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A invasão de que ninguém estava à espera, ou que poucos previram, tem sido tema recorrente no consultório da psicóloga Cláudia Morais, em Lisboa. Não serve apenas para quebrar o gelo antes de mais uma consulta, mas é uma preocupação real, sobretudo entre as pessoas que são mais ansiosas, que acompanham a atualidade e a política internacional e que mesmo assim não adivinharam uma guerra na Europa. Pessoas que tentam antecipar sistematicamente cenários, prevendo o pior de maneira a precaverem-se. O facto de isso não ter acontecido, quando a 24 de fevereiro a Rússia entrou em território ucraniano, teve consequências, sobretudo depois de dois anos de pandemia que puseram a resistência individual e coletiva à prova.
Há quem tenha canalizado a preocupação acrescida para a ajuda de cariz humanitário, contribuindo com donativos ou iniciando processos burocráticos para acolher refugiados, mas a semente da ansiedade tem outras manifestações. “Em terapia individual já houve queixas na forma como o casal lida com o assunto, sendo um mais pragmático e o outro mais emocional”, exemplifica Morais. Mas também há pais que se queixam da resposta menos empática e mais indiferente dos filhos. “De uma maneira geral, atrás da aparente falta de empatia podem estar lutas individuais.” Exemplo disso é um pai que em sessão clínica chegou a defender a rendição do país de Zelensky — aprofundados os argumentos, o que estava em causa era medo por os filhos já terem idade para combater no caso de a guerra chegar a Portugal.
“Neste momento vivo com medo. Quase todos os dias choro”
A Conceição e José Cardoso, de 67 e 70 anos, nunca passou pela cabeça voltar a ver “atrocidades destas”. A invasão e consequente destruição de várias cidades ucranianas, cujas imagens chegam diariamente através do pequeno ecrã, servem de gatilho para o casal que noutra vida viveu em Angola e enfrentou os males da guerra. Ao Observador, recordam como apanharam um barco cargueiro em Lobito, na província de Benguela, rumo a Luanda para escapar ao conflito — estávamos em outubro de 1975. “No barco não havia espaço nem para nos sentarmos. Chegados a Luanda, enfiaram-nos em camiões semelhantes aos que carregavam os judeus no tempo do nazismo. Isso chocou-me muito”, recorda Conceição. Em Portugal, diz, não foram bem recebidos e ainda hoje, com dupla nacionalidade, consideram-se “refugiados” ao invés de “retornados”.
Ver o que se passa na Ucrânia mexe com os níveis de ansiedade de Conceição que não consegue evitar as comparações: também em Angola ela achou que a guerra nunca fosse acontecer. “Neste momento vivo com medo. Aquele senhor [Vladimir Putin] é louco o suficiente para carregar [no botão] e vamos todos dar uma voltinha”, diz, referindo-se a uma eventual ameaça nuclear — curiosamente, a publicação norte-americana The Cut chega a falar de “ansiedade nuclear”.
A preocupação acrescida que o casal sente reflete-se no dia a dia: Conceição tinha planeado uma ida aos Açores, mas a ideia foi de imediato posta de lado assim que a guerra estalou. “Não vou sair daqui”, assegura, apontando o dedo na direção da base das Lajes — o acordo estabelecido permite aos EUA utilizarem a base para operações militares da NATO. O filho vive no México e, não raras vezes, a mãe ironiza: “Vamos para o México!”. Uma brincadeira que não é tratada com tanto ânimo. “Neste momento ainda é a brincar, mas não descarto [a hipótese] se isto se tornar sério. Penso muito no futuro, tenho duas netas. Portugal é um país pequeno, mas somos uma Europa, não estamos tão longe assim.”
