Para André Ventura, o Natal chegou mais cedo com o aparecimento de Passos Coelho. Há muito que o líder do Chega não tem problemas em colar-se ao antigo presidente do PSD, principalmente quando é um dos poucos rostos da direita que continuam sem estabelecer um cordão sanitário ao Chega. Por essa razão e porque as palavras de Passos Coelho — mesmo que sobreinterpretadas por vários comentadores — acabaram por gerar um grande impacto mediático e político, André Ventura cavalgou a onda e apressou-se a usá-la a seu favor.
Não demorou a marcar uma conferência de imprensa para falar única e exclusivamente sobre o tema e fez a leitura que bem entendeu das declarações de Passos Coelho: “Percebeu o que Luís Montenegro não percebeu”; “Diz que têm de procurar as condições para que haja governabilidade”, lançou um “repto” e “o que disse é um acordar para todo o espaço não socialista”. “Estamos a cair no que o PS quer, penso que a grande lição de Pedro Passos Coelho foi essa: estão a cair como patinhos naquilo que a esquerda quer”,resumiu André Ventura.
Em boa verdade, Pedro Passos Coelho prestava declarações à porta do Campus de Justiça, em Lisboa, onde estava no âmbito do “Caso EDP”, e ia sendo interpelado por vários jornalistas com perguntas cruzadas, várias sobre o Chega, enquanto seguia uma linha de raciocínio que não se alterou: “Precisamos de um governo esclarecido, que tenha um rumo bem definido e força. Vai depender das estratégias que os partidos venham a definir e das condições que os portugueses ofereçam aos partidos que terão a responsabilidade de governar. Espero que ambos tenham uma aguda consciência da importância dos tempos que aí vêm e que seja possível fazer um governo que tenha autoridade moral. E a força só pode ser dada pelas pessoas, pelos eleitores, para que se faça o que é necessário fazer.”
A ideia de que “ambos” poderia ser uma referência ao PSD e Chega e uma tentativa de pressionar Luís Montenegro a dar um passo atrás no “não é não” ganhou força no espaço mediático. O Observador explicou que essa nunca foi a intenção do ex-primeiro-ministro, mas a narrativa de André Ventura já tinha sido alimentada e está para durar — principalmente porque é conhecida a recusa de Passos Coelho em alinhar na ideia de uma linha vermelha ao Chega. No final de contas, Ventura ganhou um presente no sapatinho e Montenegro um embrulho envenenado.
O aparecimento de Passos traz a Ventura uma esperança renovada, já que nos últimos meses os sociais-democratas acertaram agulhas em dois sentidos: disponibilidade para cenários de governação à direita apenas e só sem o Chega; e Luís Montenegro a garantir que não governa se o PSD ficar em segundo lugar nas eleições. Ora, aos olhos do líder do Chega, Passos Coelho veio fazer um repto ao espaço não-socialista para que se una, o que poderia ser uma tentativa de deitar por terra as duas opções de Montenegro, abrindo a porta ao Chega e contribuir para que o PSD governe mesmo que o PS ficasse à frente, numa espécie de versão da geringonça do outro lado do campo ideológico. Isto, claro, desde que o Chega tivesse poderes na governação, já que se recusa a repetir a solução encontrada nos Açores.
Por outro lado, o Observador sabe que o Chega viu em Passos Coelho uma forma de dar força à campanha contra o voto útil que será colocada em prática pela coligação PSD/CDS (na tentativa de polarizar a eleição entre PSD e PS), por considerar que o ex-líder social-democrata tentou apelar ao espaço à direita para criar uma alternativa para o país no pós-eleições e montando uma campanha que capitalize o máximo de votos à direita, independentemente da cor política. Com a porta aberta a um entendimento com o Chega, os votos em Ventura já não seriam deitados ao lixo e sem qualquer possibilidade de terem valor no dia seguinte.
Para que isto acontecesse, a campanha do Chega teria de ser mais focada no PS do que no PSD, e tem sido visível a dificuldade constante na ambição de André Ventura não hostilizar o PSD — numa tentativa de manter vivo o sonho do dia seguinte —, sendo muitas vezes o primeiro a atacar o partido, Luís Montenegro e agora a coligação Aliança Democrática. Depois do anúncio da união entre sociais-democratas e democratas-cristãos, o presidente do Chega foi o mais duro nas críticas, falou numa “ressurreição” de “partidos mortos”, acusou o PSD de apresentar aos portugueses uma “alternativa com 40 anos” e considerou a união uma “tentativa desesperada” de “bloquear” o Chega.
