Às 8h15 em ponto desta segunda-feira, os portões de ferro da escola básica Pedro de Santarém, no bairro de Benfica, em Lisboa, voltaram a fechar-se. É assim há décadas, com o encerramento do portão a dar lugar ao início das aulas, sempre à mesma hora. Estamos na movimentadíssima Estrada de Benfica, um importante eixo da zona noroeste da capital, junto a um complexo educativo que inclui as escolas básicas Pedro de Santarém e Quinta de Marrocos e a secundária José Gomes Ferreira. Em dias normais, aquelas três escolas explicam grande parte do movimento da rua, onde abundam restaurantes, cafés, pastelarias, todo o tipo de comércios locais e um quartel de bombeiros: ao início da manhã, os carros apinham-se para largar estudantes, os muitos autocarros que ali param descarregam dezenas de crianças e jovens e as famílias que vivem nas proximidades vão chegando a pé, com os filhos pela mão.
Quando, no final de janeiro, os efeitos do Natal e a variante britânica do coronavírus levaram o Governo a decretar o encerramento das escolas portuguesas, aquele troço da rua ficou subitamente deserto. Esta segunda-feira, a rua voltou ao rebuliço matinal, mas a meio gás. Das três escolas, só a Pedro de Santarém — a única que tem alunos do primeiro ciclo (1.º – 4.º anos de escolaridade) — reabriu. As outras duas continuavam de portões encerrados, guardadas para as próximas fases do desconfinamento.
Em bom rigor, este regresso às aulas não foi inédito. Em maio de 2020, depois do confinamento nacional imposto quando a pandemia chegou a Portugal, os alunos voltaram à escola num ambiente radicalmente diferente. Máscaras, medição de temperatura à entrada, desinfetante de mãos em cada esquina, horários ajustados para evitar ajuntamentos desnecessários — e dúvidas, medos e angústias sobre o regresso a um mundo novo. Quase um ano depois, não surpreende que o segundo regresso não seja tão estranho quanto o primeiro. Na verdade, as primeiras horas da manhã foram vividas na Estrada de Benfica com uma normalidade, essa sim, curiosa: como numa coreografia bem ensaiada, os menores chegaram a conta-gotas pela mão de um adulto de máscara, dirigiram-se intuitivamente à funcionária que à porta da escola lhes apontava um termómetro à testa, receberam diligentemente uma dose de álcool-gel nas mãos e juntaram-se, cautelosamente, aos colegas no interior do recreio.
Junto ao portão, os ajuntamentos de outrora dissiparam-se mais rapidamente, após curtas conversas entre pais e funcionários, sem delongas. O arranque tranquilo da manhã escolar concretiza como poucos outros cenários o célebre “novo normal” de que se fala há meses: ainda que tudo pareça estranho, nada parece estranho. Às 8h15, o portão fechou-se como sempre se fechou.
Fora da escola, a rua de prédios altos começa a adquirir um movimento que nos últimos meses lhe fora estranho. Durante as semanas que passaram, o bairro chegou a estar mergulhado num silêncio profundo, cortado a espaços pelos autocarros — que circulavam praticamente vazios na maioria das horas do dia. À medida que a fadiga do confinamento se impôs, os passeios higiénicos de quem ali vive tornaram-se mais frequentes e mais longos. Mas só esta segunda-feira, quando a sucessão de portas fechadas deu lugar à abertura tímida de barbearias e cafés, a rua recuperou alguma da vida que lhe é habitual.
Pela avenida larga sucedem-se as pastelarias de novo abertas. As portas não convidam a entrar; em vez disso, uma pequena mesa de esplanada junto à entrada faz de postigo (que entrou no nosso léxico quotidiano nos últimos meses e que na manhã desta segunda-feira era a palavra mais pesquisada no dicionário digital Priberam), onde agora já se vendem cafés e todo o tipo de bebidas. Os funcionários acenam a quem passa, cada um atrás da sua mesa de esplanada convertida em postigo, como em bancas de um grande mercado em que a rua se transformou. Na verdade, os café e restaurantes já podiam estar abertos com venda ao postigo, mas a proibição de venda de café e outras bebidas forçara muitos a nem abrir portas.
