Índice
Índice
Artigo publicado no Halloween de 2014 e republicado por ocasião do Halloween de 2022
O Halloween é, a seguir ao Natal, a festividade mais lucrativa nos Estados Unidos da América. Só em doces, estima-se que o evento, celebrado com paradas e grandes eventos públicos de que os mais novos são os principais entusiastas, renda cerca de 1,5 milhões de euros todos os anos. É por estas e outras razões que o Halloween é encarado como uma das celebrações mais tipicamente norte-americanas, que, aos poucos, tem vindo a ganhar adeptos noutras partes do mundo. Só que, muito antes de ser americano, o Halloween — ou melhor, a festividade que se celebrava nesse dia — foi irlandês.
Acredita-se que o Halloween ou Hallowe’en — abreviatura escocesa de Allhallow-even, que quer dizer eve of all saints, isto é, “noite de todos os santos”, um termo que surgiu apenas no século XVII — tem origem numa antiga celebração celta, o Samhain, que marcava o fim do verão. Era a grande festa dos celtas e durava três dias. Apesar de este povo ter há muito desaparecido e de a festividade ter sido substituída no calendário por uma outra mais católica, o Dia de Todos os Santos, o espírito do antigo Halloween não morreu. Mais de dois mil anos depois, a chegada do inverno continua a ser festejada da mesma forma — com uma grande celebração, com comida, doces e máscaras.
O fim do verão e as origens celtas do Halloween
Mas o que é que era o Samhain? O Samhain, Samain ou Samhuinn (um termo de origem gaélica que significa “o fim do verão”), marcava o início do inverno, o fim das colheitas e o início do novo ano celta e, de acordo com calendário gregoriano adotado no século XVI, tinha o seu ponto alto a 1 de novembro. Era a celebração mais importante do antigo calendário dos celtas. Apesar de a data ter dado lugar à celebração cristã do Dia de Todos os Santos, o Samhain perdura até aos dias de hoje sob a forma de diferentes tradições e costumes de influência celta.
Tradicionalmente, o Samhain durava três dias, que hoje correspondem à Vigília de Todos os Santos (noite de 31 de outubro), Dia de Todos os Santos (1 de novembro) e Dia dos Fiéis Defuntos (2 de novembro). Este é um período que, desde tempos imemoriais, está associado aos fantasmas, aos espíritos e à morte. Para os celtas, era uma altura em que o véu que separava o mundo visível do invisível, o mundo dos vivos do dos mortos, se tornava mais ténue. Os que já tinham partido regressavam à terra, e os deuses e outros seres do submundo passeavam livremente entre os vivos. Era, por isso, uma festividade que servia para honrar os antepassados, através de oferendas.
Na Irlanda e na Escócia celtas, era costume acenderem-se fogueiras no topo das colinas, os chamados hallowe’en fires (os “fogos de hallowe’en”). Estes fogos, em honra dos familiares já falecidos, serviam para purificar as pessoas e a terra, de modo a afastar os demónios, que eram mais fortes nesta altura do ano. Na Escócia, serviam também para afastar e destruir as bruxas. Apesar de muitas das tradições celtas se terem perdido com a cristianização, os hallowe’en fires continuaram a arder no topo das colinas até cerca de finais do século XIX no território escocês. Na Irlanda, foram substituídos por velas.
Alguns investigadores acreditam que o Halloween também tem elementos da festa celebrada em honra da deusa romana da fruta e das árvores, Pomona. Segundo Ruth Edna Kelley, autora do primeiro livro sobre a história desta tradição, havia um pomar consagrado à deusa perto de Ostia, nos arredores de Roma, onde era celebrado um festival em sua honra por volta do dia 1 de novembro. Era nesta data que eram abertos os celeiros onde se tinham armazenado os frutos secos e as maçãs para o inverno.
A semelhança entre as duas celebrações terá levado os romanos a assimilarem algumas das características do Samhain — com o qual passaram a ter contacto depois da sua chegada às ilhas britânicas no século I a.C. — e a incluí-las nas celebrações de Pomona. Mas o contrário também terá acontecido. De acordo com o site romae.org, dedicado à cultura clássica, as maçãs, associadas ao amor e à fertilidade, tinham também um aspeto místico para os romanos, e eram usadas na adivinhação. Esta tradição terá inspirado vários jogos que eram praticados na noite do Samhain, que era também uma altura para descansar, relaxar e fazer alguns jogos, alegres e muito barulhentos.
