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O teatro La Fenice, em Veneza, faz jus ao nome: por duas vezes ardeu e outras tantas renasceu das cinzas |
Toda a gente conhece a célebre reacção de Mark Twain ao ver o seu próprio obituário nos jornais. Notícias demasiado exageradas, de facto. O mesmo se poderia dizer do teatro La Fenice — A Fénix — em Veneza, de cada vez que se esfumou em chamas. É que este, que foi um dos mais importantes teatros de ópera de toda a Europa, com uma história já longa (abriu em 1792, um ano antes do nosso Teatro Nacional de São Carlos), foi dado como acabado por duas vezes. |
Veneza, apesar de ser uma cidade relativamente pequena, foi desde sempre um importantíssimo centro de produção musical. A Basílica de São Marcos, que não era mais do que a capela particular dos Doges da Serenísima República de Veneza, foi ao longo dos séculos um lugar importantíssimo de formação, produção e experimentação musical. A primeira imprensa musical, da oficina de Ottaviano Petrucci, funcionou em Veneza nos primeiros anos do século XVI e hoje dá o nome à Petrucci Music Library, a maior biblioteca digital de partituras, também conhecida como IMSLP, recurso absolutamente indispensável para músicos e estudiosos de todo o mundo. Foi nesta cidade que a ópera nasceu enquanto indústria, com o seu ecossistema de empresários, teatros com bilheteira pública e comissões sempre novas a compositores, cantores e equipas artísticas, entrando estes em competição uns com os outros. Só no século XVII, Veneza chegou a ter mais de uma dezena de teatros de ópera, abertos durante todo o ano excepto no período da Quaresma, depois do famoso Carnaval, marcando de forma inequívoca o arranque de uma nova temporada de entretenimento. |
Já nos nossos tempos mais próximos, Veneza soube posicionar-se de forma ímpar no panorama cultural mundial, sendo reconhecida pelo seu Festival de Cinema, que todos os anos leva as maiores estrelas de Hollywood aos canais do Adriático, mas também a famosa Biennale, que alterna arte contemporânea num ano e arquitectura no seguinte, garantindo que a cidade nunca está deserta de acontecimentos. |
Este é, de forma muito resumida e incompleta (pois não falei do trabalho dos museus, das igrejas, dos palácios, das fundações, dos conventos, dos hotéis, do casino, das bibliotecas, das livrarias, entre outros), o panorama fervilhante da cultura em Veneza. |
Quando ardeu pela primeira vez, em 1836, o Teatro La Fenice, principal palco da cidade, já tinha acolhido a estreia absoluta de dezenas de óperas memoráveis, incluindo títulos de Rossini, Bellini ou Donizetti. Quando ardeu pela segunda vez, em 1996, tinha entretanto visto nascer outras tantas pérolas do repertório lírico e sinfónico: mais Donizetti, cinco óperas de Verdi (entre as quais Rigoletto e La Traviata), Mascagni, Leoncavallo, Wolf-Ferrari, Petrassi, Poulenc, Milhaud, Villa-Lobos, Hindemith, Maderna, Bartók, Prokofiev, Stravinsky, Bernstein, Britten, Rota, Nono, Penderecki, Ginastera, Bussotti, Sciarrino, Feldman, Ferneyhough, Kagel e muitos, muitos outros. Desculpem o name dropping, nem sou destas coisas, mas quero sublinhar a forma como um só teatro ajuda a contar a história da música dos últimos duzentos anos. |
Apesar de todas as contrariedades, o teatro soube reerguer-se, apoiado pela vontade da população local e do poder político. É por isso que o canal que dá acesso à entrada dos artistas foi rebaptizado com o nome de Maria Callas, que deixou nele muitas das melhores interpretações líricas de sempre. |
O curioso com teatros com esta quantidade de história é entender como é que lidam com o presente e o futuro de si mesmos. Neste aspecto, pode dizer-se que a Fenice já não tem o ímpeto criativo de um tempo, tendo sido substituída no panorama contemporâneo por outros palcos que entretanto surgiram fulgurantes, como Dallas, Birmingham, Barcelona ou Lyon. |
