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O passado existe: um ensaio sobre o último livro de Vasco Pulido Valente

Vasco Pulido Valente publicou em 2018 "O Fundo da Gaveta", livro que reflete sobre o extremismo vivido em Portugal no século XIX e nos confronta com a realidade do passado. Um ensaio de Paulo Tunhas.

Este texto foi originalmente publicado em 2018. Republicamo-lo agora após a morte do jornalista e cronista Vasco Pulido Valente

Vasco Pulido Valente publicou em 2018 na D. Quixote um livro que se inscreve no conjunto dos seus trabalhos consagrados aos séculos XIX e XX portugueses. O Fundo da Gaveta reúne dois fragmentos (um de 1989, outro de 1990) de uma história do Portugal moderno entretanto abandonada. O primeiro, “A Contra-Revolução (1823-1824)”, lida com a “Vilafrancada” e os seus desenvolvimentos mais imediatos, incluindo a “Abrilada”, que conduziria ao exílio de D. Miguel; o segundo, “Ressurreição e Morte do Radicalismo (1864-1870)”, com a ascensão e queda do governo da “Fusão” entre os partidos Regenerador, de direita, e Histórico, de esquerda, e acaba com a “Janeirinha” e com a última revolta militar encabeçada pelo velho marechal Saldanha (os tempos áureos de Fontes Pereira de Melo, à frente do Partido Regenerador, viriam logo a seguir, de 1871 a 1877, o mais longo governo da monarquia constitucional, tal como viria a “geração de 70”).

São duas histórias de extremismo e de fracasso e das tentativas de o remediar. A busca de uma via média, um justo meio, entre os extremos (Palmela, em primeiro lugar) parece ter estado, desde o início, condenada ao fracasso. A racionalidade e a prudência gozaram de uma existência meramente episódica. O primeiro capítulo mostra como D. Miguel e quem o acompanhava só concebia qualquer moderação relativamente aos adversários “provisória e contrariadamente”. O fundo do seu pensamento e da sua acção alicerçava-se numa oposição radical, insusceptível de dar lugar a quaisquer compromissos, a começar por aqueles a que D. João VI se inclinava. Reclamava-se um “ajuste de contas universal”. Como poderia a voz de Palmela chegar a tais ouvidos — e também aos dos radicais a quem D. Miguel se opunha?

Lendo Vasco Pulido Valente é impossível não pensar que, em toda a sua diferença, estes dois períodos históricos testemunham um padrão comum: a fragilidade do poder e a extensão da violência latente não só de alguns dos seus representantes como da sociedade portuguesa em geral. 

O segundo capítulo destina-se a dar a ver como surge e se desagrega a “Fusão”, aliança de regeneradores e históricos, ela própria em parte resultado de conflitos internos ao Partido Histórico (entre a “unha branca”, moderada, e a “unha negra”, radical). A concórdia possível em torno dos “melhoramentos” (vias férreas, estradas, etc.) e da “instrução” entre regeneradores e históricos conviveu praticamente desde o início com os obstáculos da crise financeira e da dificuldade em obter empréstimos. E a desagregação final verifica-se graças a três decisões politicamente desastrosas: a reforma administrativa, o tratado comercial com a França e o imposto único de consumo. O descontentamento geral manifestou-se violentamente na “Janeirinha” e, no seguimento do caos, na revolta militar de Saldanha. Também aqui o extremismo desempenha o seu papel, sendo um seu representante destacado o conde de Peniche, cujo movimento se assemelharia “na sua composição, nos seus métodos e na sua linguagem” a “um miguelismo póstumo, corrigido pelas propensões do século”.

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Lendo Vasco Pulido Valente é impossível não pensar que, em toda a sua diferença, estes dois períodos históricos testemunham um padrão comum: a fragilidade do poder e a extensão da violência latente não só de alguns dos seus representantes como da sociedade portuguesa em geral. No que respeita ao episódio da “Fusão” e da sua desagregação, é também difícil, em muitos aspectos, não nos projectarmos nos nossos próprios tempos. As ambições (e os seus motivos), os obstáculos e as frustrações assemelham-se aos nossos. Mas avançar para lá desta constatação é algo que não me ocupará aqui. Vasco Pulido Valente, noutros lugares, desenvolveu-a de forma caracteristicamente incisiva e convincente.

São duas histórias de extremismo e de fracasso e das tentativas de o remediar. A busca de uma via média, um justo meio, entre os extremos (Palmela, em primeiro lugar) parece ter estado, desde o início, condenada ao fracasso. A racionalidade e a prudência gozaram de uma existência meramente episódica. 

