Tudo a postos para gravar. Kamal Mansinho, especialista em doenças infecciosas, munido de anotações e de várias décadas de experiência em medicina, prepara-se para explicar porque é que o estigma é um processo complexo e uma barreira global que existe, não apenas em circunstâncias associadas aos problemas de saúde, mas na sociedade em geral.
“No caso dos problemas associados ao VIH, é um dos exemplos em que se manifesta de uma forma muito peculiar e muito intensa,” diz o médico, que também é professor no Instituto de Higiene e Medicina Tropical. E essa manifestação tem-se revelado um grave problema, que afeta a eficácia dos avanços científicos e o sucesso dos tratamentos para o VIH. “É por causa do receio de serem discriminadas que as pessoas procuram mais tarde, ou adiam, a procura de cuidados de saúde.”
A década de 80 foi marcada pela ameaça de uma potencial pandemia — o VIH espalhava-se a uma velocidade assustadora. Começou por contaminar homossexuais e consumidores de drogas duras mas, rapidamente, passou a atingir qualquer pessoa. No entanto, e mais de quatro décadas depois, o estigma persiste. E os estudos têm demonstrado que a probabilidade de alguém com receio de ser discriminado procurar, atempadamente, cuidados de saúde, é quatro vezes mais baixa do que a das pessoas que não têm essa preocupação.
“Esta é uma das implicações que o estigma, como gerador de comportamentos discriminatórios, tem”, alerta o especialista, que adianta que a assistência médica é a única forma que a ciência dispõe para combater o vírus. “A adesão ao tratamento é, volvidos 40 anos da descoberta do vírus VIH, uma das determinantes mais importantes para o controlo desta infeção. Sabemos, com a experiência acumulada nestes últimos anos, que o tratamento contra o VIH traz benefícios individuais, melhorando a saúde e suprimindo a carga vírica. Também elimina o risco da pessoa infetada transmitir o vírus numa relação sexual ou numa partilha de seringas e agulhas, por exemplo. A adesão ao tratamento anti-retrovírico constitui, hoje, um elemento essencial para a contenção da propagação do vírus, por um lado, e da melhoria da saúde, da autonomia e da qualidade de vida de quem está doente ou de quem está infetado por VIH, por outro.”
Mais do que provado e aplicado, este conhecimento parece estar seguro por arames
Kamal Mansinho conta que há três tipos de estigma a contribuir para o risco de não se conseguir combater o VIH com a eficácia que a ciência já demonstrou ser possível: o estigma concreto, o estigma que se perceciona e o autoestigma.
No que toca ao estigma que, de facto, existe, o médico esclarece que o grau de gravidade depende muito dos contextos culturais. “Discriminações associadas a orientação sexual que podem ter as mais diversas expressões — desde reprovação, a ridicularização, a prisão. Nalguns países, são legalizadas normas discriminatórias, as pessoas podem de facto ser punidas,” diz.
Outro tipo de estigma que o médico indica é a perceção. Ou seja, a forma como o portador de VIH interpreta e antecipa a discriminação. Neste caso, alerta o médico, as consequências também podem revelar-se trágicas.
“O receio de o teste ser positivo pode levar a que não me apresente para fazer o teste. Porque no passado tenho historial de exposição ao vírus, mas não tenho sintomas e, não fazendo o teste, chegarei ao sistema apenas quando começar a ter sintomas. E é nessa altura que me fazem o diagnóstico de VIH. Neste intervalo de tempo, até ser diagnosticado, nesta minha autoestigmatização, porque não sabia que estava infetado, continuei a transmitir aos meus parceiros a infeção, porque não tinha sintomas.”
Esta chegada tardia constitui um obstáculo a um controle bem sucedido do VIH, mas a hesitação para aderir ao tratamento é um entrave tão ou mais catastrófico. “Doentes que tinham indicação para começar o tratamento para o VIH e que me pediam na consulta para adiar, por razões que parecem banais, mas que são muito importantes para aquele indivíduo. ‘Vivo em casa dos meus pais e não tenho sítio onde guardar os medicamentos e preciso de encontrar uma solução para este problema’ era das justificações mais comuns”, conta o médico.
