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O que aconteceu?

No último dia 7 de outubro nasceu no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, um bebé sem olhos, nariz e parte do crânio. O caso surpreendeu os especialistas que realizaram o parto. Até porque a gravidez não tinha sido acompanhada naquela unidade hospitalar.

Mas surpreendeu também os pais. É que a mãe tinha feito as três ecografias habituais com um obstetra, Artur Carvalho, que a seguia numa unidade privada em Setúbal — a clínica Ecosado localizada junto ao Hospital de São Bernardo. E nunca tinha sido avisada da existência de qualquer malformação no bebé. Segundo o Correio da Manhã, os pais só foram alertados para essa possibilidade numa ecografia 5D feita numa outra clínica especializada, realizada já depois dos outros três exames. Face ao resultado preocupante, os pais questionaram o médico Artur Carvalho que os seguia. Mas este terá garantido que estava tudo bem e eles terão ficado tranquilos.

O parto realizou-se no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, mas a grávida foi acompanhada numa clínica privada (Carlos Santos/Global Imagens)

Assim, no início deste mês, os pais deslocaram-se ao Hospital de São Bernardo para o parto. Apenas no momento do nascimento, eles e a equipa médica tomaram conhecimento das malformações. E o choque foi total quando pegaram na criança.

O prognóstico inicial dava apenas algumas horas de vida ao recém-nascido. Mas Rodrigo completa dez dias esta quinta-feira.

De acordo com o Correio da Manhã, o bebé foi levado para o Hospital D. Estefânia, em Lisboa, na passada segunda-feira. Os pais esperam um milagre, mas a madrinha está pessimista: “As lesões no cérebro são gravíssimas“, disse ela ao mesmo jornal.

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O que disse o médico que acompanhou a gravidez?

A fachada da clínica privada de Setúbal onde a mãe de Rodrigo foi acompanhada

“Momentos após o parto, o Dr. [Artur Carvalho] foi chamado à sala de parto”, lê-se na queixa citada pelo Correio da Manhã. Nesse momento, “confirmou aos pais que as anomalias eram da sua inteira responsabilidade”.

No entanto, em declarações mais tarde a este jornal, o obstetra disse apenas: “Não detetei alterações. O bloco de partos ficou em estado de choque”.

Ordem dos Médicos pede “ação rápida, eficaz e justa” para investigar caso do bebé que nasceu sem rosto

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O que diz o hospital onde ocorreu o parto?

O Hospital de São Bernardo, que só tomou conhecimento das malformações no momento do parto, abriu um inquérito ao caso. É que, apesar de o obstetra Artur Carvalho ter acompanhado a grávida a título particular, na sua clínica privada, também trabalha no Centro Hospitalar de Setúbal, de acordo com a agência Lusa.

O Hospital de São Bernardo emitiu uma nota de imprensa em que sublinha este ponto. O de que “o acompanhamento da gravidez desta utente não foi efetuada no Centro Hospitalar de Setúbal nem os meios complementares de diagnóstico e terapêutica foram ali realizados”.

Apenas o parto da utente decorreu no Centro Hospitalar de Setúbal, tendo sido no momento detetada a situação”, lê-se no comunicado.

O hospital adianta ainda que, desde o nascimento, “a criança e a família têm sido acompanhadas no Serviço de Pediatria com o apoio da Equipa Intra-Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos Pediátricos do Centro Hospitalar de Setúbal”.

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Quando é que se formam o nariz, olhos e crânio dos fetos? E quando são detetadas malformações?

Nariz, olhos e crânio formam-se “mais ao menos na mesma altura, embora primeiro se forme o crânio e depois se forme o resto”, explica ao Observador o médico e professor de ginecologia e obstetrícia Diogo Ayres de Campos, adiantando que a formação ocorre “nas primeiras 12 semanas” da gravidez.

Algumas malformações “são tão pequenas que não se conseguem detetar de todo”, mas “malformações grandes conseguem-se detetar, por rotina, na ecografia das 22 semanas“. “Quando são malformações muito exuberantes, por exemplo, na ausência de uma parte do cérebro, consegue-se detetar mais precocemente: na ecografia das 13 semanas“, adianta ainda Diogo Ayres de Campos.

Uma ecografia com 13 semanas

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O que diz a legislação sobre abortar nestes casos?

“Quem escolhe abortar ou não é a mãe”, começa por explicar ao Observador o obstetra Diogo Ayres de Campos. Mas tem limites para o fazer: se uma malformação for “incompatível com a vida” — isto é, se o bebé não sobreviver — pode abortar até ao final da gravidez; se for uma malformação que não seja incompatível com a vida, mas que seja grave, pode interromper a gravidez até às 24 semanas.

Em malformações incompatíveis com a vida, a mãe pode abortar até ao fim da gravidez (ANTÓNIO COTRIM/LUSA)

Mas, mesmo se a mãe for informada de que a criança não vai sobreviver após o nascimento, pode optar por não abortar. Até mesmo se puser em causa a saúde da mãe. Esta nunca é obrigada, apenas aconselhada.

O bebé, até nascer, faz parte do corpo da mãe. Tudo quanto seja interromper a gravidez necessita do consentimento da mãe.

A decisão é sempre ponderada. Todos os hospitais que têm cuidados de obstetrícia têm uma comissão técnica oficial que avalia se cada caso está ou não de acordo com a lei. “Avalia-se a situação: se é ou não incompatível com a vida ou inviável — ou seja, se o bebé tem ou não hipóteses de sobreviver”, explica Diogo Ayres de Campos, adiantando que é também esta equipa multidisciplinar que avalia quanto tempo é que um bebé com malformações poderá sobreviver. Neste caso, ao bebé Rodrigo foi-lhe dado apenas algumas horas de vida.