O livro garante uma leitura fascinante, como seria de esperar tratando-se do autor. Nas poucas linhas que se seguem, não vou obviamente ocupar-me do detalhe das análises de Pulido Valente, pela simples e boa razão que me falta competência para tal. Resistirei igualmente, como disse, à tentação de estabelecer analogias com o presente, uma facilidade para a qual os amadores têm uma certa vocação, mas que deve ser evitada: é matéria para profissionais da história. Em contrapartida, focar-me-ei em alguns aspectos que, mais directa ou mais indirectamente, ressaltam do texto e que me parece possuírem real interesse filosófico, um interesse que, como em muitos outros casos, é capturável pela experiência comum. São questões que se colocam à história em geral, mas, creio poder mostrá-lo, a história tal como praticada por Vasco Pulido Valente presta-se particularmente bem a elas.

E comecemos pelo princípio. É uma história feita de personagens e de acontecimentos. “O mundo é todo de acontecimentos”, como escrevia Sá de Miranda. Vários dos personagens e dos acontecimentos, conhecemo-los de nome. De nomes de ruas, entre outras coisas. No Porto, por exemplo, 24 de Agosto, Sá da Bandeira ou Passos Manuel. Mas esse conhecimento, mesmo que acompanhado pela leitura longínqua de um ou outro livro, como o Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins, transporta-nos pouco ao sentimento da existência real dos personagens e acontecimentos em questão. Os nomes permanecem quase apenas isso: nomes. É claro que acreditamos que não se referem a, por exemplo, personagens imaginários. Mas esse saber quase apenas negativo é uma coisa pobre.

D. Miguel saúda os soldados ao chegar a Vila Franca de Xira

Para que passemos a uma crença mais positiva (uma crença que nos traga um pouco mais do sentimento de uma existência real) é necessário confrontarmo-nos com interpretações diversas dos personagens e, por processos triviais ou menos triviais, pesar quais as interpretações mais verosímeis. Cada personagem – nas suas intenções, nas suas decisões, nas suas acções – encontra-se rodeado de um horizonte de indeterminação. O que o bom historiador faz, na medida do possível, é reduzir essa indeterminação, e ao mesmo tempo oferecer-nos uma imagem que faça sentido. É claro que essa redução da indeterminação é sempre parcial, por mais que seja legítimo (e, de certo modo, inevitável) ambicionar a uma determinação completa. A busca da boa interpretação é exactamente isso.

É útil distinguir aqui os personagens históricos dos personagens de ficção. Não há boa interpretação conducente a uma crença na existência ficcional do Hans Castorp da Montanha Mágica de Thomas Mann que não encontre unicamente no texto do livro a sua origem. A redução da indeterminação depende por exclusivo, directa ou indirectamente, da boa inteligência do texto. E isso vale mesmo para personagens ficcionais que se repetem ao longo da história da literatura, e às vezes de outras artes também. Tomemos o exemplo de Medeia. Seria loucura pretender que o bom conhecimento de Medeia resulta da laboriosa comparação das Medeias de Eurípides, Séneca, Corneille e por aí adiante. Cada Medeia individual é uma Medeia real, sendo essa realidade função do génio do autor (ou irreal, se tal génio não existir). Estes propósitos valem identicamente para o tratamento literário de personagens históricos: Inês de Castro, por exemplo. A Inês de Castro de Camões é real, tal como, em menor escala, a de António Ferreira – mas não o é a do Enterro de Inês de Castro de Eugénio de Castro (“E, atrás do caixão, a Dama / Que chorava, estrada fora, / Desconfia-se que fosse / A Virgem Nossa Senhora…” – que ideia!). A realidade não se obtém aqui por uma redução da indeterminação atingida através de uma comparação dos documentos e das interpretações. É um puro facto literário, por assim dizer.

O que o bom historiador faz, na medida do possível, é reduzir essa indeterminação, e ao mesmo tempo oferecer-nos uma imagem que faça sentido. É claro que essa redução da indeterminação é sempre parcial, por mais que seja legítimo (e, de certo modo, inevitável) ambicionar a uma determinação completa. A busca da boa interpretação é exactamente isso.

Em história, por mais que a eficácia literária seja indispensável, não é assim. O que se pede é a comparação de informações e de interpretações, que se pode até encontrar implícita ou explícita numa só obra, e uma conclusão que faça sentido e que acarrete um sentimento de verosimilhança sem o qual a crença na existência dos personagens não terá efectivamente lugar. O livro, como dizem os franceses, cair-nos-á das mãos.

