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TIAGOCOUTO/Observador

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Vicente Jorge Silva em entrevista: o jornalismo, a política e a vida

Vicente Jorge Silva lembra a relação com Marcelo no Expresso, as conversas com Balsemão e a escolha de Belmiro para lançar o Público. E admite: "Não tenho um feitio fácil".

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[Esta entrevista, publicada inicialmente em setembro de 2019, é recuperada na sequência da morte de Vicente Jorge Silva]

Do jornalismo à política, Vicente Jorge Silva fala sobre tudo. Em entrevista a João Miguel Tavares no programa “Artigo 38”, da rádio Observador, conversa sobre os altos e baixos de uma carreira longa.

[Pode ouvir aqui a entrevista]

“Não tenho um feitio fácil”. A entrevista dada por Vicente Jorge Silva a João Miguel Tavares

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O Comércio do Funchal: “Quando há o 25 de Abril, queriam torná-lo num jornal de propaganda e eu abandonei imediatamente”

Deixe-me começar por uma terrível acusação. Sabe que uma das grandes responsabilidades por eu ter ido para jornalista é sua? Não sei se tem consciência disso.
Eu já tinha lido uma coisa que você disse uma vez (risos).

É verdade. Eu era estudante de engenharia química no Instituto Superior Técnico, já gostava muito de jornais, mas o aparecimento do Público em 1990 teve uma importância decisiva, no meu caso, para abandonar a engenharia e ter ido para o jornalismo. Portanto, se não gostar das coisas que eu hoje escrevo…
Não, tenho pena é que você não seja um engenheiro também. Podia ser útil ao país.

Não, ainda por cima os engenheiros têm má reputação neste país, alguns engenheiros, como sabe… O Vicente hoje em dia, não lhe quero chamar velho, mas é o grande veterano, acho eu, do jornalismo, no sentido em que…
Já sou, já sou.

Já é. Esteve no Comércio Funchal, ainda no tempo do Estado Novo. Depois chegou ao Expresso, em 1974, onde foi o fundador da mítica Revista. E, a seguir, foi fundador do Público, em 1990. Quando olha para trás, em qual destes momentos sente que o seu papel enquanto jornalista foi mais relevante?
É muito difícil responder a isso. Acho que aprendi a ser jornalista no Comércio do Funchal. Quer dizer, já tinha tido experiências em páginas literárias juvenis, aquelas páginas que fazemos quando estamos no liceu… Cheguei a fazer uma página literária quando tinha 14 ou 15 anos, não sei como é que é possível, num semanário lá na Madeira. E, portanto, o jornalismo era uma coisa que estava profundamente entranhada em mim. Embora eu não tenha na minha família nenhuns precedentes. São todos fotógrafos. Mas eu tinha a mania do jornalismo e, depois, também do cinema.

Essa, manteve-a até ao fim.
Pois é, mas infelizmente é uma coisa um pouco frustrante. Muito frustrante.

Já o vou chatear com isso. Em relação ao jornalismo propriamente dito: começar no Comércio do Funchal também na altura não era fácil, porque havia a censura.
Não, pois claro.

Embora, ao mesmo tempo, também considere que foi um privilégio, porque a censura no Funchal, apesar de tudo, era diferente.
Era muito mais branda, porque o Funchal era uma aldeia, toda a gente se conhecia. E era fácil ir discutir com o censor. O censor era uma pessoa concreta.

"O Funchal era uma aldeia, toda a gente se conhecia. Era possível discutir com o censor os cortes que levaria. 'Então porque é que cortou isto e tal?'"

Ainda se lembra do nome dele?
Foram vários. Houve dois ou três advogados e dois ou três militares. Mas, como lhe disse, o Funchal era uma aldeia, toda a gente se conhecia. Era possível discutir com o censor os cortes que levaria. “Então porque é que cortou isto e tal?”. Quero dizer, era possível até que ele desse uma pista: se você fizesse qualquer coisa aquilo talvez passasse — coisa que não lhe ficava bem nem a ele, nem a mim. Mas o problema era nós conseguirmos fazer o jornal sair nas melhores condições possíveis. O titulo do jornal tinha sido alugado, nós não íamos fundar um jornal com o titulo Comércio do Funchal, não é? Foi alugado. Isso é engraçado: nós tínhamos uma agência de publicidade.

