Tem todos os ingredientes para ser um post polémico: no Facebook, um membro do Invictus Portucale — um grupo com 35 mil ‘gostos’ e 42 mil seguidores que se apresenta como um “observatório de notícias” com foco em “crime, imigração, demografia, política e corrupção” — diz que um novo projeto da deputada não-inscrita Joacine katar Moreira quer impedir a polícia de pedir a identificação a pessoas “racializadas” com indícios de que estejam irregularmente em território nacional, justificando que isso é “racista”.

Será mesmo assim? Em rigor, e embora seja verdade que o projeto denuncia situações de racismo que serão justificadas com essa alínea da lei, a ideia de Joacine Katar Moreira é pura e simplesmente eliminar esse critério. Ou seja, estabelecer que ninguém pode ser identificado pela polícia num espaço público por “suspeitas” de estar irregularmente em Portugal, seja “racializado” (uma referência aos processos sociológicos por que as minorias passam — no projeto menciona-se concretamente negros e ciganos) ou não.

Neste momento, a lei, no artigo 250º do Código Penal, prevê que a polícia possa, num lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, “proceder à identificação de qualquer pessoa” em três cenários: sobre essa pessoa terão de recair suspeitas fundadas “da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção”.

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O que o projeto-lei apresentado pela deputada que se desvinculou do Livre é, então, que se retire o critério das suspeitas de permanência irregular em território inicial. Segundo a proposta de Joacine, as outras situações previstas continuariam a ser aplicáveis.

“Quais são as características de um estrangeiro?”

E porquê? É aqui que entra o argumento que tem a ver com a discriminação de pessoas “racializadas”, ou de minorias. “Têm sido recorrentes os relatos da abordagem policial à população racializada tendo como base o presente artigo, baseada em estereótipos raciais e que remetem qualquer pessoa negra ou de minorias étnicas como a população cigana, à condição de potencial suspeito”, lê-se no projeto.

Ou seja, na perspetiva da deputada, que fundamenta com vários estudos e um acórdão do Tribunal Constitucional, o facto de se incluir na lei a “suspeita” de que alguém esteja em Portugal de forma irregular facilita que pessoas negras ou ciganas, por exemplo, sejam discriminadas, uma vez que a polícia pode usar esse argumento para alguém se identificar e, no limite, ser detido durante seis horas, caso seja “impossível” apresentar os respetivos documentos ou comprovar a sua identidade. A isto junta-se, argumenta a deputada, “não raras vezes”, “policiamento repressivo e revistas consideradas humilhantes por quem por elas passa e que restauram aquilo que é o resultado de uma construção histórica colonial que configura a pessoa negra ou cigana como desordeira ou criminosa”.

Segundo o projeto, o critério previsto na lei “parte das conceções de identidade nacional e da conceção de cidadão nacional que remete para fora do corpo nacional toda a diversidade e multiculturalidade que caracteriza Portugal e a população portuguesa”.

“O artigo 250º do Código de Processo Penal (…) acaba por criar um espaço de elevada discricionariedade no que respeita à conduta policial, uma vez que a lei é omissa quanto aos critérios a adotar para discernir se determinado indivíduo penetrou ou permanece irregularmente no território nacional”, explica o projeto, questionando: “Quais são os parâmetros utilizados pelos órgãos de polícia criminal para identificar se determinada pessoa entrou ou permanece irregularmente no território nacional? Quais são as características de um estrangeiro?”.

Um dos estudos citados por Joacine Katar Moreira (o projeto COMBAT, que se foca na legislação de combate ao racismo em Portugal) conclui que a legislação — nomeadamente o artigo 250.º do CPP —, ao misturar critérios de natureza criminal com critérios de natureza contraordenacional, “permite que sejam criadas as condições para que os cidadãos racializados, considerados como potenciais suspeitos da prática de crimes, se encontrem numa situação especialmente vulnerável, e sujeitos a práticas de assédio policial. Em menor medida, o mesmo se poderia dizer em relação a cidadãos de nacionalidades do denominado leste da Europa (principalmente queixosos de nacionalidade ucraniana e romena), ou do Brasil”.

Outro argumento da deputada passa por lembrar que a permanência de um cidadão estrangeiro em território português por período superior ao autorizado constitui uma contraordenação e não um crime, pelo que considera que a redação atual do Código Penal “contribuiu, portanto, para a criação de uma confusão entre estes dois domínios, justificadamente distintos e que, portanto, devem ser alvo de tratamentos diferenciados”.

A solução proposta pela deputada passa, então, por retirar a questão da permanência irregular em território português da lei, mantendo o resto dos critérios que hoje existem.

Conclusão

A afirmação é enganadora. De facto, Joacine Katar Moreira considera que a lei atual, na forma como está redigida, ajuda a alimentar um preconceito e dá à polícia um pretexto para identificar e deter temporariamente uma pessoa negra, cigana ou de outra minoria de forma discricionária. Mas a alteração que propõe é retirar, sem mais, a alínea da lei que permite que isso aconteça, seja para essas minorias ou para qualquer outra pessoa.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

PARCIALMENTE FALSO: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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