Isto conduz-nos à complexa questão da relação entre história e ficção. Várias correntes contemporâneas (chamemos-lhes, por simplificação não abusiva, “pós-modernas”) tendem a anular a distinção entre uma e outra. Tal anulação é um gesto absurdo, que confunde duas entidades com traços claramente distintos. Mas isso não faz com que não existam elementos ficcionais na história. Tal como na filosofia, de resto. Todos os grandes sistemas filosóficos (Espinosa, por exemplo) contêm uma indisputável dimensão ficcional que se manifesta, entre outras coisas, na exigência explícita de fazer sentido de tudo, que obviamente só imaginariamente pode ser realizada. Tal exigência tem como consequência o facto de os sistemas filosóficos não poderem ser directamente confrontados com o real exterior com vista a uma avaliação da sua possível verdade ou falsidade, ao contrário do que se passa (com as restrições que se quiser) com as teorias físicas, por exemplo. Para além disso, a filosofia serve-se abundantemente de ficções: basta pensar no contrato social.

O livro reúne dois fragmentos - um escrito em 1989, outro em 1990

MICHAEL M. MATIAS /OBSERVADOR

Na história, há igualmente um compromisso com a ficção. Para começar, na sua estrutura narrativa, que acaba sempre por recorrer a elementos ficcionais, mas mais notoriamente ainda na busca de sentido. Acontece, no entanto, que essa dimensão ficcional da história se encontra fortemente constrangida por regras que limitam radicalmente o seu escopo. Pense-se na busca do sentido. Ela dá-se sempre, excepção feita a certas filosofias da história, no contexto da admissão de uma contingência essencial: o sentido a que se pode almejar é um sentido contingente. A não ser assim, seria impossível determinar as intenções individuais presidindo às decisões e acções dos personagens históricos, uma consequência que os adeptos das filosofias da história antes mencionadas aceitam, de resto, de bom grado.

A busca do sentido conjectural implica, de uma forma ou de outra, um processo de revivescência do passado, que Michelet ou, no seguimento deste, Oliveira Martins, defenderam de forma explícita. Tratar-se-ia de tornar o passado inteiramente presente através da palavra. O projecto enquanto tal é obviamente irrealizável e se, por impossível, ele pudesse ser realizado, traria consigo a anulação daquilo que, num certo sentido, representa o mais enigmático e fascinante encantamento da história: o sentimento de, através da distância, e sem de modo algum a abolir, estabelecer um contacto com personagens e situações que já não existem, dando-nos o sentimento da sua existência. Mas também aqui, trata-se de uma ambição que, por desmesurada que seja, permanece praticamente indispensável como guia da investigação histórica. Sem um tal guia, como poderíamos nós alguma vez pretender compreender as maneiras de pensar, a organização dos sentidos, presentes nas sociedades estudadas? E uma história que não nos permite aceder de uma certa maneira ao modo como os membros dessas sociedades pensavam sobre si mesmos e sobre as suas sociedades será fatalmente uma pobre e insatisfatória história. Claro que esse gesto de nos colocarmos no lugar do outro obedece a constrangimentos técnicos próprios à disciplina. Mas ele é realizável. Através, por exemplo, da restituição da linguagem empregue pelos personagens históricos.

Pense-se na busca do sentido. Ela dá-se sempre, excepção feita a certas filosofias da história, no contexto da admissão de uma contingência essencial: o sentido a que se pode almejar é um sentido contingente.

O essencial é podermos reconhecer indivíduos. Os indivíduos são, na nossa experiência comum, o paradigma daquilo que é cognoscível por excelência e, solidariamente, daquilo que inspira mais fortemente a crença na existência, a passagem de um nome à percepção de uma realidade. Não se vê como a história poderia furtar-se a esta exigência central do nosso espírito. Claro que a sua satisfação só pode dar-se no contexto do estudo de certas sociedades e não de outras, ou, nestas últimas, de um modo só muito imperfeito. Permanece, no entanto, uma exigência fundamental, que os escritos biográficos procuram realizar.

Dito tudo isto – que é, admito, ao mesmo tempo algo dogmático, ingénuo e simplificador -, podemos agora tentar ver em que medida a história levada a cabo por Vasco Pulido Valente dos dois momentos históricos analisados em O Fundo da Gaveta revela, ou não, as características apontadas. Limitar-me-ei apenas a este novo livro, mas estou convencido que o mesmo valeria para os seus restantes trabalhos sobre o século XIX e o século XX portugueses.

