Começam a aparecer as primeiras brechas na estratégia de André Ventura. Mesmo depois de ter exigido um referendo à imigração como moeda de troca para a viabilização do Orçamento do Estado, mesmo depois de ter garantido que o voto contra era “irrevogável”, mesmo depois de ter dito que admitia rever a posição a troco de um acordo para quatro anos, e mesmo depois de Luís Montenegro ter jurado que não contava com o Chega para nada, Ventura já vai admitindo viabilizar o Orçamento sem qualquer ganho de causa palpável.
Sem uma posição oficialmente tomada, do lado do Chega, a estratégia para revogar o “irrevogável” está a ser montada: mais vale viabilizar o Orçamento do que ir para umas eleições que podem ser ouro sobre azul para Luís Montenegro (e, muito provavelmente, um problema para André Ventura). Na terça-feira, momentos antes de o primeiro-ministro aparecer na televisão a dizer que as negociações com o PS estavam encerradas, Ventura encontrou-se com os deputados e saiu da reunião mantendo o tabu. Nem sim, nem não.
Horas antes dessa reunião da bancada parlamentar do Chega, uma informação atribuída a fontes do partido dava conta da disponibilidade do partido para votar a favor do Orçamento caso o acordo entre Montenegro e Pedro Nuno viesse a falhar — tal como aconteceu. Publicamente, Ventura não confirmou essa intenção e disse mesmo que o Orçamento que vai a votos “é do PS e do PSD” — o que pressupõe que o Chega estivesse contra um documento onde não teve qualquer intervenção. Mas pode não ser bem assim.
Existia a expectativa de perceber o que diria Luís Montenegro em entrevista à SIC e se, em algum momento, apostaria em algum de tipo de operação de charme em relação ao Chega. Não aconteceu. O primeiro-ministro fez questão de cumprir à risca a estratégia delineada, destratando Ventura, desqualificando o Chega como potencial parceiro de negociações e dizendo que o partido se transformara num catavento — o objetivo foi mesmo retirar centralidade a Ventura e esvaziar qualquer aparência que pudesse subsistir de margem para negociar. Esta tarde, António Leitão Amaro repetiu a mesmíssima ideia: o Chega está riscado e não entra para as contas.
Ora, desta vez, e ao contrário do que é habitual em Ventura, que não raras vezes acusa Montenegro de estar a tentar “humilhar e a “espezinhar” o Chega, a ordem foi para não reagir. “As declarações [dos membros do Governo] provam que eles querem mesmo ir para eleições e quanto mais eles quiserem isso mais nós queremos não ir. Cada vez mais se justifica viabilizar o Orçamento do Estado”, explica um alto dirigente do Chega ao Observador.
Na cabeça de vários elementos do núcleo duro de André Ventura considera-se que as palavras de Luís Montenegro e de António Leitão Amaro servem apenas para desestabilizar o partido e provocar o erro. Ventura, tantas vezes rápido no gatilho, prefere agora pôr gelo nos pulsos. “A decisão que tomarmos será independente do que os elementos do Governo acham ou querem”, argumenta um deputado do Chega em declarações ao Observador. “Se viabilizarmos o Orçamento do Estado, ganhamos dois anos e temos tempo para fazer trabalho de fundo no partido”, acrescenta outro.
“A vida é para quem sabe adaptar-se”
Ou seja, a balança do Chega está a orientar-se para outro sentido que não era o original. Perante o cada vez mais plausível chumbo do PS ao Orçamento do Estado, o Chega já não pode ambicionar ficar com o papel exclusivo de líder da oposição. E a corresponsabilidade de derrubar o Governo também não agrada muito. No limite, pode mesmo imperar o sentido pragmático: mais vale 50 deputados a desgastar um Governo minoritário do que 20 ou 30 a bater num Executivo bem mais reforçado.
Tudo somado, as coisas para o partido de André Ventura colocam-se nestes termos: “Se o PS viabilizar, agradecemos porque poupa-nos aos custos do curto prazo e temos o que queremos de borla; se o PS não viabilizar, a situação exige medidas táticas. A vida é para quem sabe adaptar-se”, diz fonte do partido ao Observador. “Se as eleições forem só nessa altura [daqui a dois anos], o tempo já joga a nosso favor e não a favor deles”, acrescenta outra.
Este sentido de prudência indicia uma mudança de estratégia evidente no Chega. Ainda há poucas semanas, quando Ventura se colocava de forma definitiva fora das negociações do Orçamento do Estado com o “irrevogável”, eram dadas indicações aos deputados, em plenas jornadas parlamentares, de que era preciso preparar o partido para possíveis eleições antecipadas. Não havia espaço de manobra, Ventura recusava recuar e até antevia um futuro que podia não ser nada risonho para o Chega, consciente de que a bancada de 50 deputados podia mesmo encolher.
“Não queremos perder deputados? Não, não queremos. Queremos ganhá-los. Queremos passar a barreira da maioria parlamentar? Queremos. Podemos perder? Podemos. E o partido tem que saber isso”, avisava o líder do Chega. Ainda assim, o foco era em preparar o Chega para essa possibilidade, com pedidos explícitos para que o partido estivesse unido e na rua.
Agora parece que o Chega encontrou uma forma mais confortável de lidar com o futuro próximo: fazer de tudo para, como Ventura foi dizendo, “evitar uma crise política”. Com a ideia de que o Governo da Aliança Democrática está a preparar-se para ir a votos e “começar tudo de novo para garantir uma legislatura para quatro anos”, o Chega entende que umas eleições antecipadas talvez não sejam nada boa ideia para o partido.
A acrimónia de Luís Montenegro em relação ao Chega também inspira muita cautela. “Se eles quisessem aprovar o Orçamento juntavam as mãos e iam a Fátima. E isso é um alerta. O Governo tem posto a coisa complicada mesmo ao PS”, desabafa um membro da direção do Chega, alimentando a tese de que Montenegro quer mesmo ir a eleições e está a provocar os dois potenciais parceiros para que caiam na casca de banana.
Além disto, há outra tese a ser alimentada nos corredores do Chega: o jogo do Orçamento do Estado não acaba na votação da generalidade; essa é apenas a primeira parte. O documento até pode passar na generalidade, previsivelmente com o voto a favor do Chega, mas, a partir daí, a bola regressa aos partidos da oposição. Tal como se viu até aqui, PS e Chega têm capacidade para, juntos, aprovarem medidas contra a vontade do Governo — e vão fazê-lo seguramente no debate da especialidade.
“Se o Orçamento do Estado chegar à especialidade, e o Chega e PS aprovarem propostas que não sejam do PSD, o próprio Governo vai dizer que este não é o seu Orçamento e, nesse caso, serão eles próprios que não o querem”, antecipa um deputado do Chega. Nessa circunstância, Montenegro atirará a toalha ao chão. “Para nós era ouro sobre azul passar agora e na especialidade não [por vontade de Montenegro]; seria o Governo a ficar mal na fotografia”, profetiza fonte do partido. Ainda há muito jogo pela frente.