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É dia de jogo da seleção nacional, Portugal contra Luxemburgo, portugueses de cá e portugueses de lá para cá. Mariana serve os poucos clientes em Campo Gerês no “Adega da Geira”. Toda a gente se conhece, João Palhinha que o diga, já que, dentro do restaurante, perde-se mais tempo a discutir se a mãe, a mulher ou a sogra do médio defensivo do Fulham é dali, em pleno Parque Nacional Peneda-Gerês, ou não. Ninguém chega a um consenso. “Mariana traz lá qualquer coisa que já estou com sede”. Não há tempo, que daqui a nada a seleção faz mais um golo. Mas há moelas, queijos, bifanas e um gato pequeno. “Tapas” que também são petiscos, tal é a proximidade com o vizinho espanhol. Só não se come o gato que é cá da terra. Aliás, de Terras de Bouro, vila minhota que alberga Campo Gerês, aldeia com pouco mais de 100 pessoas, segundo os últimos Censos.
“Aqui em Vilarinho das Furnas”, diz Mariana, mandona, há mais homens no piso mas é ela que manda. Aqui? Aqui onde? Numa das paredes da adega, está lá um retrato de uma aldeia, na zona mais nordeste, abraçada pela serra, como um vale encantado que embala as crianças nas histórias infantis. Vilarinho da Furna, da freguesia de São João do Campo, pois claro, com menos s’s, é essa, está explicado. Aldeia submersa pela barragem do Rio Homem em 1972, casa de 57 famílias obrigadas a deixar as suas terras, fertéis e sustentáveis, quatro anos antes. De fazer inveja a qualquer outra região. Gente simples, pobre, que só vergou quando não havia mais porta de saída. Tanta inveja que António de Oliveira Salazar torceu-lhes o nariz e acabou com aquela democracia comunitária. 52 anos depois do realizador António Campos filmar os rostos e vidas daquela gente, a Cinemateca Portuguesa decidiu digitalizar esta obra, através do projecto FILmar, e mostrá-la à população no próximo dia 16 de setembro, às 20h30, com entrada gratuita. Integrado no projecto “A Season of Classic Films”, o filme estará disponível entre 17 de setembro e 4 de outubro. Havia lá melhor oportunidade para conhecer a aldeia, a sua história e o que resta dela.
[trailer oficial do filme “Vilarinho das Furnas”, de 1917, ainda não restaurado]
Um filme urgente e um teimoso que não quis deixar esquecer a sua aldeia
A convite da Cinemateca Portuguesa, o Observador viajou até ao Parque Nacional Peneda-Gerês, mas teve logo “uma má notícia”, mesmo com um tempo de fazer inveja o sul do país. A aldeia submersa, que em 2022 recebeu centenas de visitantes por causa da seca, este ano, estava debaixo das águas do Rio Homem. O que resta dela — pedras das casas rurais, o forno ou muros — não se vê. Quem vem da estrada do Campo Gerês, pode parar ao pé de umas pedras e espreitar o miradouro situado de frente para os dois mil hectares da aldeia, em parte submersos. O silêncio é ruidoso, caso a cabeça se meta a imaginar aqueles homens e mulheres a viver no cantinho da serra. Ficou esquecido o fato de mergulho: a única hipótese era “visitar” a albufeira que virou museu subaquático, um dos poucos no mundo, ou seja, o de Vilarinho da Furna. Ficará para uma próxima. O mestre de obras desta e de tantas outras ideias é Manuel de Azevedo Antunes. Tem 72 anos, mas isso não quer dizer nada. É professor de ciências sociais na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, autor de cinco livros sobre Vilarinho da Furna, fundador do museu etnográfico da aldeia e da associação Afurna, que pertence aos antigos habitantes, criada em 1985. Maior parte dos sócios já morreram.
São dele quase todas as fotografias que constam desse museu, erguido com as pedras numeradas das casas, inaugurado em 1989. Está lá uma, da sua mãe, muito perto do berço de madeira onde Manuel Antunes dormia, e de tantos outros materiais agrícolas, pastoris e pessoais que preservam a memória de cerca de 250 pessoas que lá moraram, expostos para os visitantes. Foi também dele a ideia de fazer um filme e de pedir financiamento a instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian. “Nem máquina fotográfica tinha, mas propus-me como realizador”, conta ao Observador. Por sorte, conheceu um rapaz da Escola Comercial de Leiria, através do realizador Paulo Rocha (“Verdes Anos”), que se mostrou interessado em filmar mas que não conseguia convencer o povo da Furna a falar com ele. Pegaram no livro de Jorge Dias, “Vilarinho das Furnas, Aldeia Comunitária” e rumaram a norte.
