Centenas de doentes foram internados nos últimos anos em refeitórios do Hospital de Vila Franca de Xira devido à falta de camas. Chegaram mesmo a ser usadas casas de banho para colocar alguns pacientes. A informação consta de uma das cerca de 40 deliberações tomadas pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS) nos primeiros três meses deste ano, a propósito de queixas várias em diversas unidades de saúde do País. E caiu nas páginas dos jornais a 28 de maio. A administração do hospital recusa as conclusões mas, três dias depois, viu o Governo anunciar que o contrato da Parceria Público Privada (PPP) com Vila Franca não seria renovado.
A administração do Grupo Mello Saúde abriu as portas para mostrar (quase) tudo o que gerou as reclamações de alguns utentes e que levou a Entidade Reguladora de Saúde (ERS) a fazer uma fiscalização, há pouco mais de um ano. Na deliberação, a ERS deixa claro que ficou sem perceber as verdadeiras razões que levaram centenas de doentes a passarem por aquele local improvisado. Mas que, a continuar a ser assim, deve o refeitório ser adaptado a uma zona de internamento. Nas casas de banho, avisa, é que a situação não deve repetir-se.
A administração do hospital diz que nenhum jornalista lhe pediu para ir ver, com os próprios olhos, o espaço sobre o qual escreveu e convidou alguns meios de comunicação social a fazê-lo. Quanto a uma possível ligação entre o relatório e o fim da PPP, a administração recusa fazer qualquer comentário.
O que motivou a queixa?
O processo de inquérito na ERS foi instaurado em novembro de 2016, seis meses depois de uma reclamação de um utente que se queixava que a mãe tinha sido internada no refeitório do hospital e que não lhe tinha sido facultada assistência em Ginecologia. Neste caso a ERS veio mais tarde a perceber que houve, afinal, assistência médica. A esta queixa foram juntas outras, de outros utentes feitas durante esse ano e no ano anterior. Algumas davam conta de outros problemas, em que a ERS considerou não haver responsabilidade por parte do hospital, outras tinham em comum um motivo de reclamação: um refeitório onde eram internados os doentes.
Numa dessas reclamações, contava-se a história de um doente oncológico internado “num refeitório sem televisão, casa de banho, sem armário para por os seus pertences”, noutra mostrava-se como nesse refeitório não havia privacidade por não existirem sequer biombos nem climatização correta. Já noutra, ainda mais grave, falava-se de uma visita a um familiar, em que quem reclama deparou com ele dentro de uma casa de banho desse refeitório. E que não estaria sozinho. Estariam dois doentes internados naquele espaço.
A resposta por parte do Hospital a todos as reclamações foi, à data, mais ou menos a mesma: “a situação relatada constitui preocupação permanente dos profissionais de saúde deste hospital, só se verificando em face da grande procura dos serviços de saúde em geral, infelizmente transversal. Nos períodos de maior procura do hospital, sazonalmente distribuídos entre os meses de outubro e março de cada 16 ano, só é possível fazer face ao extraordinário acréscimo de internamentos recorrendo à alocação de camas suplementares”.
E prosseguia: “embora estas soluções possam não corresponder às expectativas dos Utentes no que diz respeito a conforto e privacidade, constituem sem dúvida a única opção disponível para dar resposta à elevada procura. Apesar dos constrangimentos, que igualmente lamentamos, temos a garantia de que nenhum utente deixa de ter o tratamento que lhe é devido, pelo facto de dispor de uma alocação temporariamente menos cómoda”.
O que diz a ERS?
Perante a quantidade de queixas, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) — tem por missão a regulação e a supervisão das atividades económicas na área da saúde — decidiu avançar com uma ação de fiscalização, a 12 de abril de 2018.
Nas suas conclusões, vertidas depois numa deliberação assinada 24 de janeiro de 2019, a ERS diz que o espaço designado de “refeitório” é no fundo um espaço de refeição open-space, inserido em cada uma das alas do serviço de internamento e exclusivo para utilização pelos utentes, nomeadamente aqueles que são autónomos, sendo que para os profissionais/colaboradores existem copas dedicadas em cada um dos serviços de internamento, para além do refeitório centralizado existente no estabelecimento.
