Há cerca de um ano escrevi uma recensão crítica sobre o Capital para o Século XXI, de Thomas Piketty, para o Observador. Entre outros aspetos o livro popularizou a dicotomia entre os 1% mais ricos e os restantes 99%. O seu sucesso refletiu a saliência do tema da desigualdade no mundo de hoje. Esta tendência foi reforçada pela Crise Financeira Global, que começou no distante ano de 2007. Nos países mais afetados pela crise, a partilha dos sacrifícios, associados ao ajustamento, aparece como fator decisivo para o seu sucesso, aceitação e legitimidade.
Em termos gerais, penso que o tema da desigualdade é importante por, pelo menos, três ordens de razões. Em primeiro lugar, a desigualdade na distribuição de rendimento, riqueza, oportunidades e capacidades é relevante para a avaliação da justiça social. É, assim, importante em si mesma.
Numa sociedade aberta a desigualdade não pode exceder os limites a partir dos quais a elite ganha capacidade para impedir uma efetiva participação por parte da maioria da população.
Em segundo lugar, a desigualdade é importante para o funcionamento da própria sociedade. Numa sociedade aberta a desigualdade não pode exceder os limites a partir dos quais a elite ganha capacidade para impedir uma efetiva participação por parte da maioria da população. Em sociedades caraterizadas por tais fenómenos de exclusão são violadas não só condições mínimas para o exercício de participação política mas também condições necessárias de progresso e prosperidade. Finalmente, sociedades desiguais tendem a ser sociedades fragilizadas por conflitos sociais abertos ou latentes. A justiça distributiva aparece como condição para a coesão social.
Recensão crítica de:
The Globalization of Inequality,
François Bourguignon,
Princeton: Princeton University Press, 2015
Inequality: What can be done?
Anthony Atkinson,
Cambridge, Harvard University Press, 2015.
Nos seus novos livros, Bourguignon e Atkinson exploram o enorme interesse público por este tema fundamental. Estas duas publicações têm muito em comum- apresentam evidência empírica sobre a evolução da desigualdade; analisam os determinantes dessa evolução; oferecem opções de política para enfrentar o problema – mas são também muito diferentes.
Será o século XXI recordado como o século da desigualdade no mundo?
O livro de Atkinson começa por citar uma sondagem de 2014, do Pew Research Center Global Attitudes Project, em que a desigualdade é identificada, pelos respondentes localizados nos Estados Unidos e na Europa, como a maior ameaça a nível global. Hoje em dia ninguém deve ignorar os factos sobre a evolução da distribuição do rendimento e da riqueza no mundo. Muito menos se deve ignorar a evolução da desigualdade no próprio país. Isto porque empatia, coesão e solidariedade são elementos constitutivos da própria noção de nacionalidade.
O livro de Bourguignon conclui com uma série de interrogações: Será o século XXI recordado como o século da desigualdade no mundo? Estaremos a evoluir para uma situação em que o aumento da desigualdade entre países a que assistimos há duzentos anos se irá transformar em desigualdade no interior de cada um dos nossos países? Será o mundo do século XXI, um mundo de desigualdade constante, mas que existe na nossa vizinhança em vez de a 10000 km? O autor argumenta que a resposta política exige ação a nível nacional e concertação a nível internacional.
Entre 1820 e pelo menos 1980 verifica-se um aumento dramático da desigualdade a nível mundial. Mais recentemente, verifica-se uma inversão desta tendência. Bourguignon documenta essa inversão histórica de forma detalhada para o período pós-1990.
O contributo fundamental de Bourguignon é a caracterização sumária da evolução da desigualdade no mundo. Na página 27 está representada a evolução da desigualdade no mundo num período de quase 200 anos, entre 1820 e 2010. A Figura reporta a evolução do índice de Gini e do hiato médio de rendimento entre os percentis 10 e 90. As tendências são impressionantes. Entre 1820 e pelo menos 1980 verifica-se um aumento dramático da desigualdade a nível mundial. Mais recentemente, verifica-se uma inversão desta tendência. Bourguignon documenta essa inversão histórica de forma detalhada para o período pós-1990. Documenta igualmente que a diminuição da desigualdade, a nível global, é reportada por outros investigadores e com base noutras fontes de informação.
