Nos últimos dias, algumas figuras do PS têm justificado o envio de dados pessoais de manifestantes para autoridades estrangeiras como resultado da extinção dos Governos civis (em 2011) e a transferência de competências destes para as autarquias.

Ativistas ucranianos pediram explicações à câmara de Lisboa. Várias manifestações foram no tempo de António Costa

O último a fazê-lo foi António Costa, ainda que o tenha apenas sugerido. Na quinta-feira, quando questionado sobre os procedimentos seguidos durante o tempo em que foi presidente da Câmara de Lisboa, o primeiro ministro disse duas coisas: 1) que não se lembrava; 2) que “a competência foi mal transferida para as câmaras municipais”.

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A frase completa foi: “Entre 2007 e 2012, a competência não era da Câmara, era exclusivamente dos governos civis. Depois houve ali um período em que fui presidente da Câmara, entre 2012 e 2014, em que a competência foi mal transferida para as câmaras municipais.”

Ora, Costa não o disse mas deixou implícito: o envio de dados pessoais de manifestantes para embaixadas (como aconteceu com os três ativistas anti-Putin) era consequência de uma lei mal redigida no tempo do Governo de Pedro Passos Coelho.

José Luís Carneiro, secretário-geral adjunto do PS (portanto, formalmente, o número dois do partido), já tinha dado um passo nesse sentido e tentado relacionar os dois factos. A frase completa, proferida a 11 de junho, foi: “[Este caso] tem que ver com um procedimento que é adotado pela Câmara de Lisboa desde que os governos civis foram extintos.”

Ora, acontece que não é assim. Algo que é facilmente comprovável através do testemunho de quem ajudou a coordenar esta transição, mas também através da resposta do próprio Governo, da prática seguida por outras autarquias e através da consulta da legislação em vigor.

Primeiro ponto: igualmente a 11 de junho, pouco depois da intervenção de José Luís Carneiro, o socialista António Galamba, o último governador civil de Lisboa, disse taxativamente que nunca existiu a prática de enviar dados pessoais de manifestantes para autoridades de outros países.

Câmara Municipal de Lisboa. Ex-Governador Civil diz que era “impensável” divulgar dados dos promotores de manifestações

“O que se fazia era enviar uma informação, quer para as forças de segurança quer, eventualmente, para as embaixadas, mas nunca com os dados das pessoas. Só a dizer que vai haver uma manifestação no dia tanto, às tantas horas, durante este período, mas nunca se enviou com os dados concretos das pessoas que tinham solicitado a manifestação. Isso é uma coisa inacreditável”, sublinhou Galamba.

Segundo ponto: o Governo, através do gabinete da ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Alexandra Leitão, veio a público esclarecer que “as autarquias, tal como todas as entidades públicas e privadas, estão obrigadas ao cumprimento do quadro legal instituído, designadamente ao Regime Geral de Proteção de Dados (RGPD), em vigor desde 25 de maio de 2018 na União Europeia (UE) e que prevalece sobre quaisquer leis nacionais”.

Dito de outra forma: mesmo que a lei que transferiu competências dos governos civis para as autarquias obrigasse a esta partilha de dados (coisa que não faz), os municípios estariam obrigados a respeitar o RGPD.

Manifestações em Porto, Coimbra e Faro apenas são comunicadas à polícia

Terceiro ponto: as Câmaras de Porto, Coimbra e Faro, por exemplo, garantem que nunca enviaram dados de manifestantes para entidades externas e que se limitam a comunicar às forças de segurança o local onde as manifestações vão decorrer. Ou seja, aparentemente, a leitura da autarquia de Lisboa dos procedimentos a adotar é única em todo o país.

Quarto ponto: confrontando as duas leis — a que dava ao governador civil a competência para tratar dos procecimentos relacionados com a realização de manifestações e a que veio transferir essa competência para as autarquias —, não é possível encontrar nada que justifique o envio de dados pessoais dos promotores desses protestos para as entidades visadas.

Na lei original, lê-se o seguinte:

Art. 2.º

1. As pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis o governador civil do distrito ou o presidente da câmara municipal, conforme o local da aglomeração se situe ou não na capital do distrito. 

2. O aviso deverá ser assinado por três dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de associações, pelas respectivas direcções. 

3. A entidade que receber o aviso passará recibo comprovativo da sua recepção.”

A transferência de competências resultou na seguinte redação da lei: 

«Artigo 2.º

1. As pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público avisam por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis o presidente da câmara municipal territorialmente competente.

2. … [Mantém-se igual]

3. … [Mantém-se igual]”

Ou seja: em momento algum está previsto nem na anterior nem na atual redação da lei o envio destes dados para outras entidades que não o presidente da Câmara (ou o gabinete, no caso), que depois deve informar as autoridades competentes (PSP e Polícia Municipal, se for o caso) da hora e local das manifestações

Conclusão:

É falso que a extinção dos governos civis e a consequente transferência de competências para as autarquias locais em matéria de manifestações tenha criado um procedimento automático que resulta no envio de dados pessoais de manifestantes para embaixadas ou outras entidades eventualmente afetadas pelos protestos.

É isso que dizem o antigo governador civil, o gabinete de Alexandra Leitão, outras autarquias e a própria lei. E foi isso que reconheceu o próprio Fernando Medina, ao falar em “erro lamentável” resultante de um “procedimento habitual” que foi entretanto alterado pela própria Câmara — sem que para isso tenha sido preciso mexer na lei.

Nem António Costa nem José Luís Carneiro alguma vez disseram taxativamente que o fim dos governos civis tenha tido como consequência a criação deste procedimento. Ainda assim, ao relacionarem os dois factos podem ter criado a ilusão de que o envio de dados pessoais de manifestantes foi algo que resultou de uma má redação da lei. Logo, estão ativamente a contribuir para um engano.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

PARCIALMENTE FALSO: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.

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