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A Sagração da Primavera, 110 anos depois: atual como sempre |
Não é todos os dias que se pode dizer isto: há duas semanas, assisti a um concerto de A Sagração da Primavera, no Rivoli, no Porto. A semana passada, assisti à Sagração no Teatro Camões, em Lisboa. Ambas com música ao vivo, o que vai sendo (infelizmente) uma raridade na cena do bailado clássico em Portugal. |
Não há marco mais desejável para um autor do que saber que a sua obra ainda tem público passados cem, duzentos ou mais anos depois da sua criação. É também esse o teste principal para definir aquilo que é um clássico, uma vez que o tempo é o maior juiz de todos, e sobreviver-lhe é o mais duro desafio na vida de qualquer obra de arte. |
A primavera, no que diz respeito à música clássica, ainda hoje é fortemente associada a A Sagração da Primavera de Stravinsky. É claro que há a Primavera das Quatro Estações de Vivaldi, há a Sinfonia “Pastoral” de Beethoven, há mil e uma peças com a palavra “primavera” no título. No entanto, nenhuma como a Sagração se impõe enquanto ritual, como forma de dar as boas-vindas a um tempo que é mais do que simplesmente uma nova estação. Ver chegar a primavera, desde a mais primordial das antiguidades, significa que sobrevivemos a mais um ano. É o fim das provações do outono e do inverno, sinal de que a terra se renova e nós com ela. É o ponto do ano em que os dias ficam mais longos e, logo, o nosso aproveitamento deles também se torna maior. |
A Sagração da Primavera é o título de um bailado estreado na primavera de 1913 em Paris, numa produção do empresário-visionário Sergei Diaghilev (um Elon Musk da arte de há cem anos), criador da companhia Ballets Russes, que foi responsável pela reconfiguração daquilo que podia ser o bailado, com toda a vivacidade artística possível, congregando artistas de todas as disciplinas (desde que fossem os melhores da sua geração) e gerando obras de arte multiformes e que podiam agradar ao gosto de todos. É assim que, de Stravinsky a Cocteau, de Picasso e Nijinsky, foram dezenas, centenas, os nomes de grandes artistas do século XX que passaram pelos olhos e pelo livro de cheques de Diaghilev. |
Só que a Sagração é o primus inter pares do extenso catálogo da trupe, porque foi o único verdadeiro succès de scandale, que é a melhor publicidade que uma obra de arte pode ter. Foi absolutamente chocante, no entanto cheia de conteúdo. Não se tratava da provocação só porque sim. Não era dadaísmo, não era um happening. A razão pela qual este bailado gerou um verdadeiro tumulto no teatro foi porque o público parisiense, chique e elegante, na sua parte mais velha até conservador, simplesmente não estava preparado para uma obra de arte assim. Era tudo novo, e tudo era a negação dos valores clássicos do bailado, mesmo tendo em conta que esta era uma produção nova em folha e por artistas jovens. |
A coreografia, segundo consta, foi mesmo a coisa mais chocante. Era assinada por Vaslav Nijinsky, bailarino, estrela da companhia e amante de Diaghilev, que aqui se aventurava pelos domínios da coreografia. Importa dizer que o subtítulo d’ A Sagração da Primavera é Quadros da Rússia pagã e que, como tal, pretendia representar uma sequência de rituais milenares de comunidades pagãs, imaginados pelos artistas. Neste sentido, a estética pretendia ser uma espécie de pré-tudo, inclusivamente pré-beleza. |
Quando o pano abre, os bailarinos estão de joelhos quebrados para dentro, como toscos amuletos bidimensionais, desenhando contornos angulares com os seus corpos. A negação do bailado clássico francês tal como o mundo o conhecia. Em nenhum momento há qualquer dos recursos tradicionais que poderíamos esperar de um Lago dos Cisnes ou de uma Giselle: nenhuma pirueta, nem um momento em pontas, zero pas de deux, nada de nada. Foi isto a primeira coisa a causar escandaleira. Alguém do público gritou, ironicamente, por um dentista, visto que algumas bailarinas estavam numa posição que parecia sugerir dores de dentes. |