Os próprios celtas acreditavam que a presença dos espíritos era propícia à adivinhação e muitos dos jogos tinham um caráter divinatório (independentemente de uma eventual influência romana). A maioria estava relacionada com o amor ou o casamento, e alguns persistiram até aos dias de hoje, ainda que já sem a vertente amorosa. É o caso do apple bobbing ou bobbing for apples, que consiste em tentar pescar uma maçã com a boca de um tanque cheio de água. Um outro jogo que envolvia maçãs era o apple peeling (“descascar a maçã”). Este consistia em descascar uma maçã, numa só tira, e depois atirar a pele sobre o ombro esquerdo. A forma com que aterrasse no chão seria a inicial do futuro marido. Dizia-se também que se uma mulher descascasse uma maçã à meia noite de 31 de outubro em frente a um espelho, ficaria a conhecer a cara do homem com quem se iria casar.
Num outro passatempo, os jogadores tinham de comer pequenos bolos chamados barmbracks, que tinham no seu interior um anel ou uma noz. Estes permitiam saber quem se iria casar e quem iria ficar solteiro. Ruth Edna Kelley, em The Book of Hallowe’en, deu conta de uma tradição semelhante, que era praticada na Ilha de Man. Nesta, para saberem o nome do futuro marido, as jovens tinham de se sentar em frente a uma porta com um pouco de água e dois punhados de sal. O primeiro nome que ouvissem era o do homem com quem se iam casar.
É por causa destas antigas tradições que, em alguns locais, o Halloween é conhecido pela “noite de quebrar a noz”, “noite da maçã” ou “noite da maçã e da vela”, nomes que provêm dos antigos jogos celtas. O Samhain era também uma altura em que eram pregadas partidas e, em algumas localidades, eram usadas máscaras feitas de crânios e peles de animais — disfarces muito diferentes dos que são usados nos dias de hoje.
De festival celta a celebração cristã
As celebrações cristãs que se assinalam nos dias que correspondem ao antigo Samhain são, naturalmente, mais recentes. A mais conhecida das três, o Dia de Todos os Santos, dedicada aos mártires e santos cristãos, terá surgido no oriente, tendo sido introduzida posteriormente no ocidente pelo Papa Bonifácio IV, em 610. Inicialmente, a data era também dedicada à Virgem Maria e era comemorada em maio (o mês da mãe de Jesus), numa altura em que eram celebradas as Lemuria romanas. As Lemuria eram os dias dos lemures, espíritos malvados que voltavam à terra nos dias 9, 11 e 13 de maio para perturbar os familiares vivos.
A data só começou a ser comemorada em novembro a partir do século VII, primeiramente em Inglaterra. Depois de se generalizar a todo o império de Carlos Magno, t de comemoração obrigatória durante o reinado de Luís, o Pio, em 835, provavelmente a pedido do Papa Gregório IV, de acordo com um artigo da Agência Ecclesia. A festividade era celebrada de forma semelhante ao Samhain celta, com fogueiras, paradas e pessoas mascaradas de santos, anjos e demónios.
Só mais tarde é que surgiu o Dia de Todas as Almas ou dos Fiéis Defuntos, dedicado aos que já morreram. Apesar de ser uma celebração diferente da anterior, existe uma ligação entre as duas datas, uma vez que nas duas, como explica a Agência Ecclesia, se celebra a vida depois da morte e a esperança da ressurreição. O Dia dos Fiéis Defuntos remonta ao final do século I d.C., quando Santo Odilão, Abade de Cluny, determinou que em todos os mosteiros da sua ordem se fizesse, no dia 2 de novembro, uma evocação de todos os defuntos “desde o princípio ao fim do mundo”, refere a Agência Ecclesia. Foi só, contudo, em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial, que o Papa Bento XV generalizou a prática, oficializada no século XIV, a toda a Igreja Católica.
Uma celebração muito americana
O Halloween só se tornou numa festividade norte-americana em meados do século XIX, com a chegada de um grande número de irlandeses aos Estados Unidos da América, na sequência da Grande Fome (1845-1849), que dizimou uma grande parte da população da Irlanda. A festividade depressa ganhou popularidade, sobretudo entre os mais novos, ganhando raízes em solo norte-americano. Os norte-americanos começaram a mascarar-se e a pedir dinheiro ou comida de porta em porta, uma prática que acabou por se tornar no típico trick or treat (“doce ou travessura”) e que terá provavelmente tido origem nas primeiras comemorações do Dia dos Fiéis Defuntos em Inglaterra. Nessa data, os pobres costumavam pedir comida de porta em porta. As famílias davam-lhes pequenos bolos chamados soul cakes (“bolos da alma”) em troca de uma oração pelos seus familiares já falecidos.
Apesar da popularidade da festividade, foram vários os movimentos que, ao longo dos séculos, tentaram tornar o Halloween menos “sobrenatural”, tentando transformá-lo numa celebração mais virada para a comunidade do que para os fantasmas e as partidas. A ideia acabou por pegar, e no final do século XIX, era comum passar a noite numa pequena festa, com jogos e comida da época. No início do século XX, muitas das superstições associadas ao Halloween acabaram por desaparecer, ao mesmo tempo que a celebração foi ganhando outras características.