Mas se a antecipação das reações de família e amigos consegue evitar que os doentes adiram ao tratamento, o quanto antes, não é menos verdade que muitos também se preocupam com o que os profissionais das unidades de saúde possam vir a pensar.
“O mesmo é verdadeiro relativamente ao estigma que pode surgir por parte da pessoa que atendeu o doente no guichet e que, mesmo não exprimindo verbalmente, apenas através da comunicação não verbal, deixou escapar alguma estupefação por qualquer coisa de concreto que o doente tenha referido. Desde ‘Eu acabei de consumir heroína’ até ‘Eu preciso de saber onde é que vou procurar medicamentos para prevenir a transmissão do VIH’, querendo referir-se à possibilidade de fazer profilaxia pré-exposição.”
Por fim, há que levar em conta o processo que origina a perceção de que se pode vir a ser discriminado. E, ao que parece, tudo começa no autoestigma. “Se tenho uma infeção por VIH, a minha primeira perceção é a de sentir-me mal comigo próprio por ter um vírus no meu corpo. E ao sentir-me mal, estou a exercer algum autoestigma. E é por esse autoestigma que vou ter dificuldade de ir à consulta”, explica o especialista, acrescentando um exemplo. “Não é raro ter doentes que me dizem que, na véspera da consulta, já estão impacientes, mais enervados, inquietos. E isso não acontece apenas por estarem inquietos com os resultados das análises mas, sobretudo, porque o simples ato de ir ao hospital , é um lembrete de que tem uma infeção por VIH.”
Kamal Mansinho é perentório ao apontar o que o estigma, ou a simples perceção de hipotéticos comportamentos discriminatórios, pode fazer aos portadores de VIH e, consequentemente, à comunidade: “O estigma mata. E gera vários tipos de discriminação. Muitas vezes, é uma discriminação que ocorre ao mesmo tempo em vários setores da vida da pessoa. Não é algo que ocorra de uma forma estanque.”
Mas de que forma é que os tratamentos, quando tomados, combatem a propagação do vírus?
“O comprimido impede a multiplicação do vírus no sangue”, esclarece, explicando que, quando alguém entra em contacto com o vírus, este faz o seu percurso no organismo, começa a multiplicar-se e, todos os dias, liberta para o sangue um bilião de partículas virais, prontas a infetar outras células e a transmiti-las através do sémen, do sangue ou das secreções vaginais.
“O tratamento reduz esse valor de carga vírica. O que sabemos é que as cargas víricas suprimidas — porque nunca é zero —, mas que estejam abaixo do limite de deteção — 50 cópias ou 20 cópias, consoante a técnica que se utilize —, a probabilidade de transmissão por via sexual, anula-se.” No entanto, se o portador de VIH desistir da terapêutica, o vírus retoma o ritmo de multiplicação e o indivíduo passa a contagioso outra vez.
E, por isso, é fundamental a adesão ao tratamento. “Tanto para a pessoa infetada, porque impede as consequências da destruição do sistema de defesas e do risco aumentado de progressão da doença, como para a comunidade, porque, estando suprimido, não transmite a doença a terceiros,” conclui.
Indetetável passou a significar intransmissível
E este princípio foi capaz de devolver a vida sexual a pessoas infetadas: “Tomar diariamente a medicação prescrita resultou na apaziguação de uma das principais inquietações dos infetados — transmitir o vírus ao seu parceiro sexual. Isso levava a perturbações da relação sexual, isto é, a disfunções sexuais. À medida que fomos conquistando este conhecimento, passámos a poder dizer aos pacientes que se estiver indetetável há, pelo menos, 6 meses e não tiver uma doença sexualmente transmissível, nem um nem outro, então, não transmite.”