Depois, veio a música. A partitura abre com um fagote a tocar no seu registo sobreagudo. Uma nota nunca antes ouvida vinda daquele instrumento, geralmente relegado para as profundezas do registo grave da orquestra. Para mais, é simplesmente o fagote sozinho, a desenhar uma estranha melopeia, como se estivesse a chamar mais instrumentos, que não tardam a acudir, cada qual com o seu timbre próprio. O som gerado neste momento é tão inusitado que o compositor Camille Saint-Saëns, que estava na plateia, perguntou à pessoa que tinha ao lado que instrumento era aquele. Stravinsky também estava empenhado em criar uma música pré-tudo. O verdadeiro elephantine jazz, como lhe chamou Bernstein, naquela que é para mim a melhor definição desta composição. |
Movida por ritmos aguerridos mas imprevisíveis, timbres ferozes e complexos, esboços de melodias que acabam ainda mal começaram, parece que a orquestra fez reset e instalou um novo sistema operativo, onde tudo é diferente daquilo que se conhecia até aí. |
A balbúrdia na sala começou imediatamente e era tanta que os bailarinos não conseguiam ouvir a orquestra, o que levou a que Nijinsky se visse forçado a subir para uma cadeira atrás das bambolinas do palco, gritando o ritmo dos passos aos bailarinos desorientados: “um-dois-três, um-dois, um-dois, um-dois-três!”. |
Os figurinos e o cenário, da autoria de Nicholas Roerich, também eram pouco consensuais mas ainda assim foram o que menos chocou. O mais interessante é que tanto havia apupos e assobios, como pessoas capazes de partir para a violência a fim de calar as vozes de desagrado. A direcção de cena começou a apagar e acender as luzes de sala incessantemente para acalmar os ânimos e por pouco a plateia não virava ringue de pugilismo. A polícia teve mesmo de intervir. |
Stravinsky ficou vexado, lívido, mortificado. Chegou a escrever na sua autobiografia que não desejava a ninguém uma noite como a que viveu nessa estreia. No entanto, pouco tempo depois, era levado em ombros para fora do teatro, com escolta policial, pelos seus fãs mais aguerridos: os jovens parisienses que viam nele o homem que, finalmente, fechou com estrondo a porta do passado e indicou o caminho para a música do futuro. |
E a verdade é que, para todas as correntes estéticas em vigor ou em vias de nascimento, esta música foi como um imenso foco de luz que, para muitos, foi a epifania de uma vida. |
É assim que, passados cento e dez anos, ainda aqui estamos, a tocar e a ouvir A Sagração da Primavera, sempre como se fosse a primeira vez, pois esta música não envelheceu nem um minuto. Foram mais de cento e cinquenta as coreografias novas que se lhe aplicaram desde 1913, sendo que no final do século XX também se tornaram moda as reconstituições históricas. |
Os dois exemplos que vi nas últimas semanas dão conta dessa mesma riqueza: a versão dos Teatro Praga propunha uma coreografia nova, se bem que recheada de referências à original, ao passo que a Companhia Nacional de Bailado propôs a reconstituição tão fiel quanto possível da versão original. |
Na verdade, vi a dos Teatro Praga duas vezes: o ano passado, em Lisboa, acompanhados pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, e no Porto, acompanhados por dois pianos e percussões. Devo dizer que esta segunda versão não impressionou, uma vez que a riqueza e a potência daquela música apenas são possíveis com a extensa orquestra que Stravinsky tinha em mente. No entanto, mesmo já conhecendo o espectáculo, não quis perdê-lo pois a coreografia é de uma audácia e virtuosismo extraordinários. |
Já a experiência da CNB, acompanhada pela Orquestra de Câmara Portuguesa, aproxima-se daquilo a que poderíamos chamar uma fruição filológica, com grande respeito pela proposta original dos autores. Neste sentido, é inevitável não sermos transportados para 1913, imaginando como terá sido estar no teatro na noite fatídica e memorável em que esta obra imortal se deu a conhecer pela primeira vez. |
O que é certo é que os trinta e poucos minutos desta música passam num abrir e fechar de olhos, como em poucas músicas que conheço. E podem passar outros cento e dez anos, tenho a certeza de que a Sagração vai manter a sua eterna juventude. |
No Teatro Camões, ainda podem ver esta versão até dia 14, onde o espectáculo dá pelo título Noite Stravinski. Recomendo. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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