Quando diz “nós”, está a falar de quem?
Nós, um grupo.

Mas pessoas da sua idade? O Vicente era muito novo nessa altura, não era?
Basicamente, no grupo havia um músico, que tocava contrabaixo no casino, que era a pessoa que tinha mais dinheiro e alugou o título ao proprietário do jornal. Depois, havia um fotógrafo: o Vitor Rosado, um grande amigo. Isto no início. Depois, começámos a juntar pessoas. E claro que numa dada altura era impossível juntar a agência de publicidade e o jornal. Não tínhamos tempo para fazer as duas coisas. Portanto, tivemos que escolher. Mas alugámos o titulo. O diretor, João Carlos Veiga Pestana, deixou-se ficar como diretor — e isso foi melhor para nós porque assim não tínhamos problemas, a censura não ia depois dizer “Ah, mas vocês mudaram de diretor?” e depois era preciso pedir autorização. Curiosamente, o Veiga Pestana só teve problemas em manter-se como diretor depois do 25 de Abril, porque para ele a confusão foi demasiada. Foi aí que eu fui, por escassíssimo tempo, diretor do Comércio do Funchal.

Era já o responsável principal? Mas tinha 20 e poucos anos…
Fui eu e o José Manuel Barroso.

Foi meu colega no Diário de Notícias.
E foi uma pessoa muito importante porque era o tipo mais politizado de nós todos. Estava na Madeira a fazer a tropa. Eu não sabia que ele era do PCP, só soube há pouco tempo, porque ele me confessou. Fiquei muito espantado com isso. Fizemos uma sessão na Madeira a comemorar os tempos do Comércio do Funchal e o Barroso fez essa confissão em público. E eu disse: “Estive tanto tempo a trabalhar contigo, nunca me passaria pela cabeça que tu eras do PCP”. Mas o Comércio do Funchal começou por ser um jornal regional, dava muita importância às coisas da Madeira.

E ganhou uma ambição nacional.
Pois ganhou, exatamente.

E ainda ganhou dinheiro com isso?
Olhe, vou dizer-lhe: ganhar dinheiro é quase impossível, mas o jornal manteve-se. Ou seja, conseguimos, pelo menos, manter o jornal num patamar de sustentabilidade. Porque nós tínhamos leitores fora da Madeira. Até chegávamos a dizer que, para além do vinho da Madeira, éramos a principal exportação em termos quantitativos no número de exemplares (risos).

Quando passou em 1974 para o Expresso, foi por receber um convite?
Não, não. Nada disso. Quando há o 25 de Abril na Madeira, tive um conflito com os meus camaradas. Porque eu ainda tinha aquela… não é ingenuidade. No fundo, eu acho que tinha a convicção certa de que devia manter o jornal aberto a várias correntes democráticas. Mas a maior parte dos meus colegas, que estavam ligados a vários grupos de extrema-esquerda…

Discordaram de si…
Queriam torná-lo num jornal de propaganda e eu abandonei imediatamente.

O Expresso: “Eu tinha uma excelente relação com o Marcelo, mas…”

Então decidiu vir para o continente.
Mas ainda não tinha a certeza de para onde é que vinha. Conhecia o Balsemão dos tempos do Diário Popular, mas era um conhecimento muito vago. Mas o Expresso não estava a receber ninguém, tinha nove jornalistas, ou oito.

Em 1974?
Em 1974. O Balsemão era um homem muito poupadinho. E então eu conheci o Cáceres Monteiro, que nessa altura era diretor da Capital. Cheguei a falar-lhe na hipótese de ir para lá, mas eles também estavam com problemas. Acho que a Capital era financiada por um banco que estava com problemas por causa daquela cena do pós-25 de Abril. Numa dada altura, o Balsemão diz-me: “Oiça lá, você venha para cá durante um tempo, e pronto. Depois recebe à peça, não sei quê, depois logo se vê”. Bom, e assim fiz. E, depois de um certo tempo, adaptei-me bastante bem ao ambiente do jornal. E um dos responsáveis do jornal foi ter com o Balsemão e disse-lhe que o meu entendimento com o restante pessoal era tão bom que eu tinha que entrar para lá, porque era naturalmente da família. O Balsemão disse-me isso e eu entrei.