Ou seja, neste caso a mãe poderia teoricamente ter decidido abortar em qualquer altura da gravidez à luz da lei.

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Como é possível não terem sido detetadas estas malformações?

Ressalvando que não conhece o caso nem as ecografias que foram feitas, o obstetra Diogo Ayres de Campos não deixa de notar que “há malformações que são muito óbvias”, detalhando que “malformações como a ausência de olhos e uma implantação anormal do nariz fazem parte da rotina da ecografia das 22 semanas”.

A não deteção dessas malformações é um erro. Há pessoas que fazem ecografias e têm mais experiência e mais conhecimento e há pessoas que têm menos. Mas isto é um erro muito grosseiro“, diz ao Observador.

O presidente da Sociedade de Obstetrícia, Luís Graça, que também não quis comentar o caso concreto, disse à agência Lusa que um bebé sem olhos, nariz e parte do crânio deveria ser identificável numa ecografia.

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Quantas ecografias faz habitualmente uma grávida?

Entre 3 e quatro numa gravidez normal.

A primeira acontece até às 10 semanas e serve não só para confirmar a gravidez, como para afastar qualquer problemas, como a exclusão de uma gravidez extra-uterina (gravidez ectópica); a verificação do número de fetos presentes e a sua viabilidade; e também a confirmação do tempo de gestação.

Chama-se Ecografia Obstétrica Precoce e nem sempre acontece.

A segunda tel lugar entre as 10 e as 14 semanas de gravidez. Permite verificar se o feto está realmente no lugar certo para se desenvolver e ter uma gravidez saudável – dentro do útero — e determina, com maior precisão, o tempo de gravidez, prevendo também a data do parto, avaliando como está a correr o desenvolvimento da criança.

Logo aqui é possível deteta algumas anomalias fetais, e pode ser feito oespiste da Síndrome de Down (Trissomia 21) através da avaliação da translucência da nuca. Pode também diagnosticar-se precocemente uma morte fetal (a perda gestacional).

É a Ecografia Obstétrica do 1.º trimestre.

Às 20 a 22 semanas faz-se uma das ecografias mais importantes, onde é possível analisar com mais rigor (já que o bebé é bastante maior), a anatomia e desenvolvimento dos órgãos e sistemas do bebé. Faz-se a medição do perímetro cefálico (medindo a cabeça do bebé — o que neste caso permitiria perceber a falta de parte do cérebro), o perímetro abdominal e o mcomprimento do fémur, bem como a qualidade e quantidade de líquido amniótico, da placenta e do cordão umbilical. Pode também saber-se o sexo do bebé na maioria dos casos

É a ecografia Morfológica do 2.º trimestre.

Realizada entre as 28 e as 32 semanas de gravidez, esta ecografia tem como objetivo confirmar e avaliar o crescimento fetal e a posição em que o bebé se encontra, uma vez que se encontra mais perto o período do parto. Normalmente, é feita a medição da cabeça (novamente), abdómen e fémur do feto (tal como na 2ª ecografia), uma estimativa do peso fetal; um exame dos movimentos e dos batimentos cardíacos e uma deteção de anomalias de desenvolvimento tardio.

É a ecografia do 3.º Trimestre.

Pode ainda ser feita uma ecografia obstétrica 3D ou 4D, que permitem observar o bebé a três dimensões (3D) e em tempo real (4D). Podem ser feitas em qualquer fase da gravidez, apesar de se aconselhar a sua realização a partir das 26/28 semanas, uma vez que o bebé já está com uma aparência muito similar à com que vai nascer. Mas nem sempre consegue ver a cara do seu bebé – irá depender da sua posição, da quantidade de líquido amniótico e do peso materno. O casal também a terá feito e terá sido alertado para problemas, mas o obstreta que os seguia desvalorizou.

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O médico em causa está a ser investigado?

Assim que as complicações foram detetadas, os pais apresentaram queixa ao Ministério Público contra o médico Artur Carvalho. A PGR anunciou ao fim da tarde que já abriu um inquérito.

Não é, no entanto, a primeira vez que este médico está a ser investigado. Já tinha sido alvo de um inquérito em 2011. O processo, num caso de contornos semelhantes de malformações, acabou arquivado: uma bebé, acompanhada por este médico numa clínica na Amadora, terá nascido sem queixo e com as pernas viradas ao contrário, escreve o Correio da Manhã.

O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, pediu “um esclarecimento cabal perante os vários processos que tem em análise” (MANUEL DE ALMEIDA/LUSA)

Além disso, o obstetra Artur Carvalho já tinha quatro processos em curso no conselho disciplinar da Ordem dos Médicos, revelou esta entidade à agência Lusa. O conselho disciplinar, neste caso do Sul, que tem autonomia no seu funcionamento em relação à Ordem, está agora a analisar estes processos.

O bastonário da Ordem dos Médicos “perante a gravidade dos factos relatados” informou, num comunicado enviado às redações, que já pediu “um esclarecimento cabal perante os vários processos que tem em análise”.

Quero deixar desde já uma primeira palavra de solidariedade à família que está neste momento a atravessar um momento muito difícil”, lê-se na nota.

O bastonário Miguel Guimarães pediu ainda “uma ação rápida, eficaz e justa nos casos analisados, que dignifique a profissão médica e que proteja os doentes”.

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