Depois da queda de um Governo com maioria absoluta que prometia estabilidade, o cenário governativo que sairá das próximas eleições legislativas pode tornar-se num quebra-cabeças em que o Chega se torna numa peça fundamental. As sondagens apontam para o crescimento exponencial do partido de André Ventura e pressupõem que o Chega pode mesmo ter nas mãos a viabilização de um governo minoritário, porém as respostas a essa questão são tudo menos concretas. No último ano, Ventura já sublinhou que sem membros do partido num governo do PSD não há fumo branco e também já assegurou que não manda “governos abaixo só porque sim”. Os avanços, recuos e as tentativas de esclarecimento acabam sempre em mais dúvidas e no dia 10 de março há apenas uma certeza: ninguém sabe o que fará o Chega com os votos que conquistar.

Ainda o Chega estava longe dos valores que as sondagens lhe dão atualmente e já André Ventura garantia que não iria haver um governo à direita sem o partido que lidera. “Nem que Cristo desça à Terra”, chegou a afirmar ao Observador em novembro de 2021. Mas a maioria absoluta do PS que saiu das eleições legislativas de 2022 facilitou o cenário pós-eleitoral — já que a direita não teve nem uma palavra a dizer e o caso do Chega ficou adiado para outra fase. A queda prematura do Governo de Costa voltou a colocar a discussão no centro da atualidade política, com os dirigentes do Chega a serem constantemente questionados sobre o que farão no dia seguinte.

Seja em conferências de imprensa, declarações ou entrevistas, André Ventura multiplica-se em respostas sobre o tema, com um sublinhar constante da tese de que “o Chega não tem de viabilizar nada” e de que a responsabilidade está do lado do PSD. Numa das entrevistas que deu após a demissão de António Costa, à TVI, o líder do partido conservador colocou o ónus do PSD ao explicar que se o Chega ganhasse seria o primeiro a ligar aos partidos de direita para propor uma solução.

Confrontado com um cenário mais realista (em que o PSD ficaria à frente do Chega), Ventura lançou um conjunto de questões: “Para que serve a coligação do PSD com IL e CDS se não tem maioria?”; “PSD vence e diz que não quer os votos do Chega, nós vamos dá-los? Se eles não querem…” ou “Se houver uma maioria à direita o PS governa como, com o apoio de quem? Do PSD?”

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E arrumou um dos temas com todas as letras: não dá luz verde a um governo socialista. “Nenhum governo do PS é aprovado pelo Chega”, assegurou nessa mesma entrevista, após ter deixado clara, por diversas vezes, a intenção de provocar a queda um executivo do PS caso tivesse essa hipótese em mãos. Aliás, esta é uma das narrativas que mais tem cavalgado nos últimos tempos: no caso de o Chega apostar numa não viabilização de um governo minoritário à direita, o PSD pode deixar passar um governo do PS? Ventura não tem dúvidas de que pode acontecer.

Aos olhos do presidente do Chega, o partido tem feito tudo para responder ao Presidente da República — que assumiu em tempos não ver uma alternativa à direita —, assegurando estar disponível para fazer parte de uma alternativa e para dar um governo desse espetro político a Portugal — um cenário que se tornaria aritmeticamente facilitado com os votos no Chega. Nesta conjuntura, Ventura não se sente responsável com a queda de um governo por considerar que quem tem tudo nas mãos são os sociais-democratas: “Se o PSD quiser tentar sozinho a aventura de dizer ‘vamos para a frente, a irresponsabilidade é a nossa forma de atuar e vamos ver no que dá’, o que vai dar é cair no primeiro dia na Assembleia da República e não venham dizer que o PS vai governar porque com o nosso apoio também não é.”

Por outras palavras: Ventura disse que se o PSD não falar com o Chega para formar um governo deixará cair essa proposta através de uma não viabilização e o falhanço de uma tentativa de governo minoritário — palavras que já tinha usado após o PSD se unir ao PAN na Madeira, não colocando sequer o Chega na equação. Poucos dias depois, numa entrevista à TSF e DN, voltava a ser perentório: “Se o Chega não fizer parte da solução, não há nenhum governo à direita, a não ser que o PS viabilize.” E como “parte da solução” entende, mais uma vez, ter funções governativas, nomeadamente ministros, uma exigência que já tinha nos tempos em que Rui Rio presidia o PSD.

Se desde que o Governo caiu Ventura tem optado, cada vez mais, por tentar esclarecer o que fará no dia seguinte — vincando cada vez menos a impossibilidade de viabilizar um governo do PSD sem o Chega —, a verdade é que nos últimos meses abriu a porta a várias versões — numa delas até com o sentido de Estado de não mandar governos abaixo sem razão ou “só porque sim”. Numa entrevista à CNN poucos dias depois da convenção em que foi reeleito e onde assegurou perante os militantes que “ou não há governo de direita ou há governo com o Chega” — sem geringonça de direita — disse o seguinte quando questionado sobre o que faz se ficar de fora de um governo do PSD: “Não posso dizer se votamos contra ou não porque depende do que apresentarem.”

Como justificação, Ventura vai até buscar o facto de o Chega já ter votado a favor de “propostas do PS e PCP” para assumir que o partido “não vota contra por o autor ser PS ou PSD” — e sugerindo que fará o mesmo quando tiver de tomar uma decisão sobre deixar cair um executivo, acrescentando que votaria, por exemplo, contra um governo que não combatesse “a corrupção e o clientelismo”.

