O GPS dava a viagem por concluída: tínhamos chegado ao nosso destino, a Associação de Moradores do Complexo Habitacional de Ringe, num bairro da Vila das Aves, perto de Guimarães. Mas, da Associação, existia apenas um vislumbre das carrinhas e de uma pequena entrada. E o campo, onde estava? Tinha sido a relva a chamar-nos mas dela não havia sinal, um problema que é constante a quem não conhece a zona — afinal, são os prédios do bairro de Ringe que guardam os sonhos e as histórias que aconteceram naquele relvado. Um segredo bem escondido mas revelado ao Observador por Adílio Pinheiro, treinador do AMCH Ringe. E um dos segredos contamos já: foi aqui que Vitinha e Diogo Costa, duas das figuras do título conquistado este sábado pelo FC Porto, nasceram para o futebol.
“Quando o Vitinha aqui chegou isto ainda não tinha relva. Ele e o Diogo Costa chegaram numa altura em que estávamos a renovar o espaço. Até porque nós éramos mesmo pobres, devemos ser a equipa mais pobre do país”, diz-nos Adílio Pinheiro, logo a abrir. Mas, tal como um dia disse Johan Cruyff, nunca se viu um saco de dinheiro marcar um golo. Aqui conta a filosofia de formação de quem já tinha a experiência: João Adílio Pinheiro tem 71 anos e foi capitão do Desp. Aves na década de 70. Depois de um acidente, teve de pendurar as chuteiras mais cedo do que o previsto e virou-se para o treino. Primeiro no próprio Desp. Aves, depois no AMCH Ringe. Saiu do clube da terra por dissidências na visão para a formação. Queria que os meninos começassem a treinar mais cedo, mais novos, e que existissem oportunidades para todos: “Quem treina aqui não paga nada. Estejam no onze inicial ou no banco não faz diferença, todos jogam”.
E foi precisamente no bairro de Ringe, nesse campo escondido pelos prédios, que uma equipa de Petizes — um dos tais escalões mais prematuros que Adílio queria fundar no Desp. Aves — recebeu dois jogadores: Vitinha e Diogo Costa. O primeiro nascido em Faro mas filho de um jogador da terra, Vitinha pai; o segundo nascido na Suíça mas a viver com o avô na Vila das Aves. Era aqui que começava a história de dois campeões nacionais.
“Às vezes tinha de gritar: ‘Não marcas mais golos!’”. Diogo Costa, o guarda-redes goleador
A convite do presidente da Associação, Adílio Pinheiro começou o sonho do Ringe no início do milénio. Numa das primeiras equipas de Petizes, a da geração de 2004, era clara a qualidade do plantel… Exceto numa posição. “Nessa equipa, faltava-me um guarda-redes. E foi o avô do Diogo Costa que me disse: ‘O meu neto anda a jogar aqui na praceta, leva-o lá a Ringe’. O miúdo veio para aqui, começou a treinar e começo a ver nele talento. E pensei: ‘Este gajo, se quiser ser guarda-redes, dava-nos um jeitaço’”. Só havia um pequeno problema: o jovem Diogo não queria ser guarda-redes.
“Ele chegou a casa e foi dizer ao avô que eu o queria pôr à baliza e que não queria ir mais a Ringe”, relembra Adílio, que, para amenizar os medos do pequeno Diogo, deixou desde logo a garantia de que podia jogar em qualquer posição, até porque já jogava bem com os pés. Mas… Surpresa, surpresa: “No treino seguinte, ele apareceu-me vestido de guarda-redes, todo almofadado nas calças e nos joelhos”.
