Durante a audição a que foi sujeito na Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização e à Gestão da Caixa Geral de Depósitos (CGD), a deputada Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda) questionou Armando Vara sobre o número de propostas de crédito que reencaminhou para Alexandre Santos, diretor comercial do banco público, enquanto foi administrador da Caixa (2005-2007).

A pergunta estava relacionada com o dossiê do financiamento da CGD ao projeto de Vale do Lobo. O ex-ministro foi taxativo ao negar que tivesse reencaminhado alguma “proposta de crédito” relacionada com aquele projeto imobiliário para aquele diretor. Admitiu, sim, ter reencaminhado “um documento de um cliente que queria apresentar uma proposta de financiamento à Caixa” — documento que o próprio Vara considera que “era indispensável para uma pré-avaliação da Caixa sobre se tinha condições de se envolver nesse negócio.”

Este é um facto essencial na acusação de corrupção passiva que o Ministério Público imputa a Armando Vara na Operação Marquês, sendo um dos vários indícios documentais da tese de que o ex-gestor da CGD favoreceu um grupo de acionistas portugueses na aprovação de operações de crédito que originalmente totalizam cerca de 230 milhões de euros (subindo mais tarde para 284 milhões de euros) para aquisição e expansão do resort algarvio de Vale do Lobo.

Como alegada contrapartida, Armando Vara e José Sócrates terão alegadamente dividido uma contrapartida de dois milhões de euros que foi transferida através das contas bancárias de Joaquim Barroca, ex-vice-presidente do Grupo Lena, e de Carlos Santos Silva, alegado testa-de-ferro de Sócrates.

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Existe prova documental nos autos da Operação Marquês que permite comprovar os seguintes factos:

  • No dia 28 de junho de 2006, Diogo Gaspar Ferreira, um dos membros do grupo de acionistas que queria adquirir de Vale do Lobo, enviou um email para Armando Vara com uma proposta de financiamento para aquisição e expansão daquele resort algarvio. Desse email faziam parte os seguintes ficheiros informáticos: “Apresentação bancos – junho 2006”, “Appendix 1- VdL Financial Projections”,“Appendix 2 – Golf Revenues Assumptions”. Os ficheiros traduziam não só a proposta de crédito, bem como todo o plano de negócios a 10 anos para a rentabilização do investimento. Na prática, explicava-se como é que o o grupo de Gaspar Ferreira pretendia investir o dinheiro emprestado pela Caixa e como tencionava pagar o crédito.
  • No mesmo dia, a 28 de junho de 2006, Armando Vara transmitiu também via email os referidos documentos para Alexandre Ferreira Santos, diretor do Departamento de Empresas Sul na CGD. Segundo a acusação do Ministério Público, Vara solicitou ao diretor da Caixa que introduzisse os referidos documentos no circuito formal de tramitação do banco público como “proposta de financiamento”, de forma a merecer aprovação.
  • Tais documentos deram, assim, lugar à abertura de uma proposta de concreta de financiamento que passou diretamente para análise da Direção de Gestão de Risco e do Gabinete de Empresas de Faro. O procedimento normal de uma proposta de crédito dessa natureza passaria por uma proposta formal desta última estrutura local da CGD e não pelo Departamento de Empresas Sul — um patamar hierarquicamente superior que reportava diretamente ao então administrador Armando Vara.

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Alexandre Ferreira Santos, diretor do Departamento de Empresas Sul, e Francisco Piedade, diretor do Gabinete de Empresas de Faro, confirmaram nos autos da Operação Marquês os factos acima descritos.

Ferreira Santos foi ainda à Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização e à Gestão da CGD confirmar que recebeu esse email de Armando Vara em 2006 e acrescentou que o financiamento ao resort de luxo Vale do Lobo foi decidido na sequência do envio do referido e-mail com um dossiê já preparado para o negócio ser aprovado pela direção comercial do banco.

Mais: o diretor da Caixa referiu que “não era habitual” que um administrador reencaminhasse um proposta de financiamento e confirmou que lhe foi transmitida “urgência” na contratação desse financiamento. “Não tenho memória de de ter recebido mais nenhum dossiê preparado”, afirmou Alexandre Ferreira Santos numa referência ao grau de pormenor de todos os documentos que Vara reencaminhou.

O Conselho Alargado de Crédito da CGD veio a aprovar o crédito para a aquisição e expansão de Vale do Lobo no dia 25 de outubro de 2006 por proposta do administrador Armando Vara.

Tendo em conta a proposta original de crédito e as subsequentes, está em causa um financiamento (cerca de 256 milhões de euros) e entrada de capitais da própria CGD na sociedade veículo Wolfpart (cerca de 28 milhões de euros) que ficou responsável por toda a operação — sendo que 75% do capital desta sociedade pertenceria à Turparte e 25% à CGD. A Caixa ‘investiu’ assim 284 milhões de euros no projeto de expansão de Vale do Lobo, enquanto o grupo de investidores (Helder Bataglia, Luís e Rui Horta e Costa, Pedro Ferreira Neto e Diogo Gaspar Ferreira reunidos na sociedade Turpart) entraram apenas com cerca de 6 milhões de euros de capitais próprios.

As condições deste negócio, que indicavam claramente que o risco estava nas mãos do banco público, acabaram por revelar-se catastróficas para a Caixa, visto que a empresa que ficou com o resort com mais de 450 hectares numa zona do litoral algarvio deixou de pagar em 2009 os diversos empréstimos contraídos junto da CGD.

Resultado: com os juros de mora, a dívida da empresa de Vale do Lobo à Caixa atingiu no final de 2016 cerca de 320,5 milhões de euros por conta de 11 operações de crédito – valor a que temos de acrescentar 37,3 milhões de euros de suprimentos realizados à Wolfpart. São 357,8 milhões de euros que a CGD tinha a receber à data de 31 de dezembro de 2016.

Em maio de 2018, o valor total da dívida de Vale do Lobo à Caixa ascendia a 372,3 milhões de euros, mas apenas 265 milhões estavam reconhecidos no balanço do banco. No início de 2018, a Caixa tinha vendido os créditos que detinha sobre a sociedade gestora de Vale do Lobo ao fundo português ECS por 222,9 milhões de euros.

Conclusão

Na resposta que deu à deputada Mariana Mortágua, Armando Vara tentou transformar o email que recebeu de Diogo Gaspar Ferreira e que reencaminhou para Alexandre Ferreira Santos num mero “documento de um cliente que queria apresentar uma proposta de financiamento à Caixa”. Contudo, não só o próprio diretor da Caixa Geral de Depósitos confirmou em duas sedes diferentes (Ministério Público e Comissão Parlamentar) que se tratava de “uma proposta de financiamento”, como acrescentou que não era habitual receber tais propostas de administradores da Caixa e que não “tem memória de de ter recebido mais nenhum dossiê preparado” como aquele que recebeu de Vara.

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