Esse rapaz era António Campos, realizador esquecido do panorama português mas uma das pessoas que mais filmou este tipo de territórios nacionais. Manuel Antunes ficou contente com o interesse. Estava mais do que decidido em preservar a memória da sua terra, quantas mais vezes fossem e sejam precisas até desaparecer. Não se sente, ainda assim, um pingo de ressentimento na voz. A sua aldeia foi submersa, tinha de ser. “Fui a última pessoa a sair de Vilarinho. Estava a estudar Filosofia em Lisboa e resolvi ir lá para retirar alguns pertences da minha tia. Quando fizemos o filme, claro que havia tensão. Ninguém quer abandonar a sua terra de um momento para o outro”, afirma.
Vilarinho da Furna tem várias influências. Uma “gémea de Pompeia”, outrora engolida pelo Vesúvio. Romanos, búrios, suevos, todos viveram e lutaram por aquele pedaço de terra. O seu passado é, por isso, obscuro e rico. Difícil fica traçar-lhe um passado com exactidão sem uma pitada de misticismo. Esse mistério de um pequeno recanto lusitano enamorou o escritor Miguel Torga, que registou nos seus “Diários”, “esse mundo sagrado onde a vida era um rito demorado e a morte um segundo nascimento” (“Requiem” de 18 de julho e 1976)). E é ainda mais difícil não reconhecer que os seus habitantes tiveram — e ainda têm — sangue na guelra para enfrentar o Estado. Gauleses contra romanos à portuguesa, não há que enganar.
Romanos, gauleses e barragens: Como resiste Vilarinho das Furnas?
Manuel Antunes recordou que a vila já venceu um par de casos ao longo da sua história. Uns sobre terrenos, outros sobre estradas, conflitos vários. É que a aldeia é propriedade privada dentro de um parque natural dividido, com direcção própria que gere a atividade turística, entre dois países. As discussões podem ir até à portagem que é preciso para visitar os dois mil hectares, numa região que é de acesso gratuito. Não vale a pena ser espertinho, estará lá à espera o guardião António Barroso, com quem o Observador não conseguiu falar por motivos de doença. Vilarinho cedeu, durante o Estado Novo, quando as barragens começaram a ser construídas pelo país inteiro. Em miúdo, Manuel Antunes já brincava às presas (barragens) com os amigos. Mal sabia que a brincadeira era para ser levada a sério. Estávamos nos anos 40, altura em que o sector elétrico no país teve um grande impulso, com a criação de várias empresas hidroelétricas. Foi a nomeação de José Albino Machado, presidente do Conselho de administração da Hidroelétrica do Cávado na altura, como ministro das Obras Públicas que assinou a cruz da construção da barragem. A única batalha perdida, tal como aconteceu com a construção da barragem do Alqueva e a submersão da aldeia da Luz ou a barragem da Caniçada e Vilar da Veiga.
Os vários povos que por lá passaram assentaram arraiais acabaram por criar o sistema democrático e comunitário que fazia comichão a António de Oliveira Salazar, em que propriedade privada e colectiva conviviam sem problemas e onde, um dia por semana, os homens se juntavam para fazer contas e decidir que regras seguir. Uma organização social seguida por diferentes aldeias do norte do país. Em Vilarinho vivia-se engolido pela serra. Uma ilha com recursos naturais, de terra fértil, em que quase todos os bens essenciais e materiais eram produzidos ali mesmo. Cortava-se lenha, plantava-se de tudo um pouco, roçava-se os matos, pastava-se o gado e as vacas. E fazia-se roupa: o linho está em toda a parte daquelas 57 famílias, basta consultar as fotografias do museu. Uma comunidade tão em paz e limpa que, nos dias de hoje, podia parecer saída de um filme de terror.
Quem era de fora, podia ter o azar de ser mal recebido. Até o padre, como se vê no filme de António Campos, apesar de ser figura fundamental e influente, era questionado pela população quando o assunto se ligava ao desaparecimento de Vilarinho. Porque tudo, mesmo tudo, se decidia como numa democracia, em plena assembleia geral (“Ajuntes”, para ser mais específico). “Cada chefe de família juntava-se com os outros num dos largos da aldeia onde se discutiam e se votavam vários assuntos. Era também eleito um juíz de seis em seis meses. Se o chefe (homem) não pudesse, a mulher substituía-lo. As mulheres trabalhavam no campo com os homens, mas a seguir ainda tinham de tratar da casa e dos filhos, enquanto eles seguiam para o jogo de cartas”.