Vasco Pulido Valente restitui-nos os personagens históricos nas suas asperezas, idiossincrasias, mediocridades e loucuras. Esse apego ao real liberta-nos, tanto quanto possível, da vagueza que se arrisca a fazer dos nomes puros símbolos , incapazes de suscitarem em nós o sentimento de existência, uma tentação comum à má história. Tal sentimento de existência não é de modo algum o resultado de uma qualquer univocidade na sua apresentação. Muito pelo contrário. Os personagens são, quase por definição, equívocos, susceptíveis de variadas interpretações, e isto apesar da força de caracterização de Vasco Pulido Valente. Mas é exactamente essa equivocidade que suscita em nós o sentimento da sua existência. A equivocidade, naturalmente, não põe em cheque a possibilidade de escolher interpretações mais verosímeis do que outras. Aquando da Vilafrancada, a partida de D. João VI para Vila Franca, abandonando Lisboa, destinava-se a recuperar “a liberdade para servir de centro a todos aqueles que não queriam entregar todo o poder ao infante”. O horizonte de indeterminação que rodeia as intenções e as acções de D. João VI encontra-se assim restringido, e essa redução da indeterminação é uma das tarefas do historiador. Só assim é possível atribuir sentido a intenções e acções.

“O Fundo da Gaveta”, de Vasco Pulido Valente, foi publicado pela D. Quixote e aborda dois períodos específicos da história de Portugal no século XIX

É claro que a determinação, mesmo a interpretação que nos parece como a boa interpretação, não é nunca completa. Permanece sempre, de direito e de facto, um resto de interpretações por explorar. Fosse D. João VI um personagem romanesco e já não seria assim. Como facto puramente literário, D. João VI seria, pelo menos em princípio, absolutamente determinável pela imaginação do romancista. A imaginação literária comporta essa possibilidade. A imaginação histórica não. Mas aí onde se encontram as suas limitações, encontra-se também a principal razão do seu fascínio: é essa resistência última do objecto ao nosso conhecimento que nos revela o maravilhamento do contacto com um mundo já passado, autónomo por relação a nós, e nos permite o tal sentimento de existência que referi antes. Ter isto em mente é necessário para evitar o escolho do que se poderia chamar a “falácia pós-moderna” que, partindo de inegáveis analogias entre a ficção romanesca e a escrita dos historiadores, a começar pelo uso de certas comuns técnicas narrativas, deduz daí uma quase identidade de género. A busca do sentido, a procura do que “faz sentido”, comporta sem dúvida uma dimensão ficcional. Mas a disciplina histórica obedece evidentemente a constrangimentos próprios que estão longe de se encontrar na ficção romanesca, por mais que a ficção por vezes tenda, por razões literárias, a simulá-los (o mesmo acontece, de resto, com a relação entre literatura e filosofia).

Neste contexto, um elemento particularmente revelador é o da contingência. Exceptuando certas tendências gerais que são detectáveis e seria absurdo negar, as análises encetadas por Vasco Pulido Valente dos dois momentos históricos de que este livro se ocupa são atravessadas por uma forte consciência da contingência das acções e dos acontecimentos. É contra o pano de fundo dessa contingência – cuja consciência é, quase se poderia dizer, uma espécie de a priori do conhecimento histórico – que as intenções e as acções dos personagens se revelam. Por exemplo, tudo aquilo que Palmela, ao longo da sua muito longa carreira política, levou a cabo, fê-lo a braços com a contingência do mundo, que acabou por finalmente o derrotar, preso que estava a um programa de moderação, de “justo meio”, que o curso das coisas acabou por interditar. Vale a pena notar, de resto, que, a recusar-se tal contingência, todas e quaisquer intenções e acções individuais perdem realidade intrínseca, já que o seu sentido próprio se vê anulado por um imaginário sentido maior que apenas lhes pode garantir um estatuto de “falsa consciência”. Claro que há ilusões e inconsciência – Passos Manuel e Saldanha são particularmente bons exemplos disso, parece-me, na história de Vasco Pulido Valente, por oposição a Rodrigo, e os prodígios da ilusão são, de facto, recorrentes, à direita e à esquerda -, mas isso é outra coisa. O que acontece, a negar-se a contingência, é que esse mundo de intenções e acções individuais se esfuma, enquanto realidade autónoma, diante dos nossos olhos.

Como facto puramente literário, D. João VI seria, pelo menos em princípio, absolutamente determinável pela imaginação do romancista. A imaginação literária comporta essa possibilidade. A imaginação histórica não. Mas aí onde se encontram as suas limitações, encontra-se também a principal razão do seu fascínio.