Mas até no fim desta resposta resumiu que, na sua visão, o PSD só apenas “duas hipóteses”: a possibilidade de propor uma coligação ao Chega ou negociar com o PS e abstenção no programa de governo e nos Orçamentos do Estado.

Há dez meses, o presidente do Chega não achava “razoável uma solução em que alguém esteja no governo e os outros estejam a apoiar no Parlamento”. Mas foi o próprio a traçar exceções numa entrevista ao Nascer do Sol: “Com isto, não estou a dizer que num cenário hipotético de salvação nacional isso não fosse possível. O Chega, certamente, se essa fosse a única solução, não viraria a cara ao país. Agora não é uma solução razoável no nosso sistema político.”

E negou a ideia de que disse que “não viabilizaria ninguém”. “O que disse é que não nos comprometemos. Ou seja, não há nenhum compromisso. Vamos ver caso a caso. Não mandamos governos abaixo só porque sim. Olhamos para o programa, para os ministros e tomamos uma decisão. Se for uma coligação, comprometemo-nos e assinamos a dizer que vamos votar a favor. Se não, temos que ver caso a caso.” A frase deixava dúvidas sobre se o “caso a caso” não funcionaria como uma gerigonça, mas Ventura esclareceu que “não havia acordo nenhum” e que o partido entenderia viabilizar por ser “melhor para o país”. “Se o Chega não fizer parte do governo, o compromisso com o governo é zero. Aí, decidimos caso a caso, orçamento a orçamento. Tal como fizemos com o PS, com quem não temos acordo nenhum. Neste caso, votamos sempre contra”, esclareceu.

Mas também disse que “podia votar” contra um governo do PSD com ses: “Se fosse um mau governo com um mau programa. Mesmo que isso provocasse a queda do governo.” Ventura garante não ter medo de mandar abaixo um governo social-democrata independentemente do cenário —  mesmo que depois “ganhem uma maioria absoluta ou que o PS volte ao poder”. Ainda que deixe em aberto a hipótese contrária, ao dizer que se o partido achar “razoável” viabilizar também o ponderará, olhando para os votos. E, em última instância, não nega a possibilidade de viabilizar: “Admito. Sendo que a probabilidade de isso acontecer é de 0% a 1%. Mas coloco essa possibilidade teórica.”

É exatamente essa hipótese teórica que pode permitir ao PSD chegar ao governo com a abstenção de um Chega que pode ter os votos suficientes para dar uma maioria parlamentar à direita, mas que está isolado num cerco sanitário imposto por todos os partidos, da esquerda à direita — sendo que o “não é não” dos sociais-democratas foi o último e o que teve o maior impacto.

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O Chega recusa-se a ser “muleta” do PSD, não aceita ser um “CDS 2” ou até uma “IL versão 2” e desde que o Governo caiu não só tem apostado numa moderação que considera conquistar votos e travar o voto útil no PSD, como pretende fazer frente ao próprio PSD — como adversário, mas também com esperança de poder negociar no dia seguinte. Durante o último mês, em que André Ventura vestiu o fato de regime (principalmente nos primeiros dias após a demissão de António Costa), o líder do Chega optou até por dar mais uma alternativa ao Presidente da República:

“Que nunca fique em causa a existência de um Governo de direita por minha causa. Para mim, o que é fundamental é haver um Governo de direita. Se a exigência do Presidente da República for que eu, presidente do Chega, André Ventura, não seja parte desse Governo, não é por isso que não vai haver Governo.”

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A questão está mesmo na existência ou não de um governo com o Chega e menos do que isso Ventura não abdica porque considera que o acordo da direita nos Açores foi uma má experiência. E nesse caso é claro: “O exemplo dos Açores não vai ser repetido”, disse ao Observador em janeiro de 2022, usando a palavra “nunca”. E foi até mais longe para apontar a geringonça nos Açores como o seu “maior fracasso político” e também do partido.

“Nos Açores sentimos que temos tudo o que é mau e nada do que é positivo. Isso é estarmos ali a ser marionetas do PSD e isso não aceitamos”, justifica, uma ideia que repetiu perante os militantes na convenção para defender que “quando os partidos sentem que simplesmente estão lá para levantar o braço e para baixar, mas não são corresponsáveis com a governação, o que acontece o que vimos, um governo desmoronar-se, que acabou por cair em outubro de 2021”.

Usando exatamente esse exemplo, Ventura pedia à reunião magna o poder de decidir que “nunca escolheria ir para uma geringonça à direita” — um poder que acabou lhe acabou conferido pela vitória na convenção — e um dos que tem levado até ao fim sem curvas no discurso. Ou seja, Ventura até podia acabar por viabilizar um governo do PSD (como chegou a dizer), mas garantiu várias vezes que jamais assumirá compromissos com o PSD para deixar passar o programa do governo e orçamentos — como o PS fez com Bloco, PCP e PEV em 2015.

A verdade é que o Chega pode vir a ser o trunfo para que Portugal não fique perante um cenário de ingovernabilidade e pode contribuir exatamente para o contrário. Caso o Chega não permita que um governo de direita passe na Assembleia da República por não marcar presença no executivo, PS e PSD terão de se entender ou o país será novamente atirado para eleições. Ventura queria poder e tem poder, resta saber o que fará com ele.