Quando é que ascendeu à direção do Expresso?
Muito mais tarde. Isso foi quase no fim.

Já na década de 80?
Já na década de 80, exatamente. Eu era o responsável pela revista, porque a revista começa quando o Marcelo toma conta do primeiro caderno do jornal. O Marcelo está na direção do jornal e eu tive aquela ideia com o Mega Ferreira — e outras pessoas, mas era sobretudo o Mega Ferreira e eu. O Mega não estava no quadro do Expresso, era um colaborador efetivo., como o Miguel Esteves Cardoso, a Clara Ferreira Alves, o Augusto Seabra e mais alguns. E houve essa ideia de fazer uma coisa diferente. O segundo caderno do Expresso era um segundo caderno vulgaríssimo, um pouco à inglesa. O primeiro caderno era um broadsheet, grande, e o segundo caderno também, com quatro ou oito páginas. Tinha uma reportagem, umas coisas. Então pensámos fazer uma revista em papel de jornal — infelizmente tinha de ser, porque havia constrangimentos materiais.

Portanto, a revista nasceu em papel de jornal.
Sim, mas já em formato tablóide.

E com um design mais próximo das revistas.
Sim. E nós criámos uma grande independência. Até porque eu tinha uma excelente relação com o Marcelo, mas ele sentia-se muito mais à vontade para estar a fazer o primeiro caderno sem eu estar ali, porque havia aquelas reuniões de redação e eu às vezes fazia umas perguntas: “Então esta coisa está a ser tratada de uma certa maneira, não seria melhor tratarmos isso de uma outra forma, ouvindo mais gente?”. Enfim, coisas desse género. Acho que aquela divisão foi óptima para ambas as partes: o Marcelo ficava com o primeiro caderno…

E com a política, não é?
Com as notícias políticas do primeiro caderno. Eu nem sequer tinha tempo para me meter nisso. E eu ficava com a revista. E essa divisão funcionou lindamente.

Mais tarde acabou por ser deputado, mas nunca se interessou pelo fenómeno político noticioso. Nunca foi propriamente uma das suas áreas de eleição, pois não?
Não. Fiz, por exemplo, as reportagens de campanha eleitoral do PS em 1975.

Mas não me estou a referir a reportagem, estou a referir-me às notícias mais imediatas.
Sim, isso não. Gostei muito de fazer reportagem política. Isso permitiu-me conhecer o país. Mas, como diz, é um género diferente. Mas também me permitiu conhecer o PS, num tempo em que o PS não se estava a criar, mas estava a implementar-se no terreno, com o Mário Soares.

Portanto, apesar da sua proximidade com o Marcelo, e com o próprio Balsemão, nunca lhe deu para cair mais para o lado do PSD?
Não, nunca (risos).

O Público: “Belmiro teve sempre a nostalgia de mandar no jornal, apesar de me ter respeitado”

Sei que tem uma relação muito afetiva com o Expresso — ao ponto do Belmiro de Azevedo, quando quis fazer o Público, quase ter que o empurrar…
Não, fomos nós que…

… que lhe foram bater à porta.
Sim.

O que eu dizia era que quando o Belmiro de Azevedo já tinha dado o OK, quase teve que o empurrar contra a parede e dizer: “Bem, então você vem ou não vem?” Certo?
Sim senhor, é verdade.

Portanto, esteve a desenvolver o Público, mas não estava completamente certo que iria sair do Expresso, é isso?
Eu tinha uma relação afetiva com o Expresso muito forte. Era uma relação mesmo muito forte. Tentei também convencer o Balsemão a fazer o Público. Porque era muito mais fácil e fazia mais sentido: o Balsemão era um homem daquele mundo.