Nesse aspecto, o fenómeno demográfico que a cidade de Veneza vive é paralelo à vivacidade deste teatro. A Fenice tem programação quase todos os dias, contando com intérpretes de excelência em todos os concertos ou récitas que organiza. No entanto, encontra-se numa situação clara em que “vive de renda”. Visto que a maior parte do seu público são turistas, a programação segue linhas muito previsíveis. A vantagem de programar para pessoas que só estão na cidade três dias de cada vez é que não vão comparar aquilo que viram esta semana com o que esteve em palco a semana passada. É assim que uma Bohème pode voltar à cena a cada par de anos, intercalando-se com a Traviata ou a Norma. Se o público do teatro fossem os venezianos, esses iriam certamente exigir maior criatividade do seu teatro. |
No entanto, Veneza é, cada vez mais, uma cidade sem população. Já há mais venezianos a viver na terra ferma, espalhados pelas outras cidades da província do Véneto, do que na cidade de Veneza. Basta ir a Mestre, a primeira paragem de qualquer comboio ao sair de Veneza, para testemunhar como esta terra sem graça nenhuma é o dormitório daqueles que mantêm Veneza em pleno funcionamento. Todos os prestadores de serviços de Veneza vivem aqui, fazendo o seu trajecto casa-trabalho-casa através da laguna. |
Na cidade, restam poucos locais, intercalados com excêntricos que podem permitir-se investir em imóveis em Veneza, e os incontáveis turistas que enchem os hotéis e apartamentos de alojamento local. |
É curioso que este fenómeno apenas se tenha dado com a ópera, uma vez que, no ramo do cinema, arquitectura ou arte contemporânea, Veneza mantém-se como um local incontornável para se estar a par das últimas vanguardas criativas. Curioso mas não surpreendente, pois, como já me têm ouvido dizer, a ópera é a forma arte mais conservadora de todas. E quando o público terá começado a escassear, face ao êxodo de venezianos para fora da sua cidade, a resposta do teatro passou por um alinhamento com as expectativas dos turistas que procuram uma experiência autêntica e memorável, tal como imaginavam que seria a cidade de Veneza. |
É assim que esta cidade, outrora tão cheia de vida, vai perdendo as suas fontes de vida, e transformando-as em ícones ao serviço do turismo. Os cafés da Praça de São Marcos vivem da história e da memória do que foi outrora a cultura de café. Hoje nenhum grupo de poetas se encontra à volta das mesas do Quadri ou do Florian (em boa verdade, a cultura do café literário já deu as últimas por todo o mundo). No entanto, estes cafés elegantes estão mais cheios do que nunca, preenchidos por turistas que desejam colocar-se nos pés de Byron ou Hemingway. |
O mesmo se pode dizer das igrejas, da Basílica, do Palácio dos Doges, até mesmo das prisões. Tudo está desvirtuado da sua função, servindo agora como máquina de sacar dinheiro aos turistas. |
Assim, é tanto mais louvável o trabalho da Biennale ou do Festival de Cinema, que, bem vistas as coisas, são os únicos a lutar para que a cidade não desapareça de vez. Mas também da Universidade de Veneza, que resiste a relocalizar as suas faculdades para a terra ferma, ou o Conservatório de Música, que sobrevive estoicamente até aos episódios de acqua alta, que chegam a inundar a biblioteca de partituras, causando estragos em manuscritos de valor inestimável, como aconteceu há poucos anos. |
Veneza, para muitos pensadores sobre as cidades e o seu futuro, é uma forma de aviso sobre o que pode acontecer a outras cidades que abdicam da sua identidade em prol do turismo, ou que descuram as alterações climáticas. Veneza foi a primeira sacrificada e já muito se escreveu sobre a cidade e as causas da sua ruína, desde terem sido os portugueses, ao estragar o monopólio do comércio com o oriente, a Napoleão, que depôs o último Doge, à ocupação austríaca, à anexação em Itália, à construção da linha férrea que ligou a cidade a terra, tirando-lhe para sempre a faculdade insular, ou a tornar-se um porto de cruzeiros (entretanto relocalizados para o porto de Fusina, a poucos quilómetros). |
O que é certo é que Veneza nos ensina lições que são importantes e algo tão insuspeito como um velho teatro de ópera ainda pode ser um excelente barómetro para testar a vivacidade de uma cidade. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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