E assim nasceu um acordo de cavalheiros: Diogo Costa seria guarda-redes do Ringe mas jogava metade do jogo na baliza e a restante metade à frente. Até porque, como diz Adílio Pinheiro, “ele queria era marcar golos”. A questão é: quem é que disse que para marcar golos é preciso jogar na frente? Diogo Costa não foi, certamente. “Fomos jogar um torneio a Santo Tirso e ele era o mais velho, com sete aninhos. Estávamos a jogar contra miúdos de 11, 12 anos. O certo é que fomos lá e limpámos tudo, foi tudo a eito. E ele, guarda-redes, foi o melhor marcador do torneio, marcava golos de uma baliza à outra!”, lembra o treinador do AMCH Ringe, que até teve de se chatear com o guardião goleador: “Eu às vezes tinha de gritar ‘não marcas mais golos, se queres marcar vais à frente!’. Mas ele continuava”.
Atributos ofensivos que Diogo Costa esconde agora — pelo menos no capítulo dos golos — mas que o ajudaram a desenvolver a boa qualidade de passe e de jogo de pés. Pontos fortes que não surpreendem Adílio Pinheiro: “Eu com o Diogo nunca tive dúvidas. Jogava de cabeça levantada, punha a bola onde queria. Não me admira nada o que ele faz agora com os pés”. Neste momento, de acordo com o site SofaScore, Diogo Costa tem 33% de taxa de sucesso de passes no meio-campo atacante. Melhor do que Adán (32%), Matheus (30%) ou Vlachodimos (27%). Mas havia outro jogador que nunca enganou Adílio Pinheiro…
“Quem joga assim tem de ser humilde e ele é.” Vitinha, um talento que começou no futsal
Sete meses depois de nascer Diogo Costa, nascia mais um futuro jogador cujo destino estava já desenhado em Ringe. Mas não desde sempre. Vítor Ferreira, filho do Vítor Ferreira pai, seguiu as pisadas do progenitor e começou a dar os primeiros toques na bola no Desp. Aves. Mas não na relva — no pavilhão. Aos quatro anos, Vitinha começou no futsal. E só passou para os relvados por necessidade de Adílio Pinheiro.
O treinador do AMCH Ringe precisava de um jogador para participar no Mundialito e, como conhecia Vítor Ferreira — o pai –, e também o técnico do futsal do Desp. Aves, fez a proposta. O acordo era simples: Vitinha seguia com o Ringe até ao Algarve para jogar no torneio e, quando voltasse à Vila das Aves, regressava ao futsal, ao clube da terra. Só houve um problema. O pequeno Vitinha gostou da experiência e do cheiro da relva e nunca mais quis voltar ao pavilhão. A partir daí, nascia um grande amor pelo futebol com potencial para ser especial, como se via nos torneios.
Numa das tournées que Vitinha fez com o AMCH Ringe, a equipa defrontou o Benfica, que já tinha ficado com o jogador debaixo de olho. As abordagens do clube da Luz nesse torneio foram claras — existia interesse no jogador mas também algum receio pelo que ainda podia fazer enquanto não vestisse de encarnado. “Fomos jogar a meia-final com o Benfica e o Vitinha tinha estado doente. E eu lembro-me bem de o médico deles me chamar e dizer: ‘Ó senhor Pinheiro, olhe que o Vitinha está com febre, se fosse a si não o punha a jogar, nunca se sabe!’. E eu respondi: ‘O doutor está com medo de jogar com o Ringe?’”. E Vitinha jogou, num namoro com os encarnados que só foi consumado algum tempo depois. Vitinha e Diogo Costa seguiram para as Escolas do Benfica do Prado e foi lá que cresceram até saltarem para o FC Porto em 2011.
Um percurso que confirmava o talento mas que não surpreendia ninguém. “Não me admira nada o que o Vitinha está a fazer agora. Nada”, diz o primeiro treinador da carreira do jovem médio. Para Adílio Pinheiro, só falta uma coisa ao jogador do FC Porto: “É rematar com um pouco mais de potência. Porque ela colocadinha vai, só falta potência. Quando ele conseguir isso, cuidado com o Vitinha. Cuidado com o Vitinha!”.