E não havia um diário no grupo.
Não havia. Mas ele tinha feito um estudo com o Cebrián, do El País, e chegaram à conclusão que não havia espaço para um jornal diário em Portugal. Um disparate, porque depois o Cebrián entrou no capital do Público, durante um certo período. Foi por pouco tempo, mas não interessa. Mas o Balsemão tinha medo de se meter nisso. O Balsemão é uma pessoa hiper-cuidadosa, hiper-cautelosa e achava que aquilo era uma aventura, e que o Expresso era uma coisa sólida, segura. Embora eu insistisse com ele: “Veja lá, que os tempos estão a mudar. Agora o tempo da notícia é diferente. Você não pode fazer um jornal que fica uma semana à espera que a notícia possa ser dada. A notícia tem que ser dada todos os dias…”.

Ainda não havia internet na altura.
Não havia, é posterior ao aparecimento do Público. Quero dizer, já havia internet, mas servia-nos para nós nos expandirmos em termos de ligação Lisboa-Porto. A ligação entre as duas redações já era feita por internet. Mas eu sou um homem pré-internet. Isso é um dos meus problemas hoje. Sou uma pessoa totalmente out.

Olhando para trás — e olhando para aquilo que era o Público no início, com os seus cadernos fantásticos, todos os dias sobre um tema diferente, ciência, livros — aquilo foi uma loucura.
Foi. Mas se não fosse uma loucura não valia a pena.

Mas como é que se convence Belmiro de Azevedo, que sabia de contas, a embarcar nessa loucura?
O Belmiro de Azevedo não era especialista no negócio jornalístico, e eu também não era. Nós tínhamos era um projeto de um jornal que gostávamos de fazer e depois vimos quem é que em Portugal poderia financiar um projeto destes. Claro que seria muito mais prático ser o Pinto Balsemão, se ele estivesse para aí virado. Mas não estava. Eu achava que o Expresso era sempre a mesma coisa e queria fazer uma coisa que saísse todos os dias e acompanhasse a atualidade de uma forma muito mais viva.

"Olhando para os empresários portugueses, achei que o Belmiro de Azevedo era a pessoa mais desempoeirada"

LUSA

Mas ao mesmo tempo, com aqueles suplementos, quase que tinha um espírito de semanário.
Os suplementos eram temáticos. Era o desporto, artes, leituras…

Mas até podia fazer-se um balanço. Tinham uma outra respiração. Eram quase como se estivesse a fazer todos os dias um semanário.
Exatamente, tal e qual. Mas tínhamos o diário, onde dávamos as notícias. E então eu, olhando para os empresários portugueses, achei que o Belmiro de Azevedo era a pessoa mais desempoeirada.

E manteve essa convicção em relação a ele até ao fim?
Bom, depois tivemos uma zanga, mas essa zanga não impediu que eu continuasse a ter afeto por ele até ao fim. Senti a morte dele como se fosse um amigo que tivesse desaparecido.

Mas já não se relacionavam.
Houve umas coisas que ele fez de que eu não gostei nada, é óbvio. Mas isso tem que ver com… É a realidade.

Mas hoje em dia, quando olha para trás, acha ao mesmo tempo que ele teve uma grande tolerância em relação aquilo que foram os prejuízos consecutivos do Público?
Tolerância até um certo ponto…

Porque o Público também foi muito importante para a Sonae, não é?
Foi muito importante. Ele disse-me que tinha consciência disso, perfeitamente, que o Público era uma “peninha no chapéu”. E eu dizia-lhe: “Não. Peninha, só, não. Mais do que isso”. Ele sentiu o Público como, por exemplo, o Soares dos Santos sentiu a Fundação Francisco Manuel dos Santos. Só que o Público era uma novidade completa. E para o Belmiro também era importante ser um homem dos jornais, numa área em que ele o Balsemão tinham alguma… não era nem uma rivalidade….

"Ainda hoje acho que a Sonae tem perfeita consciência de que o Público é uma mais valia para a sua imagem e para a confiança na marca."

Havia uma necessidade de afirmação social, de ter um papel relevante na sociedade portuguesa?
Sim. O Balsemão era um senhor que vinha de Cascais. O Belmiro era um homem mais da burguesia do Porto, do interior, e portanto foi uma afirmação para ele muito relevante. Ainda hoje acho que a Sonae tem perfeita consciência de que o Público é uma mais valia para a sua imagem e para a confiança na marca.