Kamal Mansinho alerta que há uma grave falha na transmissão desta informação, consequência de um défice de comunicação. “Quando abordamos a questão do indetetável igual a intransmissível e olhamos para alguns inquéritos feitos na Europa, cerca de um terço das pessoas infetadas não tinham conversado com o seu médico assistente sobre o que isso significa. Nem o médico tinha tomado essa iniciativa.” E é crucial empoderar e responsabilizar o doente. “Deve dizer-se logo ao paciente — o objetivo deste tratamento é deixar de ser contagioso. E, portanto, se tomar regularmente e não falhar, e mantiver os controlos sucessivos, então está nas suas mãos controlar o índice de contagiosidade que pode ter.”
Ainda não há cura mas, hoje, já existem todas as ferramentas necessárias para que o VIH seja um problema de saúde pública menor.
Uma das razões apontadas é a descomplicação da terapêutica. “Ao contrário do que acontecia há 20 anos, em que a razão pela qual o doente não aderia ou não tomava a medicação regularmente, era ter 20 comprimidos para tomar – uns em jejum, outros depois de comer, outros dissolvidos, outros esmagados. Os medicamentos causavam muitos efeitos acessórios – náuseas, azia, diarreia, problemas de pele, nas unhas”, conta. Mas a indústria farmacêutica evoluiu e, atualmente, o tratamento para VIH, caso se chegue a tempo aos cuidados de saúde, resume-se a um comprimido, uma vez por dia. “Concentrou-se, num único comprimido, dois ou três princípios ativos que, inicialmente, eram administrados separadamente.”
A simplificação da terapêutica, continua o médico, constitui um avanço inimaginável para quem percorreu esta história e, sobretudo, para os doentes que ainda viveram na pele todos os efeitos adversos da terapêutica complicada. E, também por isso, é vital que o estigma seja anulado de vez, porque passou a ser o único entrave ao controle do vírus VIH.
“Se não puder dizer ou partilhar com determinadas pessoas que estou a tomar um medicamento para o VIH, se calhar, vou viajar e, com receio de me perguntarem o que estou a tomar, não levo os meus comprimidos. Ou não levo os meus comprimidos para o emprego para que ninguém me pergunte o que estou a tomar. Tudo isso ficou mais simplificado com a terapêutica com um comprimido único, mas não diminuiu a carga de estigma que a doença transporta consigo,” adverte.
E cada vez há menos desculpas para entrar em negação
É que, recentemente, juntaram-se novas ferramentas ao exército de combate ao VIH. “Antecipo que vou ter uma aventura sexual com um parceiro desconhecido e tomo um comprimido para impedir que, se ele ou ela estiverem infetados, me transmitam a infeção. É aquilo a que se chama profilaxia pré-exposição”, explica o especialista.
A profilaxia pós-exposição, usada no caso de surgirem dúvidas sobre contactos com o vírus, é outro instrumento importante no combate ao VIH. Mas o médico deixa o aviso: “Nenhuma delas exclui as que usamos nos últimos 30 anos — o preservativo. Não se excluem entre si. Num determinado momento da nossa vida, podemos usar preservativo e, noutra altura, usar outro tipo de proteção. É um exercício muito individual que compete ao doente e ao clínico que o segue avaliar. Porque, usadas isoladamente, qualquer uma destas ferramentas pode falhar.”
Por isso, é ainda inevitável que o Santo Graal da luta contra o VIH seja uma vacina que cure de vez. “Infelizmente, das tentativas que foram feitas até agora, nenhuma resultou no desenvolvimento de uma vacina eficaz. O que não significa que, em cada um destes insucessos, não se retire muitas aprendizagens para a produção das próximas vacinas. Os avanços biotecnológicos recentes, e a própria experiência da vacina da Covid-19, serão muito úteis para acrescentar algum conhecimento ou afinar outros conhecimentos para o prosseguir desta etapa que desejamos que culmine na cura da infeção por VIH, em todo o mundo.”
Mas, mesmo sem vacina, a Sida dos anos 80, uma doença invariavelmente mortal, passou, no início do séc. XXI, a ser uma doença prolongada, controlável, com uma longevidade muito perto da dos não infetados. Essa etapa está conseguida. A cura será o próximo passo.
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