Mas o que não falta ao jovem internacional português é gratidão. E Adílio Pinheiro, do seu lado, também não esquece a memória do médio: desde as prendas de Natal enviadas para os meninos de Ringe até a uma presença quase escondida de Vitinha no funeral da mulher, o treinador fica com as palavras presas na garganta quando recorda alguns gestos do menino que viu crescer. “Quem joga assim tem de ser humilde e ele é”, conta-nos. E tudo começou num Mundialito.
“Não deixes esses miúdos ir a lado nenhum, são jogadores de Seleção!”. O Mundialito que mudou tudo
2004. O recém-criado AMCH Ringe tentava participar pela primeira vez no Mundialito de futebol de formação do Algarve, que acontece desde 1995 — o tal torneio que levou Vitinha para o futebol e que o mostrou, tanto a ele como a Diogo Costa, aos grandes nomes da Europa. Um sonho que nasceu da vontade e do espírito de sacrifício de Adílio Pinheiro… E também da mão de obra do próprio treinador. “Preparámos o Mundialito num campo agrícola, porque este relvado estava em obras. Fizemos as balizas em madeira, PVC, pusemos pedras em cada lado. Para improvisar estava lá eu”, revela.
E para jogar estavam lá eles: Vitinha, Diogo Costa, Rúben Moura, Lucas Pereira, entre tantos outros. Alguns que não chegaram tão alto como os dois primeiros mas que, nesta geração, deixaram água na boca no tal Mundialito de 2004. Mesmo que no início as expectativas não fossem assim tão altas. “Nós éramos mesmo pobres, o nosso objetivo era só marcar um golo. Se eles marcassem um golo estava o torneio ganho, porque aquilo era outro mundo. Estavam lá o Ajax, Inter Milão, Barcelona ou Real Madrid. O primeiro jogo foi contra o Saint-Étienne, que chegou num autocarro com fotografias dos miúdos estampadas. E nós num autocarro alugado e com uns fatinhos de treino que nos deram que nem tinham a nossa cor”, lembra Adílio.
Resultado? O Ringe ganhou 7-0 ao Saint-Étienne. Depois, deu 9-0 a uma equipa de formação de António Veloso. Era aí que nascia o mito da pequena tornada grande equipa escondida num bairro da Vila das Aves. Desde esse dia que o AMCH Ringe ficou ofuscado por outro nome, os Pinheirinhos de Ringe, nome carinhoso dado em homenagem ao bom trabalho do treinador, de apelido Pinheiro, e daquela geração que deixava todos de boca aberta. Todos. Mesmo os maiores do futebol de formação a nível europeu.
“Naquele dia saíram golos de todos os feitios, até aqueles lances estudados de livre. O Vitinha e o Diogo fizeram um jogo tão bom que no final apareceram o Aurélio Pereira [o histórico responsável pela formação do Sporting] e o Bruno Maruta (responsável das camadas jovens do Benfica]. Logo nesse dia, o senhor Aurélio Pereira queria-me apanhar quatro jogadores! E disse-me, nunca mais me esqueço: ‘Pinheirinho, não deixes esses miúdos ir a lado nenhum: são jogadores de Seleção!’”, recorda o técnico.
E Aurélio Pereira, como tantas outras vezes, tinha razão. Eram mesmo. Diogo Costa e Vitinha chegaram este ano à Seleção Nacional, cumprindo a profecia desse Mundialito. Os Pinheirinhos de Ringe não ganharam o torneio mas abriram o livro que provava que o futebol é para todos — mesmo para aqueles que vivem no bairro de Ringe, na Vila das Aves, com apenas um campo sintético de sete e outro de cinco. O sonho do Ringe cumpriu-se: deixar jogar os meninos, sejam eles quem forem. Um sonho que nasceu da vontade de Adílio Pinheiro e da sua equipa e também dos pés (e mãos) de Vitinha e Diogo Costa, os Pinheirinhos que agora são campeões nacionais.