Se hoje em dia os habitantes de Campo Gerês andam à bulha por causa da bola, antes, quando Vilarinho estava de pé, a guerra era outra. Bem mais acesa. Gauleses contra romanos à portuguesa, nunca é de mais recordar. Uma vez, em 1988, no dia em que o livro “Os Maias”, de Eça de Queiroz, foi lançado, uma companhia armada de Guimarães queria entrar em Vilarinho por causa de uns terrenos, com os Serviços Florestais como principal inimigo. Noutra época, a Guarda Nacional Republicana de espingarda na mão prestou-lhes uma visita a propósito do vinho morangueiro, com uva dos Estados Unidos da América, que era visto como concorrente de outras pingas nacionais. “Dissemos-lhes: ‘vocês vêm para aqui de espingarda mas nem sequer vão conseguir ter tempo de disparar. Ou se vão embora, ou isto vai terminar mal. Só cortamos no vinho se vierem plantar outras vinhas que dêem tanto vinho com estas”. Nunca mais apareceram.
Se a melhor memória de Manuel Antunes é a de quando foi, pela primeira vez, à serra com o avô e comeu “a sopa mais saborosa” da sua vida, Luciana Castelli tem outra para troca. Natural de Minas Gerais, mudou-se para Portugal em 2017, antes da pandemia de Covid-19. É gestora de projectos. Especializou-se em organizar estratégias sustentáveis em localidades regionais, a longo prazo, que envolvam vários rostos, da iniciativa privada ao governo estatal. Na Albergaria Stop, em Campo Gerês, Luciana Castelli, está a acabar de almoçar. Não “é cá da terra”, mas parece. E muito. É tu cá tu lá com Carla, que gere o empreendimento. No ano em que veio, resolveu fazer uma pós-gradução na Lusófona. O seu professor de Estatística era castiço. Bom de conversa, perdia tempo de aulas a falar em Vilarinho da Furna, que lembrava a gestora dos seus Campos Jordão, na serra da Mantiqueira, com uma arquitetura bem suíça. Manuel Antunes era esse professor. Luciana estava pronta para ir para os Açores aplicar o seu próximo projecto, mas o professor trocou-lhe as voltas e convenceu-a a modar-se para o Minho.
No dia que visitou pela primeira vez a aldeia, choveu, para desagrado do historiador e sociólogo, convencido que o mau tempo teria um efeito disuador na decisão da gestora. Muito pelo contrário. Nas várias conversas que teve com o Observador ao longo da visita, Luciana Castelli foi falando de figuras mitológicas e de bandas desenhadas, como os unicórnios e os gauleses do Astérix e Obélix. Os tais gauleses, não há que enganar. A brincadeira tinha uma parte muito séria: é que em qualquer um dos seus projectos, a gestora precisa dos chamados “ícones culturais fortes”. Ficou tão encantada por “este paraíso”, que decidiu ficar, tornando-se gestora de projecto da associação e numa espécie de empreendedora sustentável da região que toda a gente abraçou.
“Querem fazer a vida negra a gente simples”
Como primeiro passo, Luciana Castelli escolheu o linho, bem produzido e utilizado em Vilarinho, desenvolveu uma estratégia para o tornar num negócio regional e sustentável e candidatou-se a um apoio da EDP. A seguir, virá a lã, maltratada pelos habitantes, segundo a própria, que não sabem o que fazer com o produto assim que sai da pele das ovelhas. É curioso ver que se outrora a companhia elétrica se tornou no pesadelo dos habitantes, agora é um parceiro essencial para a Afurna e todos os envolvidos. “Este é um projecto de vida. As pessoas com interesse nestas regiões querem retorno logo, ninguém quer viver como o povo. As pessoas daqui, quando a aldeia não está submersa, vêem a sua casa, a sua padaria, o seu mercado. Os turistas não vêm nada. Para os habitantes é: o chão, a raiz”, conta. Tem como exemplo Maria Adelaide Freitas Soares, figura essencial da freguesia de Covide, também em Terras de Bouro, que se dedicou exclusivamente à comunidade. Maria Adelaide, que morreu o ano passado com 96 anos, deixou obra feita, como o Centro de Produção e Exposição de Terras de Bouro, o Centro Social de Covide ou o Centro de Artes e Ofícios Tradicionais. E também impulsionou o linho, que Luciana Castelli não quis deixar morrer, criando a marca Lindo Linho.
