Várias publicações colocadas no Facebook sugerem que as pessoas vacinadas contra a Covid-19, uma doença provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, desenvolvem sida, a doença provocada pelo vírus da imunodeficiência adquirida (VIH), um retrovírus.

As publicações apontam capturas de ecrã a dois conteúdos. Um afirma em título que os “triplamente vacinados estão desenvolvendo síndrome da imunodeficiência adquirida em ritmo alarmante, segundo dados do Governo do Reino Unido”. Outro proclama que “dados oficiais do Governo do Canadá sugerem que os totalmente vacinados estão a apenas algumas semanas de desenvolver AIDS” — a sigla em inglês para síndrome da imunodeficiência adquirida, sida.

Ambos os conteúdos têm a mesma origem: foram retirados do site do Jornal Tribuna Nacional, que por sua vez limitou-se a traduzir os artigos do site The Exposé. Ambas as páginas dedicam-se a divulgar notícias falsas, informações distorcidas e descontextualizadas. Prova disso é que uma pesquisa nos dois sites revela conteúdos falsos que já foram esclarecidos em fact checks publicados pelo Observador.

A publicação partilha notícias falsas publicadas originalmente em sites dedicados à desinformação.

Vamos então aos factos e comecemos pelo artigo falso em que se afirma que os diagnósticos de sida estão a aumentar num “ritmo alarmante” entre quem recebeu três doses da vacina contra a Covid-19. O artigo analisou cinco relatórios de vigilância das vacinas contra a Covid-19 da Agência de Segurança em Saúde do Reino Unido (UKHSA), publicados entre 16 de agosto de 2021 e 2 de janeiro de 2022. Mas errou por completo a interpretação dos dados que lá surgem.

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Todas as tabelas colocadas no artigo falso dizem respeito a um levantamento de dados das autoridades de saúde sobre os casos de Covid-19 por estado vacinal dos infetados e por faixas etárias nas semanas anteriores. Mas foram modificadas pelos autores quando acrescentaram três novas colunas: uma com as taxas não ajustadas de casos por cada 100 mil pessoas entre os vacinadas com duas doses, outra com as taxas não ajustadas de casos por 100 mil pessoas entre os não vacinados; e uma terceira coluna, assinalada a amarelo, cujas percentagens exibidas são apresentadas como “efetividade da vacina”.

Ora, as duas primeiras colunas extra são verdadeiras e estão expostas noutra tabela do mesmo relatório. Os números que lá surgem são “taxas não ajustadas” porque são calculadas com base em números brutos, sem ter em consideração “enviesamentos estatísticos subjacentes” que até podem ser “sistemáticos” e assim poluir uma interpretação mais factual dos dados.

Para descobrir as taxas não ajustadas de casos entre pessoas vacinadas com duas doses basta dividir o número de pessoas positivas que foram vacinadas com duas doses pelo número total de pessoas que receberam duas doses; e depois apurar quantos casos positivos se podem encontrar estatisticamente por cada 100 mil pessoas. Uma regra de três simples.

Acontece que a terceira coluna acrescentada à tabela nas notícias falsas — a tal assinalada a amarelo — faz contas erradas, com base em taxas que não servem para concluir sobre a eficácia da vacina. A fórmula utilizada para calcular a eficácia da vacina (E) devia ser a seguinte:

Mas, na fórmula utilizada pelos autores da notícia falsa, eles limitam-se a substituir a informação a verde pela taxa não ajustada de casos por cada 100 mil pessoas entre os vacinadas com duas doses; a substituir a informação a vermelho pela taxa não ajustada de casos por 100 mil pessoas entre os não vacinados; e depois a subtrair o número final a 100. Em suma, a fórmula é transformada nesta equação intrincada e sem significado matemático para calcular a eficácia da vacina:

O problema nem sequer está apenas nas contas. Acontece que “a comparação das taxas de casos entre populações vacinadas e não vacinadas não deve ser usada para estimar a eficácia da vacina contra a infeção por Covid-19″, avisa o próprio estudo britânico. É que, com estas taxas, não se tem em consideração fatores que condicionam a interpretação dos números. Que fatores são esses? Os relatórios do Reino Unido apontam alguns:

  • As pessoas que estão totalmente vacinadas podem ser mais conscientes em termos de saúde e, por isso, terem maior probabilidade de serem testadas à Covid-19 — logo serem mais provavelmente identificadas como um caso positivo.
  • Muitos dos primeiros a serem vacinados são aqueles que estão em maior risco de desenvolver Covid-19 devido à idade, profissão, circunstâncias familiares ou por causa de comorbilidades.
  • As pessoas que estão totalmente vacinadas e as pessoas que não estão vacinadas podem ter comportamentos diferentes, particularmente no que toca a interações sociais — por isso, podem ter níveis diferenciados de exposição à Covid-19.
  • As pessoas que nunca foram vacinadas têm maior probabilidade de apanhar Covid-19 nas semanas e meses antes do período dos casos mencionados no relatório. Isto dá-lhes alguma imunidade natural ao vírus durante alguns meses, o que pode ter contribuído para taxas de casos inferiores nas semanas passadas.