Em Angola, José Cardoso desligava com frequência a rádio e ligava o gira-discos, deixando que a música o abstraísse das circunstâncias. Agora, desliga a televisão, mas há muito que os discos antigos se perderam ou deixaram de funcionar. A guerra que marcou Conceição foi há 47 anos, “mas as marcas ainda estão cá”, diz a mulher que chora “quase todos os dias” — inclusive durante a entrevista. É também ela quem recorda os tiros rasantes e a parede do prédio onde em tempos morou cravejada de balas. Ainda hoje gosta de manter uma despensa reforçada, por precaução, ainda que há poucos dias tenha doado alimentos a uma família de refugiados ucranianos.
Do ponto de vista cognitivo, o facto de alguém ter vivido histórias semelhantes à crise atual torna mais fácil a personalização e traz à tona “memórias negativas traumáticas”, explica Miguel Ricou, da Ordem dos Psicólogos Portugueses. “Quem já passou por situações semelhantes pode, na altura, ter sentido uma carga emocional que muitas vezes não consegue recordar só de pensar nelas. Mas, com estes estímulos fortes, pode reviver [alguns episódios]. De alguma maneira vai sentir coisas parecidas com aquilo que viveu naquela altura”, diz — daí pode advir uma maior incapacidade de controlo emocional. “Evidentemente tem muito mais impacto do que uma pessoa que nunca passou por isto.”
Mais extremado é a PTSD. “Se alguém já esteve exposto no passado a uma situação de guerra ou outra traumática, tem maior probabilidade de desenvolver uma perturbação de stress pós-traumático (PTSD)”, segundo Maria João Heitor, presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental. A PTSD caracteriza-se por pensamentos intrusivos, pesadelos ou flashbacks de um evento tido como traumático, mas também pelo “evitamento de estímulos, pessoas, situações ou atividades que despoletem memórias associadas ao evento traumático”. Há, segundo a médica psiquiatra, “um estado de constante alerta e insónia”.
“Às tantas tive de parar. E parar foi deixar de ver as notícias”
Ansiedade todos temos, é uma emoção normal que surge em situações que consideramos ser perigosas — no fundo, é sentir medo. “Só que não é sentir medo de um objeto claro, mas perante uma circunstância que é em si assustadora, que está constantemente a aparecer e da qual é muito difícil desligar”, explica Miguel Ricou. Já a perturbação de ansiedade sinaliza uma dimensão mais clínica e pressupõe a existência de um conjunto de sintomas que inevitavelmente se tornam no problema. É quando o nosso foco e a nossa atenção passam a ser aquilo que estamos a sentir, e que se traduz na aceleração do ritmo biológico — não raras vezes, o fenómeno resulta em questões físicas, como dores ou problemas gastrointestinais (cansaço, dificuldades em dormir, dores musculares, cefaleias de tensão e suores frios também podem fazer parte do pacote).
O facto de uma pessoa focar-se constantemente no perigo faz com que perca a capacidade de se concentrar noutros aspetos da vida e, além do desconforto, é uma situação esgotante. “Qualquer pessoa pode desequilibrar-se com a perturbação de ansiedade, mas a maior parte de nós tem ferramentas para lidar com estas coisas. É muito importante o autocuidado, o controlo da exposição a notícias e a manutenção das rotinas diárias”, diz Ricou.
A guerra que agora invade televisões, jornais e estações de rádio pode ser uma fonte de grande ansiedade porque, em certa medida, é fácil identificarmo-nos com o conflito até pela proximidade: o cabeçalho noticioso “Guerra na Europa” faz agora parte dos nossos dias. Também a personalização é real: “E se fosse comigo?”. “Ainda que as pessoas sofram todas da mesma maneira [independentemente do local do conflito], é assustador quando sentimos as coisas mais perto. E como as sentimos mais perto, há muito maior cobertura, amplitude e continuidade.” Ricou refere ainda as conversas que começam a inundar o dia a dia sobre o que pode ou não faltar na sequência do conflito — a ONU já alertou para a crise global de alimentos e energia devido à guerra na Ucrânia —, o que faz com que quem seja mais ansioso dê por si a antecipar dificuldades.