Reconhecer a contingência é assim um requisito indispensável para entrar em contacto com a realidade do passado e para descobrir, peço desculpa por me repetir, o sentimento da sua existência, entre a qual a de indivíduos que não são meros símbolos ou caricaturas de ideias, meio-caminho andado para o passado deixar de existir ou existir apenas como eco retrospectivo e deformado do presente, o que ele nunca é em Vasco Pulido Valente. Não que o programa de Vasco Pulido Valente seja o de uma revivescência do passado. A tragédia e a glória da história é a tal revivescência não ser realizável, excepto por alucinação, fecunda por vezes em Michelet, mas frustante num certo Oliveira Martins (o do “ciclo de Aviz”). De facto, a ser realizável tal revivescência integral do passado, ela representaria, no fundo, uma anulação da história em tudo semelhante àquela que resulta da negação da contingência. Um D. Miguel inteiramente presente, ou um Loulé evidente em carne e osso, seriam nossos como um personagem de romance – o que evidentemente não podem ser.

Sendo impossível tal revivescência, é no entanto possível, bem entendido, aceder à sua realidade e à realidade da sua época. É possível, no contexto do horizonte de indeterminação que antes referi, reconstruir a maneira de pensar dos indivíduos e da sua época, os traços mais significativos do que, para os indivíduos e a época, fazia sentido e governava as acções. Preserva-se a distância e a autonomia do passado, mas uma luz forte é projectada sobre este. Através das regras do ofício do historiador, complementadas pelo talento próprio a este. No caso de Vasco Pulido Valente, esse talento reside não apenas na excepcional capacidade de análise das motivações dos personagens como numa extraordinária habilidade em nos pôr em contacto com a linguagem da época. Não através de longas citações de jornais, discursos ou outras fontes, mas da sábia introdução no texto de breves expressões que nos dão a ver um outro mundo, ainda em contacto com o nosso mas irredutivelmente diverso. Como notou na breve Introdução a Glória (Gótica, 2001), uma biografia de José Cardoso Vieira de Castro, um político importante, mas não central, da segunda metade do século XIX: “Resta prevenir que tentei preservar a linguagem do tempo, citando o mais que pude, directa ou indirectamente. Se não salvasse a linguagem, não salvava nada”. Só “salvando a linguagem” se pode reconstruir a tal maneira de pensar referida antes: “a intenção [de Glória] foi de «mostrar» como agiam, sentiam e pensavam os portugueses letrados de meados do século XIX”, preservando “a irracionalidade e a materialidade da vida”. Como em tudo o resto, a tensão entre a proximidade e a distância é fundamental. As aspas em torno de «mostrar» dão a ver exactamente isso.

Insisti muito aqui na importância da análise das intenções e acções dos indivíduos, porque creio que tal é, de facto, essencial. Mas estes dois capítulos de uma “hipotética” história do nosso século XIX retratam um mundo muito mais vasto. Como escreve Vasco Pulido Valente no Prefácio a O Fundo da Gaveta, a sua ideia original era “escrever uma narrativa política que incorporasse a história económica, social, diplomática e militar”. E tais elementos encontram-se efectivamente presentes nos dois capítulos aqui recolhidos. A relação entre o povo e o poder, por exemplo, atravessa-os. Está muito longe de se tratar de uma organização de um conjunto de detalhes biográficos parciais de indivíduos politicamente relevantes: há todo um mundo fervilhante de gente que sofre e com a qual o poder mantém uma relação equívoca de distância e de impotência. Vasco Pulido Valente realizou no já referido Glória uma biografia e a Introdução a esse livro contém, de forma sucinta, o seu juízo sobre os méritos e limites da escrita biográfica para o entendimento histórico. Sem que estes dois textos contradigam de modo algum o que aí se encontra escrito, o seu escopo é claramente distinto. Uma coisa, no entanto, é certa. Num caso como noutro, se bem que de formas claramente distintas e com ambições diversas, encontramos a mesma preocupação em fazer-nos entrar em contacto com a realidade do passado. E quando falo de “realidade do passado”, entendo a expressão num sentido forte. Vasco Pulido Valente, creio, é céptico por relação à ideia de que possamos aprender algo com a história, no sentido em que o estudo da história nos proporcionaria a chave mágica para evitarmos infalivelmente erros futuros, a infinitamente comentada historia magistra vitae de Cícero. Em contrapartida, o sentimento da existência do passado, muito mais ténue na maioria das pessoas do que se poderia pensar, pode, acompanhado de algum conhecimento desses mundos que já não existem, fazer-nos olhar para o nosso presente com mais distância e lucidez do que a ignorância em que tendemos a viver nos permite.

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