O espaço não tem porta, tendo biombos em cada uma das suas extremidades. Não existe uma mesa de cabeceira por cama para guardar os pertences dos doentes. Também não existe uma cortina entre as camas, que não distam mais de 0,90 centímetros entre elas. O teto de cada um dos sete espaços é perfurado comprometendo a “higienização”, sem casas de banho privativas e com torneiras apenas com comando manual.
Do relatório conclui-se, também, que não existem formas de chamar os enfermeiros. “Eram disponibilizados sistemas de chamada acústica, por botoneira, tendo os mesmos sido oferecidos aos utentes no momento da ação de fiscalização”, lê-se no documento disponibilizado no site da ERS.
O referido espaço não dispunha de tomadas de gases medicinais, nomeadamente, oxigénio, aspiração (vácuo) e ar comprimido medicinal.
O que viu o Observador
A convite da administração do hospital, o Grupo José Mello Saúde (acionista da entidade gestora do Hospital de Vila Franca de Xira), o Observador visitou aquele espaço a que as reclamações chamam de refeitório. “Estes são os famosos refeitórios”, apresentou o administrador do Grupo José Mello Saúde, Pedro Bastos. De facto, no terceiro e quarto pisos do hospital, existem estes espaços de internamento, com 21 camas disponíveis.
Ao contrário da imagem criada ao ler o relatório da ERS, não estamos propriamente numa cantina onde se veja a copa e as camas instaladas ao lado. O espaço que originalmente foi construído para servir de refeitório para doentes e familiares que os visitem foi adaptado às necessidades. E, neste momento, não se assemelha a um local para tomar refeições. Cada um dos espaços tem, agora, uma mesa de cabeceira para cada cama. Sobre elas vê-se um aparelho eletrónico portátil que permite ao doente chamar o enfermeiro.
No lavatório de cada uma dessas salas não há um sensor para ativar a torneira, de facto, mas existem cadeirões e uma mesa. Há, também, televisões. Apesar de não haver casa de banho privativa, o espaço dos banhos assistidos fica a poucos metros. E como a maior parte destes doentes são idosos, normalmente precisam de ajuda de um auxiliar ou mesmo de um enfermeiro para se deslocarem. Os enfermeiros garantem que os cuidados que lhes prestam são exatamente os mesmos que prestam noutras unidades.
Os espaços não são salas fechadas, têm cortinas que se fecham ao longo do corredor. E, esta sexta-feira, não estavam completamente ocupados. A administração assumiu que os doentes que estão no serviço de urgência e que deverão passar para aquelas camas não foram para ali levados por causa da reportagem. Dizem que em breve colocarão sensores nas torneiras e uma película no teto perfurado, embora não percebam em que influi.
Quanto ao internamento nas casas de banho, dizem-nos que foram ver do que tratava a denúncia feita. Que houve uma fotografia tirada por um familiar a uma cama dentro de uma zona de banhos assistidos, mas que o doente que ali esteve permaneceu apenas algumas horas. “Foi ele que pediu para ir para lá descansar, por ser um local mais escuro e aqui não dar para regular a luz”, diz o administrador. Um caso que a ERS não quer mesmo que se repita.
O que diz o Hospital?
Em resposta à ERS, enquanto decorria o inquérito, a administração do Hospital explicou que “havia sido implementado um plano de contingência para responder às necessidades dos utentes em períodos de maior procura de cuidados de saúde”.
Para estas salas polivalentes, como define a administração, vão apenas doentes que já tenham tido alta clínica e “que não carecem de cuidados hospitalares agudos”. O administrador Pedro Bastos, explicou aos jornalistas que estes espaços são ocupados apenas por doentes que já não precisam de cuidados médicos, mas que estão à espera de uma resposta: seja na sua casa ou com a família, seja na rede de cuidados continuados ou na rede social como um lar, por exemplo. “Se essas respostas fossem eficientes, estes espaços não estariam ocupados”, disse, divulgando que neste momento têm cerca de 40 pacientes nestas situações.
À ERS, a administração do hospital refere que “efetivamente, os espaços de internamento em questão não apresentam as mesmas condições das enfermarias”, mas garantem que esta “situação que não impacta na prestação de assistência e segurança do utente, pelo facto de a sua permanência em ambiente hospitalar dever-se, essencialmente, a necessidades hoteleiras”.