De resto, não é de estranhar que as taxas de casos positivos sejam maiores entre as pessoas vacinadas: como a maioria das pessoas está vacinada contra a Covid-19, torna-se estatisticamente mais provável ser entre elas que surge a maioria dos novos casos de infeção.

Mas onde entra aqui a sida? Adivinhou: em lado nenhum. Nos cálculos errados para uma suposta eficácia da vacina, os autores perceberam que obtinham valores negativos em algumas faixas etárias. E argumentaram que, segundo o último relatório apontado nas notícias falsas, por exemplo, a eficácia da vacina revelou ser negativa em algumas delas, com o ponto mais baixo a ser -151% entre os 40 e os 49 anos. Aliás, só mesmo o grupo etário com menos de 18 anos surge com uma percentagem positiva, de 38%.

Os valores são apresentados como sendo a percentagem de efeito das vacinas no sistema imunitário: uma pessoa vacinada ficaria com um sistema imunitário menos robusto do que uma pessoa não vacinada — de tal modo que uma pessoa vacinada na faixa etária dos 40 anos ficaria com um sistema imunitária 151% menos robusto que uma pessoa não vacinada na mesma idade. Era como se a pessoa vacinada adquirisse uma deficiência imunitária — daí a menção a uma “síndrome da imunodeficiência adquirida”.

Só que as contas são matematicamente absurdas, como já se explicou. E a menção à sida também o é: a síndrome da imunodeficiência adquirida é uma doença do sistema imunológico humano que só pode ser desenvolvida quando o VIH infeta as células do sistema imunitário, impedindo-o de funcionar em pleno, como explica a Direção-Geral da Saúde.

A lógica errada com que se menciona a sida também foi adotada noutra notícia divulgada pela mesma fonte, que, apontando dados do Governo canadiano, afirma que “a maioria dos totalmente vacinados estão desenvolvendo a síndrome da imunodeficiência adquirida induzida pela vacina Covid-19 completa, depois de confirmar que os sistemas imunológicos dos totalmente vacinados já se degradaram para uma média de menos 81%”.

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Mais uma vez, os autores da notícia falsa (publicada nos mesmos sites) servem-se de cálculos errados e confundem a perda da proteção induzida pela vacina ao longo do tempo com uma suposta perda do desempenho do sistema imunitário como um todo. Mas, a propósito de outro fact check publicado pelo Observador, o imunologista Luís Graça, do Instituto de Medicina Molecular, assegurou que “a resposta imunitária normal não é afetada pela vacinação”. Pelo contrário, ela sairá fortalecida com a vacinação.

A questão é que os anticorpos em circulação diminuem com o passar do tempo. Isso não significa que a proteção contra o SARS-CoV-2 termina quando os anticorpos desaparecerem: há células do sistema imunitário que mantêm uma memória da proteína do coronavírus que a vacina ensina o organismo a reconhecer (a proteína S). Assim, perante uma infeção, as células ordenam ao sistema imunitário que comece imediatamente a produzir anticorpos novamente.

Então, como se explica que haja mais gente infetada entre quem está vacinado do que entre quem não está, como sugere a publicação? Tal como explicado no que se referia aos dados do Reino Unido, também no Canadá há mais gente totalmente vacinada contra a Covid-19 do que por vacinar. Por isso, estatisticamente, é mais provável que apareçam mais novos casos de pessoas totalmente vacinadas do quem em quem não receber a vacina.

Conclusão

É falso que a vacinação contra a Covid-19 esteja a causar sida, a doença provocada pelo VIH, ou qualquer síndrome de imunodeficiência. Os conteúdos apresentados nas publicações baseiam-se em cálculos errados e confundem conceitos da imunologia, chegando a conclusões erróneas sobre o impacto da vacina contra a Covid-19 no organismo.

A vacina contra a Covid-19 não provoca, a longo prazo, um enfraquecimento do sistema imunitário — a circulação dos anticorpos induzidos pela vacina é que diminui ao longo do tempo, mas ela pode regressar graças a um sistema de memória das células caso haja uma infeção.

O facto de haver um número absoluto maior de infetados entre quem está vacinado do que em quem não está não é indicativo de um efeito prejudicial da vacina contra a Covid-19: só é assim porque também há mais gente vacinada nos países mencionados do que por vacinar.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook

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