O que se passa? No período mais recente Bourguignon mostra que existe uma diminuição da disparidade entre países (quando ponderados pela população). Esta convergência é dominada pela evolução, nas últimas décadas, da China e da Índia, enquanto se verifica ao mesmo tempo, um aumento da desigualdade nacional, na maioria dos países.
Abaixo apresenta-se uma seleção da informação de Bourguignon relativa à evolução desde 1990. Os dados cobrem mais de 90 por cento da produção e da população mundiais.
Quadro 1: Distribuição Mundial do Rendimento 1990 – 2010
(Inquéritos às Famílias recalibrados pelo PIB per capita).
Fonte: Bourguignon, Quadro 1, página 42. Amostra constante de 106 países.
É importante notar que na decomposição de Theil, uma medida interessante que permite a decomposição da desigualdade em nacional e internacional, a queda na dispersão internacional de rendimentos é tão grande que excede (em muito) o efeito do aumento da desigualdade de rendimento no interior dos países. É também verdade que a queda na desigualdade entre países aconteceu, entre 1990 e 2010, ao mesmo tempo que a desigualdade nacional aumentou. Os EUA e o Reino Unido estão entre os países em que se verificou um maior aumento da desigualdade. Bourguignon fala de um ponto de viragem histórico, caracterizado pela diminuição da desigualdade global e, ao mesmo tempo, pelo aumento da desigualdade em cada país.
A queda na desigualdade entre países aconteceu, entre 1990 e 2010, ao mesmo tempo que a desigualdade nacional aumentou.
Julgo que vale a pena destacar que nenhum dos elementos desta viragem é incontroverso. Quero destacar apenas dois pontos. Em primeiro lugar, a medida de dispersão de rendimentos per capita apenas diminui quando os países são ponderados pela população. Com esta ponderação o resultado reflete o forte crescimento verificado nas últimas décadas nos dois países mais populosos do Mundo: a China e a Índia. Sem esta ponderação, a evidência de diminuição de dispersão entre países desaparece. Em segundo lugar, a evolução da distribuição de rendimento e riqueza é muito diferenciada por países. Por exemplo, se compararmos os anos 80 com a primeira década de 2000, a desigualdade aumentou em cerca de dois terços dos países avançados mas diminuiu nos restantes. Para os países em desenvolvimento, a repartição entre países (em número) é mais equilibrada. Como anteriormente a ponderação pela população tem uma influência decisiva. A desigualdade aumentou um pouco na Índia mas muito significativamente na China.
Atkinson é menos sistemático e completo na recensão da evidência. No diagnóstico (objetivo da primeira parte do livro) justifica a preocupação com a desigualdade, documenta a sua evolução e discute os seus determinantes. Neste quadro, oferece uma grande sofisticação analítica e concetual e, mais importante, uma discussão cuidadosa de desafios e opções que se abrem às políticas públicas.
Os economistas discutem eficiência com mais frequência e intensidade do que discutem equidade. Desde os distantes anos 60 que Anthony Atkinson procura, muitas vezes sozinho, reequilibrar a balança. Os seus contributos para a investigação teórica e empírica sobre a desigualdade são sem paralelo. Para explicar a intuição económica por trás das medidas de distribuição, em 1973 concebe uma experiência (“leaky bucket experiment”, “experiência do balde furado”) que o economista americano, Arthur Okun, tornaria famosa dois anos mais tarde.
Para a generalidade dos economistas, a capacidade para explicitar valores normativos constitui um importante progresso face as abordagens estatísticas tradicionais.
