativa agrícola e ficou lá a viver uns meses. Depois manteve um contacto contínuo, regressando muitas vezes. Quando escreveu Levantado do Chão [1980], que é passado no Alto Alentejo, recuperou também as memórias da infância”, explicou Miguel Real. “São os dois grandes momentos campesinos de Saramago.”

"Havia um fio que ligava a autoria ao cidadão e ele não escondia isso. De tal maneira que dizia que nos seus livros ia uma pessoa dentro, que era ele. Não era o narrador."
Miguel Real, escritor e ensaísta

“Ele não dissociava a sua própria vida e a vida do seu tempo dos seus romances e das suas personagens. Isso é que é extraordinário”

Uma questão que ficou clara para os dois autores durante o estudo que realizaram foi que os problemas que assolaram o escritor ao longo da vida foram também os problemas que explorou nas suas obras. “Ele não desligou as suas inquietações, as suas preocupações fundamentais, sempre contra as causas da tremenda injustiça social que via à sua volta, dos seus romances. Sendo que nesses romances abordou esses temas de uma forma estética, ensaística e filosófica. São as grandes questões — a injustiça social e as questões internas, como a morte, o amor, a indignação, o desassossego que sempre teve relativamente à sociedade, ao seu tempo e à sua vida —, que não são de Lisboa, do Lave ou da Azinhaga, mas do nosso tempo. Ele não dissociava a sua própria vida e a vida do seu tempo dos seus romances e das suas personagens. Isso é que é extraordinário”, afirmou Filomena Oliveira. “É uma característica da obra de Saramago que nos inspirou e continua a inspirar.”

Para Saramago, a literatura era “um grande campo de ação”. Porém, o escritor tinha consciência de que é a sociedade que muda a literatura e não o contrário, como afirmou num discurso proferido “perante o setor de esquerda do Parlamento Europeu”. “Ele tinha consciência desses limites, mas não divorciava a literatura da sociedade, como disse a Filomena. Ele era escritor e cidadão; como cidadão também era escritor; como escritor é autor e como autor escrevia os seus romances. Havia um fio que ligava a autoria ao cidadão e ele não escondia isso. De tal maneira que dizia que nos seus livros ia uma pessoa dentro, que era ele. Não era o narrador. Os críticos falavam muito no narrador de Saramago, mas ele dizia que não sabiam quem era o narrador. O narrador era ele, o próprio autor”, comentou Miguel Real.

Pilar del Río e José Saramago no Sutton Place Park, em Nova Iorque, em setembro de 1996

Rita Barros/Getty Images

A luta de Saramago contra aquilo que entendia como injustiça, um movimento que que marcou toda a sua vida, alimentava uma proximidade que encontrava com a figura de Padre António Vieira, que admirava não só literariamente, mas também enquanto exemplo. “Saramago via a sua defesa dos [Trabalhadores Rurais] Sem Terra no Brasil, dos pobres do mundo inteiro, como uma espécie de continuação da luta do Padre António Vieira”, declarou Miguel Real, lembrando que o jesuíta português, cujos textos inspiraram o barroquismo de Memorial do Convento, foi preso por defender os judeus em Portugal e os índios no Brasil. “Há uma continuidade entre Padre António Vieira e José Saramago. O Quinto Império [que Vieira advogava] seria, para Saramago, o comunismo, a paz, harmonia, fim da exploração do homem pelo homem, a satisfação de todas as necessidades e a existência de uma harmonia entre todos os grupos sociais.”

A preocupação social de Saramago, “de luta contra as desigualdades, tinha sempre uma forma universal, profunda, que ia além de uma pequena circunstância”, um aspeto que também o aproxima de Padre António Vieira. “Pensava o tempo como sendo todo um, que a história se revela através do passado, porque o presente não existe — só sabemos o que é o presente depois de ter passado. Isso faz com que ele, no Memorial do Convento, fale do voo da passarola e afirme que, no futuro, quem sabe, voaremos nas estradas do céu e a elas chamaremos aeroportos. É uma “beleza literária” que contém “ideias profundas, quer de conteúdo social quer de conteúdo filosófico, além da nossa circunstância”, declarou Filomena Oliveira, defendendo que é por isso que as obras do Prémio Nobel são “lidas no mundo inteiro”. “Como é que esses textos, independentemente do local a que ele se refira, seja a Mafra do Memorial do Convento ou o Alentejo do Levantado do Chão, são traduzidos para árabe, chinês, para vários povos do mundo, até distantes da nossa cultura? Quer dizer que eles contêm ideias e temas que são de todos nós, são de todas as pessoas. É essa universalidade que confere também esta grande riqueza à obra de Saramago.”