Por todas estas razões, e com uma estratégia muito assente nas sondagens que têm mostrado um Chega a crescer e um PSD que não descola do PS, na cabeça dos dirigentes do partido alimenta-se a possibilidade de ir para a estrada a pedir o voto da direita, apontando para o objetivo de ultrapassar o PSD, ainda que exista a consciência da circunstância e do histórico político nacional — e no final da linha que é praticamente impossível, pelo menos nestas eleições, ficar à frente dos sociais-democratas.
Numa balança difícil de equilibrar, até na cabeça de Ventura, constrói-se um outro obstáculo: a certeza de que o PS vai fazer de tudo para deixar PSD e Chega a discutirem e a atirarem um contra o outro, o que dará mais espaço a um Pedro Nuno Santos que tem como missão convencer as pessoas de que “já pouco distingue” o discurso de PSD e Chega — repetindo a estratégia que contribuiu para a maioria absoluta do PS em 2022.
Por outras palavras, Ventura encontra-se entre a difícil missão de conquistar o máximo de eleitorado possível à direita para conseguir ter um peso tal que se torne imprescindível para as contas do PSD — ou pelo menos para ter nas mãos a viabilização ou não de um governo minoritário do PSD — e levar a cabo uma campanha focada no combate ao socialismo para não passar os próximos meses de arma apontada aos sociais-democratas dando ainda mais argumentos ao PS.
O sonho de ter Passos no dia seguinte
O presidente do Chega nunca foi taxativo quanto ao cenário pós-eleitoral, tem sido menos redondo desde que o governo caiu, mas continua apenas a deixar em cima da mesa alguns cenários idílicos com medidas capazes de agradar ao partido. Com essas probabilidades cada vez mais reduzidas — por se considerar dentro do partido que se o PSD não conta com o Chega para governar também não pode precisar dos votos conseguidos por Ventura para passar um executivo —, Ventura tem esperança numa mudança de última hora. E essa mudança tem um nome: Passos Coelho. O mesmo que lhe permitiu voltar a sonhar quando apareceu em frente aos microfones dos jornalistas.
A sombra de Passos Coelho há muito que está presente na direita portuguesa, mas neste momento é mais do que isso para o Chega: é um seguro de vida em que Ventura está investido com todas as forças. Quando faltam menos de três meses para as eleições, todos os cenários são colocados em cima da mesa e com a recusa de Luís Montenegro de governar se ficar em segundo ou com a possibilidade de Marcelo Rebelo de Sousa não dar posse a um governo que não tenha a certeza de ser bem sucedido, no Chega sonha-se com Passos Coelho.
Desde logo, o primeiro cenário: o PSD vence as eleições e não consegue dar garantias a Marcelo Rebelo de Sousa de que tem condições para ter um governo viabilizado na Assembleia da República porque o posicionamento contra do Chega o impede. Sem possibilidade de um governo de esquerda passar, no Chega acredita-se que o Presidente da República poderá manter o atual Executivo mais tempo em funções — como aconteceu em Espanha — para que se encontre uma solução que impeça um contexto de ingovernabilidade, permitindo que o PSD apresente outra solução. É aí que entra Passos Coelho e a capacidade de falar com o Chega.
Num segundo cenário, o PSD perde as eleições e mesmo assim a direita consegue uma maioria parlamentar. Nesse caso, Luís Montenegro foi claro ao assegurar que não governa e, na visão do Chega, o PSD pode apresentar outra figura para formar governo. Mais uma vez, é aqui que pode entrar Passos Coelho, que não estabeleceu o tal cordão sanitário ao Chega e pode contar com Ventura para construir uma alternativa à direita — neste caso, fica de fora a possibilidade de a IL integrar este executivo, já que disse que não assinará qualquer acordo que inclua o partido de André Ventura.
Em ambos os casos, um pormenor que não é de somenos: se, em 2022, Marcelo Rebelo de Sousa pessoalizou a vitória do PS em António Costa, iria deixar governar alguém que não foi a votos? Fica a dúvida, sendo que o Chega acredita que, nessa altura, os avisos ao ainda primeiro-ministro estavam assentes numa maioria absoluta com um rosto, podendo este ser um argumento a favor da direita. Esse e a necessidade do Presidente da República em impedir meses de ingovernabilidade e umas novas eleições no espaço de meses.