Qual foi a polémica mais marcante da sua carreira?
Vocês dizem que é a geração rasca, mas isso não foi a polémica mais…

A geração rasca é a minha, por acaso. Mas eu nunca andei a mostrar…
…não andou a mostrar o rabo.

Não, não nunca mostrei o rabo, só em privado.
Só em privado… muito bem, acho bem. Nas entrevistas que já dei, a questão que me atiram com mais frequência é sobre a geração rasca, só que para mim essa não foi a minha maior polémica. Mas no Público nós tínhamos uma certa vocação na moderação, apesar de…

… apesar de o Vicente não ter fama disso.
Não tinha fama de ser moderado mas sempre fui moderado. Eu sempre fui social-democrata, no fundo da minha alma. Social-democrata no sentido sueco. Olof Palme era o meu herói. Não era o Mao Zedong ou o Lenine…

E nunca foram…
Não… quer dizer, posso dizer que talvez quando eu tinha 17 ou 18 anos me tenha passado pela cabeça influenciar-me um pouco nesse sentido. Mas havia um coisa qualquer no maoísmo que eu não conseguia… Eu era um bocadinho anarquista, se quiser. Um bocado libertário.

Gostava de pensar pela sua cabeça.
Exatamente.

Diga-me só uma coisa para encerrarmos o assunto Público. Saiu do jornal em 1996, tinha 51 anos. Arrepende-se de alguma coisa? Acha que foi demasiado radical?
Não. Eu acho que o Belmiro de Azevedo não se portou bem. Ele não está cá para eu poder discutir isto com ele, mas a verdade é esta. O Belmiro, no fundo, teve sempre a nostalgia de mandar no jornal, apesar de me ter respeitado — tivemos sempre uma relação muito franca os dois desde o primeiro dia. Mas a verdade é que ele… Repare nas nomeações que faz logo a seguir a mim… O Nicolau, que era uma das pessoas das economias e era muito ligado aos negócios…

O Francisco Sarsfield Cabral…
O Sarsfield! E depois vem o José Manuel Fernandes. Mas isso já é uma solução da redação, nasce na redação.

Aliás, isso aconteceu novamente com o David Dinis. Parece que no Público os únicos diretores que pegam de estaca são os que vêm de dentro do jornal.
E isso é naturalíssimo. E o Belmiro percebeu isso depois. O problema é que o Belmiro queria mandar no jornal e houve um momento em que… Havia um problema com a gestão porque o jornal dava prejuízo. Vieram cá uns consultores escoceses para analisar a situação económica do jornal e, numa dada altura, traziam um projeto na manga que era transformar o Público no Scotsman… Lembra-se do Scotsman?

Sim, sim.
Era um jornal escocês bem feito, mas era um jornal de província. Era um jornal para a Escócia, com características que não tinham nada a ver com o Público. Nada, nada. Era a destruição do Público.

A política: “É muito difícil perceber como é que Sócrates se torna secretário-geral do PS”

Depois de sair do Público foi diretor da revista Invista.
A Invista durou muito pouco tempo. Se calhar não correu muito bem porque o proprietário era uma pessoa com quem eu me dava muito bem. Mas também quis ser ele a fazer as capas e eu disse: “Não, quem faz as capas sou eu, que eu sou o diretor”. Ele tinha essa mania…

Depois disso teve alguns projetos que nunca chegaram a avançar.
Nunca. E, entretanto, fui consultor de vários jornais. Mas, de facto, desde o Público nunca mais tive uma coisa que me enchesse as medidas…

E porquê?
Tem a ver comigo. Não tenho um feitio fácil, porque se tivesse tinha-me adaptado às situações. Outra razão tem a ver com a realidade do país. E depois, numa certa altura, você começa a sentir-se… Você disse que eu era velhinho, não é? (risos)

Eu disse…
Mas eu não me importo. E, aos 73 anos, estar a meter-me num projeto jornalístico pode ser um bocadinho patético.