Apesar da reação emocional poder ser “bem pior” para quem está na guerra do que para quem assiste à mesma à distância, a médica psiquiatra Maria João Heitor confirma que uma pessoa ansiosa pode estar a acompanhar a invasão com sofrimento: “Pode estar mais atenta e reativa às notícias que lhe chegam”.
“O meu problema com a guerra é que o meu filho está na Alemanha”, começa por explicar Maria Rodrigues, de 61 anos. A ideia de haver um só país entre Alemanha e Ucrânia (a Polónia, entenda-se) é fonte de ansiedade: “E se os mísseis falharem o alvo e atingirem a Polónia?” ou “E se a NATO intervir?” são perguntas que já lhe passaram pela cabeça num loop desenfreado. O mesmo loop que nos primeiros dias da guerra a impediam de dormir à noite. “Na primeira e segunda semana da guerra não preguei olho. Ia para a cama e estava constantemente a pensar no que podia acontecer ao meu filho.” Os cenários aterradores eram muitos: “E se ele não conseguir sair do país? E se os aviões não poderem voar?”. Nas inquietações noturnas, chegou a planear ir buscar o filho, mais a mulher deste e a filha ainda bebé, de carro. “Faço disparates na minha cabeça. Durante a noite é tudo pior.”
Maria admite que sempre foi uma pessoa muito ansiosa e que o facto de o filho estar longe numa altura em que a invasão russa prossegue é motivo para uma preocupação acrescida que poucas vezes consegue mitigar. “Tenho imenso medo”, diz. “Estou sempre a dizer ‘Assim que os russos chegarem à Polónia vocês saem da Alemanha, com ou sem Covid, rumo a Portugal’.” Às tantas, diz, teve de parar: “Parar foi deixar de ver as notícias”. Atualmente, troca o telejornal pelas séries e espreita as notícias que caem no ecrã do smartphone, mas não todas. “Se houver algo sobre bombas nucleares, não abro. Consumo alguma informação mas não quero muitos detalhes. Decidi não ver mais notícias e viver nesta ilusão.” E apesar de saber que “há guerras noutros sítios”, admite que esta “está mais perto”. “Espero que a Ucrânia não seja uma Síria ou um Afeganistão.”
“A exposição excessiva a notícias e imagens nos meios de comunicação social pode ser indutora de elevado stress e, consequentemente, de sofrimento psicológico”, assegura a médica psiquiatra Maria João Heitor, que fala numa “infodemia” (uma “epidemia de informações”) e também em desinformação. “As pessoas podem-se sentir ansiosas, deprimidas, sobrecarregadas, emocionalmente exaustas e incapazes de responder a solicitações importantes.” Há, no entanto, o reverso da medalha: à medida que o tempo passa pode acontecer um “entorpecimento psíquico”, descrito como “uma diminuição de sentimentos e pensamentos associados à informação que nos é transmitida”. Um fenómeno que aconteceu durante a pandemia, quando os casos de Covid-19 tornaram-se apenas números.
“Não consigo perceber quem é que não se preocupa com a questão nuclear — é verdadeiramente assustador”
O poderio nuclear aparentemente em jogo é um dos temas que Mafalda Beirão, de 32 anos, mais tenta evitar: “Assusta-me bastante pensar em quais serão as consequências caso esse seja o próximo passo. E confesso que não consigo perceber quem é que não se preocupa com o tema — é verdadeiramente assustador”. Também ela tem sentido mais ansiedade e ao Observador fala na angústia da incerteza, nas alterações no sono e nos pensamentos repetitivos. Beirão tem, à semelhança das outras histórias, tentado controlar o consumo das notícias porque sabe que “estar constantemente a atualizar páginas ou com canais noticiosos ligados pode ser uma causa de ansiedade ainda maior”.