A ideia é simples: imagine que alguém é K vezes mais rico que outra pessoa. Imagine que pode retirar 1 euro à pessoa mais rica para dar 1-b à pessoa mais pobre; b corresponde ao montante que é desperdiçado na operação da transferência. A questão é: qual o valor máximo de perda (b) compatível com a desejabilidade da transferência? A resposta depende das preferências sociais em matéria de distribuição. De facto, em 1970, Atkinson tinha já mostrado, num artigo justamente marcante, que com a ajuda de um par de hipóteses técnicas adicionais, a resposta é suficiente para caracterizar as preferências sociais em matéria de igualdade. Para a generalidade dos economistas, esta capacidade para explicitar valores normativos constitui um importante progresso face as abordagens estatísticas tradicionais.
É interessante notar que ambos os indicadores considerados no quadro 1 são de natureza estatística. Para além destes indicadores, as obras de Bourguignon e de Atkinson reportam outras medidas de dispersão (por exemplo, diferenças entre percentis). Parece claro que no debate público sobre estas matérias os estatísticos venceram os economistas.
As quinze propostas e as cinco ideias de Atkinson
Conheci Anthony Atkinson em Bruxelas quando estive na Comissão Europeia. Aprendi com ele que a evolução da distribuição do rendimento é um fenómeno complexo. Os resultados dependem do país, do conceito usado, do período e de muitos outros fatores. Mais do que de tendências, deve falar-se de episódios. Os episódios dependem do contexto social e político. Todas estas observações continuam verdadeiras. A espaços, estes aspetos aparecem em Inequality. Mas não é esse o traço unificador do livro.
Em Inequality, Atkinson quer persuadir o leitor de que o mundo é caraterizado por desigualdade excessiva. Em seguida, mostra que políticas públicas podem ter um efeito considerável na sua redução. Apresenta quinze propostas concretas e cinco ideias para explorar que interessam a todos os que se preocupam com a intervenção pública para atenuar a desigualdade na distribuição do rendimento. Permite-nos também observar como um dos expoentes mundiais das Finanças Públicas argumenta a favor de políticas para resolver um problema a que dedicou, apaixonadamente, quase cinquenta anos de carreira.
Um dos aspetos destacados por Atkinson é a importância quer da distribuição de rendimentos de mercado, quer dos impostos e transferências, na determinação da distribuição do rendimento das famílias. O autor chama a atenção para a importância das políticas públicas e das normas sociais, na determinação dos rendimentos de mercado. Em particular, as políticas públicas devem combater práticas de restrições de concorrência e de concentração de poder e de influência. Mas, para além disso, as políticas públicas de redistribuição têm, também, uma grande importância.
As Figuras 1 e 2 mostram estes efeitos para o conjunto dos países europeus desde o início da crise financeira global, em 2007, e até 2013. Os dados usados estão disponibilizados no sítio do projeto Euromod (referido nas notas às Figuras).
Valores acima da diagonal indicam aumentos de desigualdade. Valores abaixo da diagonal indicam diminuições. Como se pode ver, verifica-se uma considerável diversidade entre países. Quer a evolução dos rendimentos de mercado, quer as políticas públicas têm forte impacto nos resultados finais de distribuição. Na maioria dos países os impostos e transferências contribuíram para uma maior igualdade na distribuição no período considerado (Figura 3).
O livro tem por referência a situação no Reino Unido. As propostas, não obstante a sua relevância geral, estão pensadas para este país. A capacidade e vontade de atuação das autoridades a nível nacional é substancialmente maior do que a nível global. Este é um elemento de otimismo decorrente da evolução presente: é mais fácil atuar sobre a desigualdade nacional do que sobre a desigualdade global.
Não concordo com todas as propostas de Atkinson. Não me parece que todas as ideias a explorar, listadas pelo autor, sejam prometedoras. Parece-me, no entanto, que se trata de um livro maduramente refletido. Um livro que convida e ajuda a pensar. Um bom livro e um bom tema para acompanhar no segundo ano de vida do Observador.