O risco do castigo que o Chega está disposto a correr
Os cenários que são possíveis no pensamento dos dirigentes do Chega podem cair por terra se Marcelo Rebelo de Sousa der posse a um governo minoritário do PSD e André Ventura tiver de decidir o que fazer. Com as probabilidades a apontarem para deixar cair o governo e certos de que também não vão contribuir para uma solução encabeçada pelo PS que surja de seguida, a rejeição do Chega pode atirar o país novamente para eleições. E isso pode sair caro ao partido.
Não seria o primeiro caso em que a queda de um governo de direita resultaria no reforço do PSD. Em 1987, o Partido Renovador Democrático, criado com o patrocínio de Ramalho Eanes, então Presidente da República, aliou-se ao PS e apresentou uma moção de censura para derrubar o governo minoritário de Aníbal Cavaco Silva.
Liderado por Hermínio Martinho, o PRD tinha tido uma estreia de sonho, com quase 18% dos votos e 45 deputados eleitos. Dois anos depois, decidiu atirar Cavaco Silva borda fora na expectativa de que novas eleições viessem a trazer uma nova composição parlamentar. Além dos socialistas, votaram ao lado do PRD a Aliança Povo Unido, a coligação então liderada pelo PCP.
Seguiu-se a tentativa de formação de um novo Governo de coligação entre o PS e o PRD, solução proposta por Vítor Constâncio ao então Presidente da República, Mário Soares, que sucedera a Ramalho Eanes. Soares recusou, o país foi a votos e Cavaco Silva teve a sua primeira maioria absoluta. O PRD passou de 45 para apenas sete deputados e acabou por definhar nos anos seguintes.
O Observador sabe que este risco não está arredado do pensamento de André Ventura. Os dirigentes do Chega estão cientes de que é possível que o partido seja castigado pelos eleitores se uma decisão sua levar a um cenário de ingovernabilidade e a novas eleições, mas há a ideia de que a política tem riscos. E o Chega está mesmo disposto a corrê-los, reconhecendo que pode ver a bancada diminuir consideravelmente.
Coisa diferente é a esperança de que isso possa contribuir para uma mudança no cenário político português, com o Chega a acreditar na possibilidade de os eleitores punirem quem não permitiu que no governo estivesse refletida a vontade dos portugueses. Por outras palavras: no Chega há quem acredite que poderá ser o PSD o mais prejudicado por, mesmo com uma expressiva quantidade de deputados liderados por Ventura (uma esperança assente nas sondagens), ter optado por uma solução minoritária sem o Chega.
Já há dois anos, quando Ventura disse ao Observador que não ia “haver governo à direita sem o Chega, nem que Cristo desça à Terra”, e foi confrontado com o risco de ter o mesmo destino do PRD se for responsável pela queda de um eventual governo de direita, André Ventura rejeitou qualquer comparação e disse não temer os efeitos de ser um fator de bloqueio à maioria de direita. “Ramalho Eanes era Presidente da República, deixou de ser, o PRD foi ficando praticamente órfão. Não estou a pensar nem morrer, nem retirar-me. Não creio que isso vá acontecer.”
Por outro lado, defendeu-se com outro exemplo, dizendo que a “excessiva complacência” que o CDS revelou no passado perante a hegemonia do PSD foi a sua sentença de morte. “A moderação que Assunção Cristas quis impor no partido para se tornar uma espécie de PSD II viu-se onde é que levou o CDS, ao desaparecimento”, argumentou o líder do Chega, que entende que esse “erro” nunca vai ser cometido pelo partido que lidera.
Agora, que Ventura acusa o PSD de se apresentar a votos com uma “alternativa com 40 anos” indo ressuscitar a Aliança Democrática para contribuir para a “ressurreição” de “partidos mortos”, o Chega está disposto a correr o risco de inverter o ritmo de crescimento dos últimos anos para manter o finca pé a um governo do PSD que não tenha o seu símbolo. Nos últimos dias, Ventura usou o sarcasmo para sublinhar que “a história cristã mostrou que só se ressuscita uma vez” e que “Luís Montenegro não é Jesus Cristo”. Resta saber se no dia a seguir às eleições Ventura mantém que não há governo de direita sem o Chega, “nem que Cristo desça à Terra”, como chegou a dizer.