Essas “condições hoteleiras oferecidas”, dizem, “são, comparativamente ao de outros hospitais integrantes do Serviço Nacional de Saúde, consideravelmente superiores e que, em nada atentam, contra os seus direitos mais elementares”.
O que diz a Administração Regional de Saúde?
A Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P. respondeu à ERS dando conta que, de facto, há cada vez mais pessoas a procurar aquela unidade hospitalar, principalmente nas especialidades médicas. E que tem conhecimento que o refeitório é usado para suprir essas necessidades “de modo a libertar camas para admissão de doentes com premente necessidade de cuidados hospitalares em cama de aguda”.
A ARS reconhece que pode não se “afigurar” a forma mais apropriada para o fazer e que até recebeu oito reclamações sobre esses internamentos só no primeiro semestre de 2016. Mas que, tal medida, faz parte de um plano de contingência para os períodos em que existe uma maior procura dos serviços médicos naquele hospital.
Já no final do processo, a ERS deu oportunidade à administração e à ARS para se pronunciarem sobre a proposta de deliberação, que concluiu que a continuarem a ser usados estes espaços, estes devem respeitar as condições de internamento e deviam ser verdadeiramente convertidos e adaptados.
Só a ARS se pronunciou. E não foi parca nas palavras, defendendo que estes espaços não deviam ser adaptados. De acordo com a resposta da ARS, a “utilização dos refeitórios para internamento de utentes não é uma medida excecional, nem sequer tem qualquer relação com o aumento de procura dos serviços do Hospital entre os meses de outubro e março de cada ano”, mostrando que no “período compreendido entre janeiro de 2015 e outubro de 2018, (…), nenhum dos refeitórios foi utilizado para a função para a qual foram concebidos inicialmente”.
Os refeitórios que “receberam o maior número de utentes foram aqueles localizados nos pisos onde funcionam os serviços de especialidade d e cirurgia geral e ortopedia [, os quais] nem sequer existe uma relação entre a utilização dos ditos “refeitórios” e os períodos considerados (…) como de maior afluência de utentes”, lê-se.
ARS defende que devem ser procuradas outras alternativas, nomeadamente locais que aceitem estes doentes até haver respostas sociais. Até porque os espaços onde doentes e famílias podem estar juntos e a tomar uma refeição são necessários e fazem parte dos planos iniciais do hospital, argumentam.
Uma posição que a ERS não acatou.
Por que existem doentes a mais?
O administrador Pedro Bastos lembra que o novo hospital, que abriu portas em 2013, apesar de parecer muito maior que o hospital antigo, localizado no centro da cidade, na verdade só trouxe mais 16 camas. Neste momento tem 313 camas, num total de 35 das quais foram conseguidas pela própria administração.
É que com melhores condições e mais especialidades houve muito mais utentes a procurarem esta unidade hospitalar. Também o facto de hoje em dia qualquer pessoa poder ser vista num hospital à sua escolha incrementa número de utentes. Por isso, os planos de contingência que eram, até agora, adotados apenas em períodos de picos, como no Inverno com a gripe, agora estão ativos praticamente o ano todo. “Estamos em junho e com o plano de contingência”, explica.
Nos chamados refeitórios a maior parte dos doentes são idosos. Houve quem já lá estivesse mais de um ano à espera de uma resposta social. José Barata, o diretor de Medicina Interna, argumenta que este cenário é a consequência do envelhecimento e da falta de resposta do próprio Estado. “A lotação dos hospitais tem que ser repensada de raiz. Este modelo que temos não é bom”, afirma.
Aos jornalistas, o médico explica que muitos dos doentes que ali passam têm já 90 anos e filhos de 70, que além de magras reformas, também eles têm problemas de saúde e não têm capacidade para tomar conta dos pais mais idosos. Os lares estão cheios e não há sítios para deixar estes doentes.
As estatísticas do Hospital de Vila Franca de Xira não mostram quantos idosos estão à espera de uma resposta, mas mostram quantos utentes estão no hospital, já em alta clínica, à espera de um solução social. Em 2013 eram 12, nos três anos seguintes foram 19 por cada ano, em 2017 contavam-se 28, em 2018, 36, e hoje, em 2019, são 38. 38 camas que podiam estar livres para receber doentes, mas que estão ocupadas por utentes que não têm para onde ir.