Há mais projectos a caminho, um deles envolve fazer renascer e trabalhar a macieira de Vilarinho, que Luciana Castelli mostra ao Observador assim que os 2,5 quilómetros de estrada de pedra rumo à aldeia são percorridos. Há um projecto embargado desde 2009 por causa do Parque Natural. Lá vem a guerra à baila outra vez — propriedade privada contra o sistema. “Podia processá-los”, disse-nos horas antes Manuel de Azevedo. Por enquanto, não há vontade. À volta do que resta da aldeia, não está ninguém, é dia de semana e as visitas fora do verão só são permitidas durante o fim de semana. Por lá habita um contentor que serve de bar e já foi palco de festas, romarias e churrascos. Parece abandonado, está só fechado, um segredo bem guardado. O plano é organizar a Festa do Pão em finais do mês de setembro. Dinamizar, dinamizar, dinamizar. “O Salazar detestava que Vilarinho fosse autosustentável. Eles tinham tudo, desde animais, agricultura até à própria roupa”, diz, logo depois para reforçar: “isto é mesmo o paraíso, não é?”.
De regresso a Campo Gerês, passamos pelo parque de Campismo da Cerdeira. Uns metros à frente, está um bar dentro de uma grande casa de madeira. “É de um primo do professor António”, revela Luciana Castelli. O espírito comunitário mantém-se, hoje mais virado para o turismo. Não admira: quando a barragem foi construida, as 57 famílias receberam, segundo Manuel Antunes, uma indemnização por metro quadrado que, hoje em dia, só dava para comprar uma lata de sardinha. Por cada metro percorrido no presente, Luciana Castelli deixa a história de parte e pontua a conversa com elogios. Muitos. Há turistas mais aventureiros que aproveitaram o dia para fazer um dos muitos trilhos do Gerês. Dentro do museu etnográfico, na parte dos animais que fazem parque do Parque Peneda-Gerês, descobrem-se lontras, insectos, aves e lobos. Difícil de acreditar que a fauna se mantenha, com a força das alterações climáticas. Luciana Castelli garante que na primeira casa que teve na região, foi agraciada com o uivar de um daqueles mamíferos. Achou que era um bebé. Acabou a comprar um cão para a proteger, o seu mais fiél amigo que um dia partirá consigo numa autocaravana pelo país fora. Prevê-se chuva para este sábado.
Acabamos no Museu da Geira, dedicado ao XVIII itinerário de Antonio, uma importante estrada militar romana que ligava a agora cidade de Braga com Astorga, em Espanha. É lá que está João Barroso, que tinha um avô paterno de Vilarinho das Furnas e outro de Covide. O que sabe da vila, foi do que lhe contaram. Quando perguntamos qual a memória mais comum daquele comunitarismo, só lhe ocorre uma palavra: “o desespero”. “O que mais me lembro era do desespero daquela gente de não querer sair”. As pessoas confiavam num milagre, mas nunca chegou.Tem 65 anos, diz que está próximo de se reformar. Queriam que fosse engenheiro, tinha “arte para ao desenho”, esteve no Luxemburgo e nos anos 90 dedicou-se às cabras. Estamos perto da hora de almoço, mas o Observador consegue tempo para conversar sobre o impacto económico, etnográfico e social desde o dia em que aquela barragem foi construída.
À primeira não queria dar cavaco, mas o tema é mais do que importante. Não dá para estar calado. “Dantes dizia-se que esta montanha era um jardim, agora é um matagal”. Uma metáfora que mostra bem o quão longe ainda estamos de conseguir um consenso entre o mundo rural e o mundo urbano. Não é de admirar, o funcionário do museu sabe o “Requiem” de Miguel Torga de cor. Na tese de João Barroso, em nome do ambientalismo, destruiu-se uma região inteira que vivia do comunitarismo, “uma associação de famílias com contratos onde a montanha ficava em comunhão”. Porque sem homens e mulheres a cuidar e a tratar da terra, a desenvolver o seu gado e a gerir todo o ciclo da natureza, Covide ou Campo Gerês estão condenados a desaparecer. De vez. João Barroso deixou críticas ao Parque Natural — que não é “nacional” por alguma razão — e “prometeu que está pronto para combater o globalismo”. “Disse ao último director do Parque, que estavam a destruir que pensavam que estavam a defender. Obrigaram os homens a abandonar as montanhas e os animais. A biodiversidade caiu a pique. É demonstrável. Ele calou-se”. Se dantes os animais fertilizavam o monte, agora já não acontece, No passado, o rio Homem estava repleto de trutas e os lobos — os tais lobos — “eram verdadeiros e não produzidos para martirizar os agricultores”. O globalismo deu origem ao proteccionismo (das plantas, das espécies) e Vilarinho da Furna, foi vítima dessa mudança. “Houve muita guerra. A montanha era cobiçada. Tanto agora como dantes, as gentes do lado urbano querem fazer a vida negra às pessoas simples”. Gauleses contra romanos, meio rural contra meio urbano, aqui estamos, não há que enganar.