Na famosa pastelaria Nilo, em frente à igreja de Benfica, mesmo no centro do bairro, tinha sido esse o caso. À porta, um pequeno grupo de habitantes comenta o desconfinamento. “Para o mês que vem já se pode sentar na esplanada”, atira o empregado de balcão, perdão, de postigo, a uma cliente satisfeita por finalmente beber uma bica fora de casa. Paramos ali para o pequeno-almoço e para dois dedos de conversa. “Fechámos por causa disso. Ia estar aqui sem poder vender café nem água?”, questiona o empregado, enquanto serve os cafés. Mas não está desanimado — antes, é entre sorrisos que vai dando que fazer à máquina de café. “Agora, vai retomar devagarinho.” À falta de esplanada, a clientela vai aproveitando outro dos desconfinamentos desta semana: já é possível permanecer nos espaços públicos de lazer. Os bancos de jardim que povoam o largo, com a igreja de um lado e a pastelaria do outro, ainda conservam vestígios das fitas de plástico que durante várias semanas indicaram que não podiam ser usados. Agora, contudo, é neles que os cafés (em copo de papel) e os bolos (sempre embrulhados) são consumidos.
Do outro lado da rua, começa a formar-se uma pequena fila na porta lateral da igreja. São quase 9h — a hora de uma das missas mais populares da paróquia de Benfica. Por indicação da Conferência Episcopal Portuguesa, a Igreja Católica também retomou esta segunda-feira as missas presenciais ao fim de quase dois meses de suspensão. O padre Nuno Fernandes, pároco local, recebe os fiéis à porta da igreja e vai esclarecendo dúvidas sobre o novo funcionamento das missas. Também no caso da religião, o primeiro desconfinamento permitiu aprender as lições necessárias para que o segundo regresso fosse pacífico.
A partir da porta da igreja, avista-se aquela que é, sem qualquer margem para dúvida ou hesitação, a maior fila do bairro: a do barbeiro. É incontestável que, nesta manhã de segunda-feira, a barbearia que fica do outro lado da rua atraiu mais fregueses do que a igreja. Até o padre o admite. Aliás, o próprio padre tentou marcar um corte de cabelo. Mas, antecipando os muitos pedidos de uma freguesia que passou dois meses com os cabelos por cortar, o barbeiro decidiu que atenderia apenas por ordem de chegada. No interior da igreja, a mensagem é de esperança. “Voltamos a estes lugares, que são os vossos lugares”, ouve-se do altar.
A missa foi rápida — pouco mais de meia-hora, como habitual nas curtas missas dos dias de semana. Mas foi o suficiente para que, à saída da igreja, o cenário do bairro tivesse mudado de modo considerável. Por esta altura, a fila do barbeiro já tinha triplicado. “Um gajo tem de se pôr a pau”, comenta um cliente à porta da barbearia. “Quem é o último?”, vão perguntando os que chegam. Poucos metros ao lado, há uma outra fila: a da padaria. Do interior do estabelecimento, ouvem-se berros: “DE-ZAS-SE-TE!” Ninguém espera lá dentro — todos os clientes aguardam na rua, com senhas e máscaras.
Os bancos de jardim converteram-se decididamente na esplanada possível para quem ainda bebe o primeiro café matinal. O movimento das ruas aproxima-se do ritmo pré-pandémico, embora continuem a faltar as esplanadas dos restaurantes, mas uma caminhada pela avenida principal do bairro confirma o padrão: é nas barbearias e cabeleireiros que encontramos as maiores filas.
Poucos minutos antes das 10h, o barbeiro Rúben, um dos dois cortadores de cabelo da barbearia Fonseca, abre o estabelecimento, antecipando um dia cheio. Logo depois, chega o dono da barbearia — o próprio Fonseca —, e ambos se lançam de imediato ao trabalho. Os primeiros clientes chegaram quando a porta ainda se abria. “Já parece o Natal”, comenta o dono, enquanto corta à máquina o primeiro cabelo da manhã. Vai ser um dia longo. “Hoje já não dá. Só consigo amanhã”, responde a todos os clientes que aparecem à porta ou que telefonam para a barbearia: as marcações começaram a chegar no dia em que António Costa anunciou o plano de desconfinamento. O corte de cabelo do primeiro cliente a sentar-se na cadeira da barbearia é interrompido por constantes telefonemas com marcações para os três primeiros dias de atividade. É essa a estimativa dos barbeiros: a partir de quinta ou sexta-feira, tudo há de voltar ao normal após “três dias de loucura”.