E foi patética a sua passagem pela Assembleia da República?
Foi um pouco (risos).

Só para recordar: o Vicente foi deputado e militante do PS.
Sim, cheguei a ser militante do PS.

Entre 2002 e 2004, portanto, quando Ferro Rodrigues estava na liderança.
Gostava muito de Ferro Rodrigues…

"Se eu soubesse o que sei hoje sobre Sócrates, nem me tinha inscrito no PS"

JOSÉ COELHO/LUSA

Em seu favor teve o prazer de sair antes de José Sócrates tomar conta do partido.
Ah, absolutamente. Aliás, foi um dos motivos. Se eu soubesse o que sei hoje, nem me tinha inscrito. Quer dizer, um PS que aceita mais tarde ser chefiado por José Sócrates… É óbvio que havia um mal-entendido entre nós.

Mas há quem tenha a teoria de que José Sócrates só mostrou quem era realmente em 2008.
Não, não. Antes já tinha mostrado. Não da mesma maneira, mas já tinha mostrado que era uma pessoa muito arrogante e autocrática. Uma vez, por causa de uma coisa que eu tinha dito em público sobre uma reunião do partido, ele apontou-me o dedo: “Não concordo nada com aquilo que você disse”. E eu respondi: “O problema é seu”.

Então também não compra a teoria de muita gente de que António Costa, ou mesmo Augusto Santos Silva, que foram pessoas que participaram no seu governo, não faziam ideia de quem era Sócrates?
Não, acho que eles tinham a obrigação de saber que Sócrates não era… É muito difícil perceber como é que Sócrates se torna secretário-geral do PS. O Costa não queria candidatar-se porque havia um problema, foi o Costa que me disse a mim: “Nem pense nisso, eu nunca serei secretário-geral, nem primeiro-ministro”. Quando eu estava no Parlamento, se tivesse sentido que o Costa era a solução para o PS talvez me tivesse deixado ficar mais um tempo, não sei… O que é verdade é que eu senti o PS completamente… O Ferro caiu de uma forma completamente disparatada porque o Sampaio aceitou o Governo de Santana Lopes.

Também estava desgastado pelo caso Casa Pia.
Estava, estava… Mas pronto, faz parte. E havia uma grande solidariedade entre as pessoas nesse caso. E o Ferro Rodrigues era um homem que não se deixou, tal como o Sócrates, arrastar para posições de arrogância em relação ao caso Casa Pia ou para uma posição censória em relação à informação que saía sobre caso.

"Os críticos do Público deram-me bola preta, alguns deles para mostrar a sua independência. Eu era um homem completamente liberal, até nesse ponto não me vinguei deles… O Vasco Câmara deve ter ficado satisfeitíssimo com a bola preta."

O cinema: “Levei bastante pancada”

O seu sonho teria sido ser realizador de cinema?
Era, mas eu tenho…

Fez uma longa metragem.
Fiz, fiz. E fiz umas curtas…

Levou bastante pancada.
Levei bastante pancada. Nomeadamente dos críticos do Público, que me deram bola preta, alguns deles para mostrar a sua independência. Eu era um homem completamente liberal, até nesse ponto não me vinguei deles… O Vasco Câmara deve ter ficado satisfeitíssimo com a bola preta.

Mas já tinha saído em 1997.
Acho que não exatamente. Acho que é…

Colado, quase.
Sim, é muito. Eles talvez se tenham sentido mais à vontade, mas já me conheciam…

Mas acha que lhe faltou talento?
Eu nunca mais vi o filme, mas acho que fui muito mal tratado. Não quero armar-me em vítima, mas acho que fui maltratado porque o que se disse do filme não corresponde àquilo que é o filme… É evidente que tem debilidades. O argumento é feito por mim, pelo Sepúlveda, que é um grande amigo meu e responsável pela área cultural do Público, e por um grande argumentista estrangeiro, o Tonino Guerra, por sugestão do Paulo Branco, que queria que nós trabalhássemos com ele. E aí houve um equívoco, não conseguimos juntar as coisas com o equilíbrio necessário e acho que foi por aí que o filme falhou.

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