O certo é que o início da invasão trouxe o regresso do chamado “doomscrolling”, que basicamente consiste num consumo desenfreado de más notícias — neste caso relacionadas com a Ucrânia — através da informação disponibilizada nas redes sociais, Twitter incluído.
Numa altura em que a guerra dura há mais de um mês, também Ana Gaspar, de 31 anos, “escolheu ser ignorante”, sobretudo porque os primeiros dias do conflito foram particularmente difíceis. Gaspar não toma medicação e não sofre de perturbação de ansiedade, mas isso não a impediu de se sentir mais ansiosa no final de fevereiro. A 24 do mesmo mês, quando as tropas russas invadiram a Ucrânia, não saiu da cama, trabalhou de pijama, coisa que naturalmente detesta, e não conseguiu desligar a televisão.
“Procurava tudo, ia ao Instagram e depois lia artigos. Quanto mais me informava, mais desinformada estava. Conclusão? Coloquei-me [no centro] de uma avalanche, não tive força anímica para fazer diferente.” Nesse dia, a meio da manhã, chorou “um bom pedaço” e no final da noite também. Agora, depois de desabafos intensos com a mãe e o namorado, diz que está mais calma. Mas é “inevitável”, ao abrir o Instragram e entrar no feed, não perceber o estado das coisas. “Para já, para mim chega-me. Sei que no dia em que quiser retomar a informação, tenho essa facilidade. Na Covid fiz exatamente a mesma coisa. Não é algo de que me orgulhe, sobretudo trabalhando na área da comunicação, não gosto de dizer que não vejo noticias. Mas é uma questão de saúde mental.”
Perante o “catastrofismo” que a situação pode originar, no sentido de se imaginar o pior, o psicólogo Miguel Ricou fala em “antecipação” de algo que pode não vir a acontecer, o que aumenta a tensão e a resposta emocional. “Temos de decidir pela maior probabilidade e é nisso que as pessoas têm de pegar.”
Depois de uma pandemia estamos mais ou menos resistentes?
Para quem sofre de ansiedade, estes têm sido anos difíceis, com uma guerra a suceder uma pandemia ainda não totalmente resolvida. Apesar do contínuo teste à resistência, há diferenças importantes considerando o impacto de ambos os fenómenos: durante a crise sanitária estava em vigor o distanciamento social, o que dificultou o processo de consolar amigos e familiares, e o inimigo era invisível, tal como já salientou o The Guardian. Mais: a guerra é mais clara e óbvia do que a pandemia, já que o vírus não tinha (e não tem) objetivos ou agendas. E a falta de clareza terá, em certa medida e consoante os especialistas consultados pelo jornal britânico, ajudado a fomentar as teorias da conspiração — afinal, era necessária alguma espécie de narrativa.
Ao Observador, Maria João Heitor assegura que ainda antes da guerra já muitas pessoas estavam fragilizadas pela pandemia e também pela crise económica. Citando um estudo promovido pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, em colaboração com o Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e com a SPPSM, diz que a resiliência dos profissionais de saúde menteve-se a mesma face a 2020 e 2021, embora tenha existido uma “redução significativa” na população em geral. “Poderemos supor que, na generalidade, as pessoas estarão menos capazes e com menor resiliência para lidar com a ameaça de uma guerra.”
Tanto que a psiquiatra dá alguns conselhos gerais para impedir a proliferação da ansiedade em tempos de guerra: “Manter rotinas e ter atenção aos hábitos e estilos de vida saudáveis; reduzir cafeína e açúcar; preservar uma boa higiene do sono; exercício físico, nem que seja fazer caminhadas regulares; não fumar, evitar consumo excessivo de álcool, não consumir drogas; conviver, em segurança, entre amigos e família; melhorar a conciliação entre o trabalho e a vida pessoal e familiar; cultivar passatempos e reservar tempo para momentos de lazer”. Considerando, porém, uma pessoa em “sofrimento psicológico prolongado e intenso”, o conselho é procurar ajuda.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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