Este artigo é da responsabilidade de Marco Miguel, Optometrista na Shamir Optical
O Dia Mundial da Criança surge como forma de celebrar a Convenção dos Direitos da Criança, aprovada em Portugal em 1990 onde as crianças foram reconhecidas como atores sociais, económicos, políticos, civis e culturais, detentoras de vários direitos.
É importante celebrar esta grande conquista, mas esta data deve também lembrar-nos do quanto ainda há para fazer no sentido de garantir à criança o direito a uma infância digna.
Atualmente, continua a ser uma preocupação os problemas que milhões de crianças em todo o mundo enfrentam, no qual Portugal se inclui. As crianças continuam a viver casos de pobreza, privação de afetos, abuso, negligência e maus-tratos. O abandono escolar, as dificuldades de acesso a cuidados de saúde, as doenças crónicas e a deficiência, o aumento de casos de obesidade e as doenças do foro comportamental são, igualmente, exemplos de situações que as crianças continuam a enfrentar e que a sociedade não deve ignorar.
Segundo estudado por Jean Piaget o desenvolvimento infantil é um processo de aprendizagem no qual as crianças adquirirem e aprimoraram diversas capacidades no âmbito cognitivo, motor, emocional e social e os principais fatores que podem impactar o desenvolvimento infantil são:
- Ambiente onde a criança vive;
- Hereditariedade (os seus pais, avós etc.);
- Alimentação;
- Problemas físicos.
Surgem então os jogos e as brincadeiras que constituem uma parte fundamental do processo de desenvolvimento infantil. Através das brincadeiras, as crianças têm a possibilidade de explorar os seus sentimentos e emoções e também os seus medos e angústias. Permitem que as crianças criem situações hipotéticas que auxiliam no desenvolvimento das capacidades de reflexão, análise, raciocínio, imaginação e criatividade.
O ato de brincar com outras crianças, por exemplo, ensina a criança a partilhar, quer seja um brinquedo ou um espaço comum. Assim, a socialização ajuda a criança a ultrapassar a fase do egocentrismo. O estabelecimento destas relações é fundamental para o desenvolvimento da inteligência emocional da criança, evitando potenciais problemas afetivos no futuro e promovendo o desenvolvimento das tão valorizadas soft skills.
É com base neste tipo de desenvolvimento que a criança estabelece com outras pessoas uma espécie de intercâmbio de informações, permitindo-lhe adquirir cultura, tradições e normas sociais, bem como certas capacidades de interação e noções de limites.
A criança explora o mundo pelos sentidos e ações que executa, testando as suas novas sensações e perceções: olha, escuta, pega, morde, joga… É através da coordenação dos movimentos, que partem da vontade e do desejo da criança, que se realiza uma ação. A integração visomotora, conhecida como coordenação olho/mão, depende de importantes sistemas relacionados com o neuropsicodesenvolvimento da criança, como o sistema propriocetivo, vestibular, o processamento visual e o sistema sensório-motor.
A fase de gatinhar é fundamental para essa integração. Cada vez mais estudos relacionam dificuldades cognitivas, psicomotoras, visiomotoras e oculomotoras com a ausência do gatinhar. Há quem defenda que a falta do gatinhar e interagir, associado ao uso das tecnologias, como tablets, smartphones e até a televisão, pode ser prejudicial para o desenvolvimento da criança, em concreto da visão binocular (os olhos são usados em conjunto), mecanismo este que se desenvolve a partir do 2º trimestre de vida e se consolida entre os 4 e 6 anos. Podemos então assumir que brincar constitui um comportamento de construção e consolidação de conhecimento e desenvolvimento do Eu, do outro e da relação com o Mundo que nos rodeia.
Brincar é um ato natural e deve ser estimulado diariamente. Os que deixaram de brincar, normalmente redescobrem o prazer da brincadeira quando experimentam a paternidade, tal como eu o redescobri. No entanto, na fase evolutiva, os brinquedos hoje não são os mesmos, e, quer queiramos quer não, já não se brinca da mesma maneira. É uma luta constante com a tecnologia, que mesmo tendo uma componente positiva, está sempre presente nas nossas vidas, privando as crianças de brincar em campo aberto e, essencialmente, com luz natural. Isto relaciona-se com a premissa apoiada pela OMS, que estima que pelo menos metade da população mundial seja míope até 2050 e que o principal fator se deva à falta de exposição à luz solar natural. Enquanto nos primórdios o ser humano fazia da visão de longe uma ferramenta para se alimentar ou se proteger de potenciais predadores ou condições climatéricas adversas, hoje, devido à digitalização, está a perder a capacidade natural de ver ao longe, ficando míope.
Falta de autoconfiança, dificuldades de aprendizagem e desafios nas interações sociais ou individuais, são alguns dos problemas relacionados com doenças visuais que as crianças podem enfrentar. É fundamental estar atento e rastrear, tendo em conta que 80% da informação sensorial vem das perceções que nos chegam recebidas pelo órgão da visão. A inclusão das tecnologias no novo paradigma das crianças, e estas novas formas de brincar e aprender, trazem-nos uma preocupação acrescida, sendo fundamental um bom aconselhamento oftalmológico, para gerir possíveis alterações visuais.
Em suma, para que o brincar seja efetivamente inserido nos processos educativos e de desenvolvimento é necessária uma atitude favorável ao mesmo, bem como uma mudança no comportamento de cada interveniente no desenvolvimento das crianças promovendo o ato de brincar com o máximo de luz natural possível. Para nosso gáudio, existem escolas em Portugal que disponibilizam bolas, cordas, matraquilhos, entre outros, de forma a tentar moderar o uso das tecnologias, e não será também por aqui o caminho?