Circula no Facebook um curto texto onde é afirmado que as autópsias foram proibidas durante a pandemia. A tese do autor da publicação é a de que “ninguém morreu de Covid”, mas sim por outros motivos — algumas pessoas morreram de outras doenças e outras por causa do ventiladores que “arrebentaram com eles” [sic]. E terá sido para esconder estas alegadas razões que as autoridades de saúde, segundo o autor da publicação, proibiram as autópsias. Mas tal não aconteceu: as autópsias foram, sim, desaconselhadas numa determinada fase, mas nunca foram proibidas. 

A publicação já foi vista por mais de 20 mil pessoas

Desde logo, há que ter em conta um facto: já antes da pandemia, nem todas as pessoas era autopsiadas. A autópsia médico-legal ocorre apenas em determinados contextos, previstos no regime jurídico das perícias médico-legais e forenses: quando há suspeita de um crime ou quando há incerteza quanto à sua inexistência; quando a morte ocorre em situações de violência e de forma imediata, por acidente de trabalho ou viação; ou quando alguém é encontrado já cadáver e não se sabe o que aconteceu.

Quando não está em causa nenhum destes casos e quando existem informações clínicas suficientes que permitam concluir que não há suspeita de crime — por exemplo, uma morte que resulta de uma doença que se agravou —, esta perícia é dispensada. A decisão de dispensar a realização da autópsia é sempre tomada pelo Ministério Público (MP) e nunca das autoridades de saúde. É, aliás, algo que já estava previsto nesse regime jurídico ainda antes da pandemia:

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A autópsia médico-legal pode, ainda, ser dispensada nos casos em que a sua realização pressupõe o contacto com fatores de risco particularmente significativo suscetíveis de comprometer de forma grave as condições de salubridade ou afetar a saúde pública.

No entanto, a 16 de março, já em contexto de pandemia, a Direção-Geral da Saúde (DGS) emitiu a norma onde indicava que as autópsias médico-legais a pessoas com suspeita ou confirmação de Covid-19 deviam “ser dispensadas, considerando o facto de a sua realização ter como objetivo a investigação de crime”. Mas a razão para esta recomendação prendia-se simplesmente com o facto de que as autópsias em cadáveres de pessoas que morreram com Covid “expõem a equipa a riscos acrescidos que deverão ser evitados”. Questionada pelo Observador, a DGS confirmou que “não se pronunciou sobre a proibição de autópsias”, apenas recomendou “medidas de prevenção e controlo a todos os profissionais, incluindo durante as autópsias”.

Prova de que as autópsias não foram proibidas é que a DGS, na mesma norma, dava também indicações para os casos em que a autoridade judiciária não dispensava de autópsia. Essas indicações diziam respeito não só ao momento da realização da autópsia mas, também, ao posterior acondicionamento do corpo e, ainda, à limpeza e desinfeção da sala onde for realizada. Por exemplo, lia-se que o corpo devia “ser colocado em saco de cadáver impermeável, apropriado e encerrado adequadamente”.

Preferencialmente, colocar o corpo em dupla embalagem impermeável. Usar luvas descartáveis de nitrilo ao manusear o saco de acondicionamento do cadáver”, indicava ainda a norma.

Desde 16 de março, data em que foi publicada a norma da DGS, até dia 9 de outubro, foram realizadas 2909 autópsias médico-legais, avançou ao Observador o presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), Francisco Corte Real. Estes dados mostram, desde logo, que as autópsias não foram proibidas.

É certo que o INMLCF não tem registo de autópsias a vítimas de Covid-19 — o que apenas significa que não houve qualquer suspeita de crime ou dúvida na causa da morte que exigisse a realização da autópsia e que, provavelmente, foram pessoas que morreram no hospital e cuja causa de morte era conhecida dos médicos. Ainda assim, em dois casos, foram realizadas duas virtópsias (também designadas autópsias virtuais). Neste casos, “para além do exame do hábito externo e da colheita de amostras biológicas, houve necessidade da obtenção de outros dados autópticos”, que foram recolhidos “mediante a utilização de métodos imagiológicos”, isto é, raio-x, ressonâncias magnéticas, ecografias, etc. Isto quer dizer que, nestas duas vítimas Covid-19, não foi dispensada a realização de autópsia mas, dado o perigo de contaminação do vírus, recorreu-se a um método que mais protegeria os profissionais.

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A teoria de que as autópsias foram proibidas surgiu pela primeira vez escrita num comentário de uma utilizadora a uma publicação. Só que este comentário acabou por ser isolado e partilhado como uma publicação única — que já foi visualizada por mais de 20 mil utilizadores. É certo que a grande maioria das pessoas que se cruzaram com este post não acreditou no que lá era dito, pelo que manifestaram nos comentários que fizeram. Mas também é certo que alguns utilizadores colocaram a hipótese de ser verdade, tendo até partilhado a publicação.

Conclusão

As autópsias foram desaconselhadas numa determinada fase da pandemia, mas nunca foram proibidas. Aliás, desde 16 de março, data em que foi publicada a norma da DGS sobre autópsias, até dia 9 de outubro, foram realizadas 2909 autópsias médico-legais — dados mostram que as autópsias não foram proibidas.

Apesar de o INMLCF não ter registo de autópsias a vítimas de Covid-19, em dois casos, foram realizadas duas virtópsias (também designadas autópsias virtuais). Neste casos, “para além do exame do hábito externo e da colheita de amostras biológicas, houve necessidade da obtenção de outros dados autópticos” que foram recolhidos “mediante a utilização de métodos imagiológicos”, isto é, raio-x, ressonâncias magnéticas, ecografias, etc. Isto quer dizer que, nestas duas vítimas Covid-19, não foi dispensada de autópsia, mas dado o perigo de contaminação do vírus, recorreu-se a um método que mais protegeria os profissionais.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota 1: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

Nota 2: O Observador faz parte da Aliança CoronaVirusFacts / DatosCoronaVirus, um grupo que junta mais de 100 fact-checkers que combatem a desinformação relacionada com a pandemia da COVID-19. Leia mais sobre esta aliança aqui.

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