Foi também nos Estados Unidos que o hábito pregar partidas na noite de Halloween se tornou mais sério. No século XIX, quando a maioria dos cidadãos vivia ainda em pequenas comunidades, as brincadeiras mais comuns consistiam em atar cordas de uma ponta à outra dos passeios para que as pessoas tropeçassem e caíssem, cortar arbustos ou encher as janelas com sabão. Segundo o Smithsonian, em 1887, um grupo de crianças espalhou melaço nos assentos de uma igreja e, em 1891, as janelas das casas novas apareceram pintadas de preto. Em 1894, cerca de 200 rapazes atacaram as pessoas mais bem vestidas com sacos de farinha em Washington D.C.. Com a viragem do século e com o crescimento das populações nas grandes cidades, onde a pobreza, a segregação e o desemprego eram problemas bem reais, as brincadeiras tornaram-se mais sérias — e perigosas.
As crianças puxavam alarmes de incêndio, atiravam tijolos às montras das lojas e escreviam obscenidades nas paredes das casas. Os principais alvos eram os grandes proprietários, as autoridades ou qualquer adulto que se metesse à sua frente. Pediam dinheiro ou doces e, se não recebessem o que queriam, ameaçavam com atos de vandalismo. Também segundo o Smithsonian, no início do século XX, foram vários os jornais que relataram incidentes envolvendo crianças de 11 ou 12 anos armadas com espingardas. Nas décadas de 1920 e 1930, apesar dos esforços das escolas e comunidades locais, o vandalismo acabou por tomar conta das celebrações do Halloween. Uma situação que só acabou por ser revertida umas décadas mais à frente.
A lenda de Stingy Jack ou Jack o’ Lantern
A par dos doces e dos disfarces, há um elemento que não pode faltar nas celebrações norte-americanas — as jack o’ lanterns, as típicas lanternas de abóbora esculpida que são colocadas à porta de casa. Esta tradição também tem uma origem celta e está associada a uma antiga lenda irlandesa — a lenda de Stingy Jack ou Jack o’ Latern.
Diz a história que certa noite, Jack, um rapaz conhecido por gostar muito de pregar partidas, estava a voltar para casa quando encontrou, estendido num caminho de pedra, o corpo de um homem. Ao aproximar-se, apercebeu-se de que se tratava de nada mais nada menos do que do diabo. Convencido de que o seu fim tinha chegado, Jack fez-lhe então um último pedido: que o deixasse tomar uma última bebida porque gostava muito de beber. O diabo concordou, e os dois dirigiram-se à taberna mais próxima.
https://www.youtube.com/watch?time_continue=1&v=QXhF4d7kDvc
No final da noite, fiel ao seu nome, Stingy Jack (isto é, “Jack Avarento”) não quis pagar a conta e convenceu o seu companheiro a transformar-se numa moeda de prata. Não vendo motivos para desconfiar, o diabo acedeu. O rapaz pegou então na moeda e guardou-a no bolso, onde tinha uma cruz de prata que o impedia de voltar à sua forma original. Preso no bolso das calças de Jack, o diabo não teve outra alternativa senão ceder a uma nova exigência — que não o incomodaria e que, quando morresse, não reclamaria a sua alma. No ano seguinte, Jack voltou a enganar o diabo, pedindo-lhe que subisse a uma árvore e que lhe colhesse uma peça de fruta. Sem que ele reparasse, Jack gravou uma cruz no tronco da árvore, impedindo-o de descer dos ramos. O rapaz fê-lo então prometer que o deixaria em paz por mais dez anos.
Passado esse tempo, Jack morreu. Quando Deus não permitiu que entrasse no Céu, desceu aos Infernos e pediu ao diabo que o acolhesse. De mãos atadas por causa da promessa que lhe tinha feito anos antes, viu-se obrigado a negar-lhe entrada. Assustado, Stingy Jack apercebeu-se que não tinha para onde ir, condenado a vaguear pela escuridão, entre o Céu e o Inferno. Com pena dele, o diabo deu-lhe um punhado de carvão para que pudesse iluminar o caminho, que colocou dentro de um nabo, o seu alimento favorito, esculpido em forma de lanterna. Desde então, Stingy Jack tem vagueando pela noite, apenas com a sua lanterna para lhe fazer companhia.
Inspirados por esta lenda, os irlandeses costumavam esculpir caras em nabos, beterrabas e batatas para afastar Jack e outros espíritos traiçoeiros. As abóboras, originárias da América do Norte, só começaram a ser utilizadas mais tarde, quando a tradição foi levada para os Estados Unidos da América pelos imigrantes irlandeses.