Figura controversa pelas opiniões que veiculou, Saramago desperta paixões e ódios. Isso mesmo foi constatado pelos autores de As 7 Vidas de Saramago, que escreveram na introdução do volume que quase ninguém tem uma opinião neutra ou equilibrada sobre o escritor e que a maioria das pessoas ou exprime “adesão ou repúdio”. Contudo, Miguel Real e Filomena Oliveira não consideram que isso tenha sido uma dificuldade na produção da biografia. “A paixão deu-nos força”, disse o escritor e ensaísta. “A paixão dá sempre força. Dá sempre desejo de ultrapassar o objeto da paixão. Acordávamos sempre a pensar no tema que estaríamos a trabalhar nessa semana, nessa mês. Por outro lado, procurámos não dar importância a críticas maldosas ou negativas. Damos o exemplo dos que diziam que ele não sabia comer num restaurante até conhecer Isabel da Nóbrega. Constatámos que, quando ele foi trabalhar para a Editorial Estúdios Cor, sete ou oito anos antes de conhecer Isabel da Nóbrega, ele almoçava todos os dias nos restaurantes do Bairro Alto com escritores e jornalistas. Era difícil não comer num restaurante aos 50 anos, a viver no centro de Lisboa e a ser protagonista numa editora que tinha como colaboradores Vitorino Nemésio e Jacinto do Prado Coelho. Não quisemos responder a isso, mas lemos essas maldades.” “Ainda que todos esses aspetos mesquinhos existissem, o que não nos interessa saber, ele continuaria a ser autor das grandes obras a que temos acesso. É só isso que interessa”, destacou por sua vez Filomena Oliveira. “As obras estão cá e são elas que são valiosas. É isso que interessa.”

Jose Saramago At Restaurant

José Saramago num restaurante em Nova Iorque, EUA, em setembro de 1996. Saramago recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1998

Rita Barros/Getty Images

“Não há biografias de 600 páginas sem um esforço muito grande de persistência. É uma biografia feita com amor”

A maior dificuldade com que os autores se depararam foi talvez a da interpretação da obra literária saramaguiana, que ocupa uma parte significativa da biografia. “Tivemos de ler comentadores. Chegámos a certas conclusões e registámos essas conclusões. Não foi propriamente um grande problema, mas demorou mais tempo”, esclareceu Miguel Real. Outra questão foi “como relacionar as primeiras obras com as últimas ou detetar o momento em que Saramago se tornou Saramago, isto é, em que começou a utilizar o estilo que conhecemos. O Evangelho segundo Jesus Cristo é o momento de revolução, em que ele disse que se estava a desbarroquizar-se. Então quando é que ele se barroquizou? No Memorial do Convento. No Evangelho foi quando ele disse que já não queria retratar a estátua — a história, as grandes personagens. Queria retratar a pedra. A pedra era, para ele, o coração do homem. Queria ir direto ao coração do homem.”

Apesar do contacto que já tinham com a obra de Saramago, os dois autores admitem que gostaram de ficar a conhecer mais pormenorizadamente o escritor, sobretudo a sua produção literária, e também as “grandes obras literárias portuguesas”, desde de Sá de Miranda a Lobo Antunes, passando por Agustina Bessa-Luís. “Podíamos ter escrito outra biografia, de um outro escritor, mas foi este que nos apaixonou”, afirmou Miguel Real. “Não há biografias de 500, 600 páginas sem um esforço muito grande de persistência, e essa persistência é dada por uma certa paixão, um certo gosto pelo autor que estamos a trabalhar. É uma biografia feita com amor.” “Com amor, e por ser uma obra e um autor, porque dele não se distingue, com uma vida com grande coerência, sem nunca abandonar as suas convicções. Isso é valioso”, apontou Filomena Oliveira. “Era uma pessoa que poderíamos dizer que não se vendia ao prestígio, ao protagonismo, que assumia as consequências das suas posições. Isso é notável.”

"Não é possível ser-se indiferente a estas posições tão claras, tão coerentes e tão fortes. (...) Temos todos o dever de nesse labirinto que é a sociedade e a própria vida de estarmos atentos e não indiferentes."
Filomena Oliveira, dramaturga e encenadora

Defendendo que Saramago tinha uma visão “pessimista sobre os males do mundo”, ainda que a classificasse como “realista”, a encenadora e dramaturga destacou a forma como o escritor denunciava “o mal que a humanidade imprime ao mundo no nosso tempo, o modo como se explora e se destrói o ambiente, como os poderes políticos olham para o lado e não resolvem nenhuma destas questões”, ao mesmo tempo que os transformava “em grandes metáforas, em grande literatura”, imprimindo no leitor a impressão de que “não é possível ser-se indiferente a estas posições tão claras, tão coerentes e tão fortes”. “A cada direito da Declaração Universal dos Direitos Humanos corresponde um dever. Isso é importantíssimo, e obriga-nos a pensar um pouco.” A obra de Saramago é, em última instância, um apelo a quem a lê — que “temos todos o dever de nesse labirinto que é a sociedade e a própria vida de estarmos atentos e não indiferentes”. Foi por este escritor, sempre atento e nunca indiferente, que Miguel Real e Filomena Oliveira se apaixonaram — e se continuam a apaixonar mais de 600 páginas depois.

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